segunda-feira, 29 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Mané Graia e o talvez

Chamava-se Mané Graia aquele homem troncudo, estatura baixa, cabelos lisos e ralos; gordurosamente grudados na cabeça. Fez-se meeiro de uma pequena roça de milho plantada na clareira destocada de uma mata de galeria no município de Hidrolândia.

Tempo medonho nesta noite; trovões e relâmpagos soltam flashes a clarear os olhos atentos da coruja empoleirada no alto de um baru. O aguaceiro contorna o rancho pelo canal feito para desviar a enxurrada. Tião, ajudante que aparecera no roçado para o último serviço de capina antes da colheita, está com cara de doente. Descalça as botinas sujas de barro, arremessa-as a um canto do rancho. O vento, entrando pelas frestas das paredes de pau-a-pique, apaga a única lamparina. O jeito é esperar o vento se acalmar para acendê-la novamente.

Dois pescadores montados numa lambreta velha se esgueiram através da plantação. Buscam abrigo. O ar fica com cheiro de gasolina misturada com óleo dois tempos. Chuva maldita! Disse um dos pescadores ao entrar apressado no rancho sob a inconstante luz dos raios. Naquele pequeno mundo coabitam a luz e as trevas. É sexta-feira da paixão. O destino reunira os quatro homens num singelo rancho de palha à beira do rio Meia Ponte. A chuva torrencial anuncia a enchente de São José com água aos cântaros.

Lampejos intermitentes mostram esqueletos de árvores esturricadas pela queimada de agosto; testemunhas espectrais do fogo insano que queimara toda a vegetação. Noite de dilúvio. Lua cheia. Arre! Sexta-feira da paixão com lua cheia é prenúncio de lobisomem. Ainda mais quando não se respeita esse dia santo. Mané Graia recebe os estranhos com cortesia; oferece-lhes um lugar sem goteiras.
            
Eles se apresentam como pai e filho que usam o motivo do feriado para pescar; vieram pegar traíra no remanso abaixo da ponte de madeira. O filho acende um pequeno lampião a gás. Na garupa da moto tem mantimentos para preparar uma janta simples: arroz, carne seca, feijão em lata, óleo e farinha. E a indispensável garrafa de pinga e limão galego apanhado no quintal da casa do pai. Mané Graia se oferece para fazer a comida.
               
Entre um gole de pinga e outro, com tira-gosto de carne seca, a conversa fica mais animada; contam histórias vantajosas e cabotinas; algumas sobre assombração. Arredio, o ajudante se encolhe num canto. Seu corpo, enrolado num cobertor sujo, treme que nem vara verde. O pai pergunta-lhe de onde viera. Sua voz sai gutural e imprecisa: das bandas de Aruanã. Um raio explode no alto do Morro Feio. Depois a chuva diminui. De modo inesperado, ela cessa; o vento leste abre o céu às estrelas e a lua cheia se impõe naquele torrão úmido entre Hidrolândia e Bela Vista.
              
O ajudante, talvez aborrecido, sai com a manta cobrindo a cabeça como se desejasse esconder o rosto. Mané Graia, desatento, engole uma caneca cheia de pinga. Faz uma careta horrorosa. O urro forte de lobo balança o frágil rancho. Mané fica todo arrepiado, com os cabelos espetados como se fossem os de um porco-espinho acuado. Pode ser o calafrio provocado pela cachaça. Talvez...
           
No dia seguinte houve sol. Mas, tudo estava quieto. A lambreta, tombada, derramara toda a gasolina. O vizinho lampeiro, à procura de uma rês desaparecida, vai até o rancho.
                   
- Ô de casa, ô Mané!
                    
Vê três corpos dilacerados; indecentemente inertes. Tudo fora revirado; as panelas no chão.
                    
Aterrorizado com a tragédia sonda os arredores.
                    
- Foi onça!
                    
Talvez...

