segunda-feira, 15 de abril de 2013 | By: Doracino Naves

Bola murcha


A bola de couro bateu no arame farpado que cercava o campo de futebol. Silêncio. Foi possível até ouvir o ar comprimido sair chiando do balão. Restou só uma pelota disforme de pelanca seca; a bola estava irremediavelmente furada e a turma de meninos abobalhada com a inesperada perda. Sem uma bola para animar a “pelada” naquele campo de terra, tudo perdera a graça; o campinho de futebol parecia um teatro vazio. Havia indignação no olhar daqueles artistas mambembes de caras sujas e magricelas de pés encardidos. 

Como pode alguém dar um chute e acertar justamente a ponta mais saliente e afiada do arame. O  insolente bem-te-vi, apressado em contar o que vira, soltou o seu canto traidor. Todos olharam o autor da proeza com ligeiro desprezo e fizeram um círculo em volta do pé torto. Senti-me como se fosse um cavalo acuado por cachorros que, de repente, empaca e dá voltas em torno de si mesmo para afugentar os cães. Se, como acontece com o cavalo quando acossado, não os escoiceei, foi porque a frustração de ser um perna-de-pau doía mais em mim do que a expressão decepcionada da molecada. Isso logo passaria porque criança esquece logo.
                
Um dos meninos, ao recolher os restos mortais da bola, assumiu rapidamente um aspecto de poeta: não mate a bola. Logo se aproximou o dono da pelota, Toninho do Jucão. Pois é, no interior as pessoas são conhecidas assim, por um apelido que lembra o pai, a mãe ou um parente próximo. Ou remete aos trejeitos do gajo. Essa é a cultura do interiorzão do Brasil. Toninho tinha o insofismável jeito de dono do jogo. E, discreta, mas firmemente, exigiu que eu lhe pagasse a bola com um cruzeiro por semana. Senão... Como ele era mais forte, concordei. Com isso, o dinheirinho que ganhava do meu pai iria todo para pagar a bola furada. Adeus sorvete no bar do seu Joviano; fim do pudim de leite da rodoviária; também não sobraria nenhum centavo para as balinhas da venda do Massaki.
                    
E, além disso, fui forçado a fazer a minha primeira dívida. O pior é que eu sequer tinha mesada definida por meu pai. Embora chateado, eu nada dissera a meus pais sobre a dívida. Só um amigo mais próximo, o Nelson, sabia da minha cruz. Fui pagando as prestações no dia marcado pelo meu credor. Uma vez meu pai viajou e eu não tinha como pagar. Nelson me emprestou um cruzeiro para quitar a prestação da semana. A viagem do meu pai durou mais tempo do que o previsto. O Toninho, bem maior e mais velho do que eu, me ameaçou com surra caso não quitasse a dívida. Aguentei calado pensando numa saída.
                      
Parei de zanzar pela cidade como fazia sempre. Fiquei com medo de apanhar daquele brucutu. Um belo dia, bendito seja esse dia, chegou a Palmelo um primo do Nelson que morava em Goiânia e tinha fama de valente. E o Nelson contou-lhe o meu drama. Lembro-me bem de que, numa tradicional quermesse da cidade, o Edson, esse era o nome do primo do meu amigo, aplicou uma sonora e retumbante surra em Toninho. Edson ainda exigiu que a dívida fosse esquecida, pois fora acidente de futebol. Achei justo e libertador. Depois desse dia passei a andar livre e solto pelas ruas de Palmelo. Toninho, o filho do Jucão, nunca mais me incomodou; tornamo-nos amigos e esquecemos o incidente.
                
Menino esquece rápido; a tristeza dura um instante. Um instante... Depois fica sossegado e sorri por qualquer graça. Até quando dorme. Criança adormece sorrindo porque o seu coração é puro como se anjo fosse.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 13 de abril de 2013)
            
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

0 comentários:

Postar um comentário