A Velha TV Colorado

 A nossa TV Colorado preto-e-branco vivia estragada. Ela viera da fábrica com um defeito que nenhum técnico dava jeito; ora sumia o som, ora a imagem. Uma caixa de ilusões gaga e, às vezes, cega. No começo, quando ela falhava, a gente desligava e, pronto; ia dormir. Com o tempo aprendemos a esperar com paciência. A sala ficava na penumbra. Era difícil esperar mas, de olhos atentos, aguardávamos qualquer sinal luminoso na tela.  Faça-se a  luz! E o milagre chegava plasmando nossas sombras nas paredes de cal. Às vezes o som chegava tartamudo; a imagem coxeava igual a Quasimodo, personagem de Victor Hugo, interpretado no cinema por Antony Quinn em “O Corcunda de Notre Dame”. Sorte a dele que tinha, à sua espera, a belíssima Gina Lollobrigida sentada num banco da catedral de Paris.

Em frente ao  altar aguardávamos os programas favoritos. Na Globo, aos sábados, Chacrinha balançava a pança com sua Buzina e, aos domingos, Silvio Santos abria a dentadura na disputa pela audiência com a Record que vinha com a Jovem Guarda no calhambeque do  Roberto Carlos. Na TV Tupi, Um Instante Maestro, com Flávio Cavalcante; J. Silvestre mostrava que O Céu é o Limite para quem sonha.

Tudo ia bem até que a buzina arrotava agonizante com a risada do Silvio Santos desaparecendo da tela da Globo. Ou, então,  o programa do Flávio desaparecia no meio de Travessia. Voltava quando o Milton Nascimento já tinha atravessado a tela. Assim, víamos televisão espremidos nas cadeiras toscas de palhinha trançada.

A primeira vez que ví o Tony Tornado foi num festival da Record. Cantava: “A gente morre na BR-3... rasgando o céu, cruzando o espaço...”. Sumiu o som. Tony dava passos para trás nas pontas dos pés. Quando o som voltou Tony estava aclamado vencedor do festival.  Noutra vez Wanderléa cantava no programa do Roberto Carlos e, de novo, novas emoções, tudo desapareceu. Voltou só a voz; uma tortura fechar os olhos e ficar com a 'ternurinha' cantando. “Pode vir quente que eu estou fervendo...”. Misericórdia!  Ela rebolava nos palcos das 'jovens tardes de domingo'.  Mas, isso, sim  era muito melhor do que o seu canto.

Acho que a nossa TV também pensava. E, pelo visto, não gostava do João Gilberto, criador da bossa-nova. Perfeccionista, uma vez ele reclamou do som e foi embora com seu violão; nem olhou para trás. Acho que foi nesse dia que a nossa TV tomou birra do João Gilberto.  Era só ele aparecer na TV que o som ia embora. De tanto sofrer com a ruindade do som da televisão foi, de vez, para  os palcos dos teatros.

Falando em palco, as mulatas do Sargentelli trazem ótimas lembranças. Ele torcia pelo Flamengo. Não...  era pelo Vasco.  Bem, já não sei mais por quem ele torcia. Isso não importa. Só sei que sabia bem o seu ofício mulateiro.

Futebol não passava na televisão. Ainda bem. Já pensou o Santos no ataque com Pelé, Coutinho tabelando e a imagem sumisse?

Mas, já havia promessa de transmissão da Copa do Mundo de 70, via satélite. 

Diante dessa possibilidade, pensei:

- Vai ser difícil ver a Copa nessa TV.

Aí me deu vontade de dar-lhe umas tapas para ela entender o seu papel. Inclusive, nos divertindo com as  primeiras novelas brasileiras inspiradas no dramalhão mexicano.

Começou a Copa do Mundo do México e, como antes, as falhas da TV deixava-nos, literalmente, com estrelas nos olhos e sombrero nos ouvidos.

No jogo do Brasil com o Uruguai, a surpresa. Lembra aquele lance em que o Pelé dá um drible de corpo no goleiro Mazurkievsk, pega a bola do outro lado  e chuta enviesado pro rumo do gol? Pois, é. A TV ficou cega e muda. E agora? Foi gol?

Meu irmão Maurício deu-lhe um muque bem no meio das válvulas. A TV Colorado voltou a funcionar; nunca mais estragou.

         Doracino Naves, jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestev.net)