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 27 de abril de 2013)
segunda-feira, 22 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Morador de rua


Os sonhos são feitos de uma substância tão fina quanto o ar.Cada pensamento que se incrusta na mente acende uma tocha. Ele se insinua sutil e vagarosamente, como o amanhecer vence a noite, na discreta transição entre o sonho e a realidade. Só o querer é capaz de transformar o sonho. Então, o desejo é capaz de vencer as trevas? Nem sempre. Penso que existe uma imponderável ideia que, em sua essência, é uma poderosa força a conduzir as coisas do mundo. Mesmo no livre arbítrio percebo uma energia abissal que sabe tudo sobre todas as coisas. Todos os meus pensamentos convergem a esse ponto central do universo. Uma pequena luz, por menor que seja, pode ser o início de um projeto.  

A ideia é uma luz fecunda acesa pelo espírito. A sutileza do talento é a inspiração que brota para auxiliar o raciocínio na sua tarefa de sublimação da realidade. A poesia vence o caos; o dom da alma se revela na infinita capacidade de criar. Gosto de pensar que sei escrever. Por que, não? Afinal, quando leio Fernando Pessoa, penso como se fosse mil poetas. Nesse instante imagino o meu Meia Ponte como se fosse o rio Tejo. Mas, pensando bem, nem sei para aonde vai o meu rio. Pessoa, ao contrário, sabe que o rio Tejo vai para o mundo, entra no mar e tem grandes navios. No Meia Ponte nem canoas tem.

Também gosto de ler Rubem Braga que via o mar entre as árvores e o telhado da sua varanda. O sol de Braga resplandece e o vento nordeste tange o azul das águas com espumas que flutuam e morrem na praia. Da minha janela vejo um mar de prédios que encobrem a minha visão. Rubem Braga assiste o sol nascer do outro lado do oceano. Da minha janela nem vejo o sol. No meio da penumbra há um mundo de solidão nascendo perante os meus olhos cansados. Algo se movimenta lentamente sob um monte de coisas.

No alpendre da casa abandonada um pobre homem perdido entre folhas de jornais, cobertores e papelão que cobrem o seu corpo. Ele estava só, nenhum amigo, nenhuma mulher, talvez nem sonhos. O morador de rua espera o amanhecer sem nenhuma pedra na mão. Para uma alguém nessa situação o sonho é um permanente espanto. E o chão da noite é o esperado repouso, talvez o lugar do último suspiro.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - Goiânia - Goiás em 20 de abril de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista. 
segunda-feira, 15 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Bola murcha


A bola de couro bateu no arame farpado que cercava o campo de futebol. Silêncio. Foi possível até ouvir o ar comprimido sair chiando do balão. Restou só uma pelota disforme de pelanca seca; a bola estava irremediavelmente furada e a turma de meninos abobalhada com a inesperada perda. Sem uma bola para animar a “pelada” naquele campo de terra, tudo perdera a graça; o campinho de futebol parecia um teatro vazio. Havia indignação no olhar daqueles artistas mambembes de caras sujas e magricelas de pés encardidos. 

Como pode alguém dar um chute e acertar justamente a ponta mais saliente e afiada do arame. O  insolente bem-te-vi, apressado em contar o que vira, soltou o seu canto traidor. Todos olharam o autor da proeza com ligeiro desprezo e fizeram um círculo em volta do pé torto. Senti-me como se fosse um cavalo acuado por cachorros que, de repente, empaca e dá voltas em torno de si mesmo para afugentar os cães. Se, como acontece com o cavalo quando acossado, não os escoiceei, foi porque a frustração de ser um perna-de-pau doía mais em mim do que a expressão decepcionada da molecada. Isso logo passaria porque criança esquece logo.
                
Um dos meninos, ao recolher os restos mortais da bola, assumiu rapidamente um aspecto de poeta: não mate a bola. Logo se aproximou o dono da pelota, Toninho do Jucão. Pois é, no interior as pessoas são conhecidas assim, por um apelido que lembra o pai, a mãe ou um parente próximo. Ou remete aos trejeitos do gajo. Essa é a cultura do interiorzão do Brasil. Toninho tinha o insofismável jeito de dono do jogo. E, discreta, mas firmemente, exigiu que eu lhe pagasse a bola com um cruzeiro por semana. Senão... Como ele era mais forte, concordei. Com isso, o dinheirinho que ganhava do meu pai iria todo para pagar a bola furada. Adeus sorvete no bar do seu Joviano; fim do pudim de leite da rodoviária; também não sobraria nenhum centavo para as balinhas da venda do Massaki.
                    
