segunda-feira, 25 de junho de 2012 | By: Doracino Naves

O meu rancho não é mais rancho

Simão, o Sem Caráter, sopra no meu ouvido uma rima pobre, porém, de muitos significados: “Enxada é Duas Caras, querosene é Jacaré, mulher é morena, caminhão é Chevrolet”.
Antigamente era comum ouvir isso, principalmente na roça, em tempos de dificuldades. E mesmo em tempo de vacas magras o roceiro vê o mundo com humor; a mulher morena no meio do verso mostra isso.
Estranha essa vida que viaja no lombo do tempo despejando recordações que alivia nossa pena e, ao mesmo tempo, forja grilhões de ferro a nos prender no tronco das coisas antigas. A alma da minha primeira casa, um rancho de pau-a-pique, em Porto dos Barreiros, ainda viaja no espaço etéreo da imaginação. O esqueleto feito de pau e folhas de coqueiros tombados pelos anos está enterrado num lugar qualquer das Minas Gerais. Aquele rancho não é mais do que uma imagem amarelada pelo tempo; o meu rancho não é mais rancho. Não se perdeu, transformou-se em adubo das pequenas flores do campo.
A enxada que ajudou o meu pai a ganhar o primeiro pão da minha vida diminuiu no capinar da terra até ficar pequena e inútil. E o querosene da lamparina transmutou em fumaça a esquentar o planeta. A mulher morena ficou loira; o caminhão virou sucata comida pela ferrugem. Tudo virou pó e eu, inexoravelmente, vou pelo mesmo caminho. Comparo a vida ao trem-de-ferro que ia de Araguari a Goiânia, engolindo os trilhos da estrada, embarcando e desembarcando os passageiros em cada estação.
Um dia qualquer, lá pelo fim de 1967, quis rever os amigos de Palmelo, onde morei por seis anos. Desembarquei em Pires do Rio, distante seis quilômetros. Havia passado cerca de oito anos depois que minha família se mudara para Goiânia. Na primeira hora do dia fui visitar o meu tio Dedé, então dono de uma pequena loja de Tecidos.  Ali aportei a imensa saudade da infância enfiado no saco de lembranças; o futebol na rua, o circo, o cinema improvisado num galpão da casa do dentista  Seabra, os folguedos e as brincadeiras de crianças.
Encostado no balcão eu vi quando chegou uma mocinha com um bebê no colo. Não reconheci Maria, afinal já havia passado muitos anos. E estava casada, coisa que jamais imaginara para a, então, menina do meu tempo. Redescobri-a quando falou o meu nome. Percebi o quanto mudara nesses anos. Seu corpo de menina fizera-se em curvilíneas formas. Seus cabelos negros desciam até os ombros.  Os olhos castanhos refletiam a peça de cambraia bege refletida pelo sol. As mãos, ah, as mãos de Maria.
Olhei direto para aquelas mãos que um dia, numa brincadeira de passar anel, prendi-a entre as minhas. Segurei as suas mãos por alguns segundos com a sensação gostosa do despertar de novos sentidos, então desconhecidos. Aqueles segundos pareceram séculos de doce e inesquecível enlevo. Seus olhos baixaram como se adivinhasse os meus pensamentos. Mas, o tempo era outro e ela estava casada. Maria se despediu e desceu a rua empoeirada. Mudei a prosa e o verso se foi.
Comecei outra conversa com meu ti. Tem dias que penso em tudo o que vivi. Sou o mesmo menino de Porto Barreiros ou Palmelo que numa quinta-feira de lua cheia encontrará, num lugar remoto e distante, as almas dos companheiros da caminhada terrena, tão longa quanto as lembranças.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.programaraizestv.net). Escreve aos sábados no DM.                      
                 
segunda-feira, 18 de junho de 2012 | By: Doracino Naves

O Meia Ponte corre para o sol

Nesse sábado deixei a amada na cama e zanzei pela cidade. O relógio nem chegara a seis horas. Uma parte da população ainda dormia; a outra, menor, descia dos ônibus que chegavam ao Centro de Goiânia. Gente de todos os jeitos; todos com cara de sono. A maioria é de mulheres madrugadoras que chegam para o trabalho. Aonde vão tantas pessoas antes do raiar do dia? Para o trabalho, ao hospital, visitar alguém, ou passantes com destino a outro bairro? Tentei adivinhar se vinham ou se estavam voltando. Percebi, pelas roupas amarrotadas de alguns, que estavam voltando para casa; guardas-noites, anjos solitários, que vigiaram o sossego de alguns prédios.
          