E, além disso, fui forçado a fazer a minha primeira dívida. O pior é que eu sequer tinha mesada definida por meu pai. Embora chateado, eu nada dissera a meus pais sobre a dívida. Só um amigo mais próximo, o Nelson, sabia da minha cruz. Fui pagando as prestações no dia marcado pelo meu credor. Uma vez meu pai viajou e eu não tinha como pagar. Nelson me emprestou um cruzeiro para quitar a prestação da semana. A viagem do meu pai durou mais tempo do que o previsto. O Toninho, bem maior e mais velho do que eu, me ameaçou com surra caso não quitasse a dívida. Aguentei calado pensando numa saída.
                      
Parei de zanzar pela cidade como fazia sempre. Fiquei com medo de apanhar daquele brucutu. Um belo dia, bendito seja esse dia, chegou a Palmelo um primo do Nelson que morava em Goiânia e tinha fama de valente. E o Nelson contou-lhe o meu drama. Lembro-me bem de que, numa tradicional quermesse da cidade, o Edson, esse era o nome do primo do meu amigo, aplicou uma sonora e retumbante surra em Toninho. Edson ainda exigiu que a dívida fosse esquecida, pois fora acidente de futebol. Achei justo e libertador. Depois desse dia passei a andar livre e solto pelas ruas de Palmelo. Toninho, o filho do Jucão, nunca mais me incomodou; tornamo-nos amigos e esquecemos o incidente.
                
Menino esquece rápido; a tristeza dura um instante. Um instante... Depois fica sossegado e sorri por qualquer graça. Até quando dorme. Criança adormece sorrindo porque o seu coração é puro como se anjo fosse.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 13 de abril de 2013)
            
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 8 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Pijama de flanela




Noutro dia alguém me perguntou o que me inspira a escrever. Fiquei confuso com essa pergunta, feita, assim, de supetão. Ele emendou perguntando quem eu considerava o melhor escritor. Mais uma vez a pergunta veio como uma foice cortando o meu pescoço. Não me considero, nem um pouquinho, capaz de avaliar a obra literária de alguém. Respondi-lhe que leio gregos e goianos; americanos e russos; latinos americanos, espanhóis e portugueses. Também os ingleses, franceses, israelenses, árabes e todos os que acreditam no que escrevem. Inclusive, nos poetas mentirosos que, em seus versos, cantam amores eternos. Não arrisco mencionar nenhum nome porque poderia reclamar uma erudição que não possuo. Porém, muitas pessoas tiveram e têm influência em minha vida e naquilo que, modestamente, escrevo.

Qualquer cronista com um mínimo de cuidado presta atenção em tudo o que aconteceu ou acontece a sua volta. E, nessa observação do cotidiano que uma simples palavra, um olhar, uma poesia, uma música, um quadro de Amaury Menezes - nome de um grande pintor - já é suficiente para pensar um tema. Mas, hoje, a lembrança de meu pai Zequinha me traz emoções e uma saudade imensa. Vejo-o, plasmado no quadro das minhas recordações, andando rápido pelas ruas empoeiradas de Palmelo, onde foi coletor estadual.

Lembro-me do frio de um mês junho perdido nas brumas passadas e da montanha alta debaixo do céu azul do inverno palmelino. Eu e meus irmãos, cada um com pedaço de pão e um copo de leite nas mãos, vestidos em pijamas de flanela, a nos aquecer sob o sol da manhã, sentados na calçada de nossa casa. Na infância tudo é muito intenso. Por isso fica muita coisa fica gravada na memória.  Nesse dia meu pai desceu as escadas que dava à rua. Ele me parecia alto, superior. As ruas da minha infância, pintadas em cores vivas na minha memória, são largas e compridas. Eu enxergava aquela serra como se fosse o topo do mundo. Depois que cresci vi que meu pai não era tão alto como eu imaginara. E aquelas ruas, na verdade, são estreitas e curtas como convém a uma cidade pequena do interior de Goiás. E a montanha? Bem, a montanha não é uma montanha que se possa chamar de montanha. Mas, o céu continua azul, imenso e translúcido, talvez iluminado pelos espíritos evoluídos que passaram por lá.  
          