Um monte de gente saíra logo cedo em busca de um sonho, talvez muitos. Ou, talvez, para realizar o sonho de outros; isso é tropeçar na dificuldade  da vida. Algo assim, como tropeçar descalço nos tocos do trieiro, na madrugada fria da roça. Tropeçar sem botina dói a cabeça do dedão do pé, quando não dói o pé inteiro. Um palavrão sai incontinenti da boca. Com medo de assombração o roceiro logo pede perdão pela blasfêmia.
           
Uma mulher de meia idade me pergunta onde é a Rua 3. Antes de informar, pergunto o faz na rua a essa hora. Responde que procura emprego para o seu filho, numa loja de um parente distante.
          
-É pra tirar o menino da rua, ficar longe das más companhias.
          
Ela desce pelo canteiro central da Avenida Goiás. Nem perguntei o seu nome. Seu corpo, de ancas fartas, balança dentro de um vestido rodado, mais largo do que o normal. Alunos do Lyceu e de alguns colégios vizinhos passam com mochilas toscas às costas. Deixo o meu pensamento de jovem metransportar ao reino das emoções de outras épocas, quando tinha a mesma idade. Imagino os sonhos que passam na cabeça de tantos jovens. Uma doce e fraterna sintonia me liga à pressa dos adolescentes. Continuo andando.
           
Paro numa lanchonete vagabunda, dessas que existem no centro da cidade para atender os passantes mais apressados. Interessante, observo que as pessoas que, hoje, andam pelo Centro não são daqui. Talvez dos bairros da periferia.  Na lanchonete que vende um suco e um salgado por um real, ouço a rádio CBN com o noticiário matinal. Um pai, Cláudio, faz um apelo dramático para que alguém o ajude a arrumar uma internação para o seu filho de 26 anos, viciado em drogas.
            
Pede, emocionado. Sai um soluço e logo vem o choro compulsivo. Seu desespero conta, brevemente, a história do filho: pequeno na roça; seu começo de estudos numa escola pública; a descoberta do envolvimento do filho com as drogas; o vício que destruiu a vida da sua família. E o pai, convicto de que alguma ajuda virá, declara o seu amor ao filho. Diz que a sua luta vai continuar até livrar o filho do vício. Choro com Cláudio por perceber a insofismável distância das pessoas que se fecham ao problema alheio e dos governos que constroem estradas e prédios, mas não cuidam dos caminhos dos dos jovens. Com o passar das horas um formigueiro de gente circula pelas ruas.
            
Em Goiânia tem prédios, muitos.Tem ruas e miríades de árvores e flores espalhadas pelas ruas. Goiânia tem córregos e tem rio; o Rio Meia Ponte que corre para o sol. Então, eu me lembro de um trecho da poesia de Fernando Pessoa: O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio da minha aldeia/Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
             
Que estúpido sou eu que não percebe que a infelicidade do outra é minha. A memória da minha nave está ressuscitada pela graça  do sol. Penso nela...

Imagem: O Grito - de Munch
            
Doracino Naves, jornalista;diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizestv.net). Escreve aos sábados noDM.
terça-feira, 12 de junho de 2012 | By: Doracino Naves

Uvas brancas

Movido por um vislumbre de luminosa presença em dois tempos, um século antes e hoje, e se eu pudesse me entregar  a um registro  mágico, mostraria as fotos da mata fechada e o cerrado escolhidos por Pedro Ludovico para a construção de Goiânia e, os dias hoje, com a capital praticamente consolidada. 

Perceberia, como se fossem auras a iluminar os chegantes, os portais de entrada sendo erguidos com milhões de luzes multicoloridas; cada uma representando uma alma que aqui chega ou aqui nasce. Feliz de quem conhece a causa das coisas. O futuro reservou a nós um feixe de louros e galhos de palmas para os melhores momentos. Nossa missão é fazê-los acontecer. Cada entrada da cidade cintila numa dimensão cósmica, plasmando uma tradição: a mineira; a paulista; a nordestina; a sulista ou de outros países.
 
Elas representam, individualmente, um povo. Dórica? Jônica? Compósita? Corintía? Toscana? Goiânia é um universo de terras  cuidadosamente separadas pelo Criador. A imaginação aqui trabalha igual formiguinhas num pé de laranja.São muitas goiânias numa só. Vidas que se enlaçam e projetam cintilante pó de pirlimpim. Na cidade dos anos 1960 Gabriel Nascente inventava submarinos; Aidenor Aires arriscava os primeiros versos engabelando as donzelas da Vila Nova; Eurípedes Leôncio percebia a escrita numa gráfica do centro. E Miguel Jorge? Talvez perdido no ermo da Vila Coimbra ou misturado nas Veias e Vinhos do Bairro Popular. Havia sonhos, mas havia o ócio. O ócio  e o tédio são caminhos que podem nos levar ao sonho ou ao desespero; só o poeta é capaz de construir metáforas trilhando os solenes e arrebatadores atalhos da poesia. Não há enfado para o poeta. Ele descobre os lugares escondidos da alma numa busca loquaz até achar o verbo.
 
Ao redor da vida, o jardim goianiense;  a contínua e fechada mata expunha a careca do cerrado com as verrugas dos cupinzeiros feitos com terra vermelha e branca-cinza. Longe, bem longe, o diorama da serra da macambira, hoje Serrinha. No Centro, postes de aroeira sustentavam toscas lâmpadas iluminadas por um motor de navio. O período de férias trazia preocupação sobre o que fazer. Os rapazes, ávidos, forjicavam meios de ocupar o tempo. O Lago das Rosas perdera os encantos por ser um lugar marcado pela tragédia de repetidos afogamentos. O campo de terra do Bosque do Botafogo só se  fazia opção quando tinha jogadores suficientes para formar dois times.Restavam as matinês dançantes nas casas da família. A zona do meretrício, muitas vezes plácida Escola de Rembrandt,  ficava pelas bandas de Campinas; proibida para menores.
 
Restava-nos  o cinema; palco de luzes a clarear as deusas de Hollywoood. Mesmo quando o sol brilhava lá fora, a sala escura amoitava mãos espertas e o grito de Tarzan abafava as juras de amor, eterno enquanto durava o filme. O fim da sessão também encerrava encontros furtivos e secretos. Continuar o namoro, quem sabe? Férias, ócio; a monotonia é tediosa e corruptora. Nada mais perigoso do que o não ter o que fazer. Nossos pais nos desejam o céu; o mundo o inferno tormentoso.
 
No meu tempo de espera, que já dura décadas, posso ver o passar dos tempos nas retinas dos olhos com colunas de densas imagens. E elas são umbrais que sustêm as vergas do tempo. Quero ser um universo que se encanta no meu chão enfeitado com um docel de estrelas formado por cachos de uvas brancas da região do Minho.
 
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Joranlismo Cultural, na Fonte TV(www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DM.
segunda-feira, 4 de junho de 2012 | By: Doracino Naves

Aprendiz de tuba

Quero ser um cadáver jovem e bonito. Acho que todos nós queremos ser assim. De preferência com o rosto corado e sorridente. De olhos bem vivos. Alguém dirá: “Ué, nenhum cadáver é assim!”. Não é mesmo! 

Mas, todo morto que se preza deve se apresentar para o juízo final com um aspecto cansado, olhos fechados e tristes para merecer a indulgência do Pai. Isso pode ser uma esperança. Mas a morte, não, é real. Mesmo que lutemos bravamente para sermos eternos ela vem implacável e sem aviso. 

Às vezes chega mansa e noutras furiosa como a onda gigante dos mares asiáticos. Impiedosa, ela deixa, literalmente, o corpo aniquilado. Por isso a aparência de todo cadáver é a de uma flor murcha. Nem a teoria ressurgente de Nikolai Federov vence os limites humanos da morte. E o homem continua vagando pelo espaço vendo a morte como insolúvel solução; a única porta que vislumbra o Eterno.               
           
O bochicho nos velórios é o de que o morto descansou.
            
- Chegou a sua hora, por isso ele foi para a Luz.
            
 A impressão que tenho, tentando prever o que vem no galopar das eras, é que serei um cadáver comum como a maioria; derrotado pela fatalidade. Cioran provoca dizendo que a certeza da não salvação do corpo é, na realidade, a salvação da alma. É com essa fé que mergulhamos nas cogitações do espírito. De caráter mais prático, a filosofia popular de Simão, o Sem Caráter, diz que o homem, com o passar dos anos, fica parecendo o fuso da roda; fino nos extremos e roliço no centro. 

Alude, ao seu olhar, ao afinar das pernas e bunda, ombros e braços pela flacidez impiedosa do tempo; com a barriga saliente formando uma bola no meio do corpo. E o vira-e-mexe do fuso para frente e para trás representa a maçaroca do mundo em que nos metemos ao nascer. Cada canta a música da eternidade numa total desarmonia com a natureza. Se ela tivesse olhos de ver, perceberia que somos, enquanto indivíduos, mais desafinados do que aprendiz de tuba. Só a generosidade e o amor podem triunfar sobre a morte. As boas causas duram para sempre.
            
Penso que o terror da morte talvez seja o medo de ficar sozinho do outro lado, amarrado numa pedra como ficou Prometeu depois de roubar o fogo. “Não me posso calar, nem protestar contra a sorte que me esmaga! Ai de mim!”. E aí, quando o corpo sucumbir diante da sua sorte o espírito viajará pelo cosmo como estrela no eterno firmamento do cosmo; a face refletida pela eterna manhã.  

             
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV (www.raizesjornalismocultural.net). Escreve aos sábados no DM.