Respiro fundo tentando trazer o cheiro da infância ao presente. Sinto cheiro do araticum maduro no cerrado; da manga coração-de-boi madura em uma tapera abandonada; do caju roubado do quintal do Chiquinho Gonçalves; da mexerica enredeira do quintal do tio Eurípedes. Vejo, sob o céu de agosto, as pipas coloridas cruzando os ares da infância livre, dos sonhos e da esperança despertas pelo rádio à válvula sintonizado na Rádio Globo. Então, a inspiração de um cronista pode vir de fragmentos da vida. A vivência é que me inspira a escrever. São recordações que um dia se perderá no eterno firmamento do Cosmo.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 06 de abril de 2013)
          
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista. 
segunda-feira, 1 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Avental branco


O príncipe Tamino, na escuridão de uma imaginária e densa floresta, clama desesperado por Luz. O seu grito de socorro ecoa forte: Socorro!, Socorro!, Socorro!. Assim começa a ópera A Flauta Mágica, composta magistralmente por Mozart. O cenário imaginado pelo autor talvez fosse a Floresta Negra, da Alemanha iluminista do século dezoito. No roteiro da ópera o sol surge devagar até iluminar completamente o palco.
               
Um majestoso coral canta solene: A glória do sol dourado conquistou a noite. O falso mundo das trevas conhece agora o poder da Luz. Depois vem a estrofe final: A beleza e a sabedoria haverão de iluminá-los com o sol. O iluminador do teatro joga do fundo do palco para plateia uma potente luz que cega a todos.  Depois dessa reação a luz se projeta para o alto com claro sentido simbólico. Percebe-se, na expressão de Pamino, o desejo de se religar ao céu.
            
Mozart descreve, nessa obra, a perambulação de um iniciado pelo caótico mundo material. Começa nesse ponto a fantástica viagem ao trono do espírito; morada eterna da honra e da virtude que se sobrepõem aos efêmeros valores da matéria. Essa peça de conotação iniciática é a alegoria da busca incessante pela Verdadeira Luz. E essa Luz, assim como o avental branco com pele de cordeiro, alude a Cristo.
              
O avental branco é oferecido ao iniciado como prova de estima e consideração por ter enfrentado e vencido a Rainha da Noite. Há, no meu entendimento da famosa ópera, íntima ligação entre a brilhante Luz, Cristo, e o avental branco simbolizando a pureza, a inocência e a paz. A cor branca, por reunir todas as cores, denota o sentido fraternal do amor cristão entre os homens.  Também simboliza santidade e reverência. Mozart revelou em sua obra transcendental, a intenção de ligar o seu espírito ao alto.  Posso perceber a insubstituível inspiração divina em toda criação artística.
              
É um presente aos olhos enxergar o campo de trigo branquejar para a ceifa; imagino, pela narração bíblica, a figura de Cristo, no monte, transfigurado em suas vestes resplandecentes e brancas.  O apóstolo Marcos, comprovando a eterna deidade de Cristo, conta nesse versículo a narrativa de Pedro, Tiago e João: Brancas como nenhum lavadeiro as poderiam alvejar.
                   
Interpreto o valor simbólico do Avental Branco mais antigo e prestigioso do que o Tosão de Ouro ou a Águia Romana. Mesmo a Ordem da Jarreteira, honrada e digna, não se aproxima da glória e da beleza do Avental Branco, ‘símbolo da inocência e o laço da amizade’. O princípio cristão assevera que Cristo nos honra sempre. É fundamental para chegar à sua gloriosa presença Lhe devotar toda honra. Então, se nunca O desonrarmos Ele nunca nos desonrará. Eu creio que tudo isso é verdade como vejo a lua prateada surgindo por trás da mata. Viajo em busca da Luz, tocando a minha flauta mágica para vencer os perigos escondidos na floresta. 

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 30 de março de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultura, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista