terça-feira, 8 de setembro de 2015 | By: Clara Dawn

Poeira da estrada nas árvores

   
A paisagem da minha alma de noite é a mesma de dia; basta virar do avesso.  Se eu morrer amanhã, seu doutor, com o espírito virado, ou não, chego rapidinho ao céu. Este intertexto com Fernando Pessoa e Zé Kéti foi proposital. Talvez seja um jeito de afastar de mim o enfastio de setembro no cerrado. O drama do cerrado é antigo. Mas nenhuma árvore desiste; espera, resignada, que a chuva caia logo na terra seca. Eu também não desisto até que chova.

    Enquanto isso o carro de bois levanta o pó da estrada. O canto fino, chorado, repercute longe, como se fosse o zumbido de mosca-varejeira no silêncio do sertão.  Ao passar pela grota do córrego o carro de bois engrossa a voz ao som de um baixão. O refluxo dos bois de guia faz a junta do cabeçalho refluxar; o carro quase para. Cresci ouvindo o carro de bois carregado de milho e a boiada atravessando as ruas da cidade num cortejo lento até passar em volta do cemitério.

      Houve época em que desejei ser enterrado em Porto dos Barreiros, sertão de Minas Gerais, onde nasci. Mas, quá! meu Porto dos Barreiros está inundado por uma represa insensível que apagou as trilhas tatuadas na terra vermelha. Mesmo assim dedico esta crônica ao verme que primeiro roer minhas carnes mortas. Ora bolas, fiz mais uma travessura com o texto original de Machado de Assis. Na verdade, o mundo é uma intertextualidade gritante desde as eras ancestrais. Homero escreveu Ilíada e Odisséia com as fagulhas do que estava escrito nos céus.

      Olho para cima, chover que é bom, necas! E a secura do ar confunde minhas ideias. O sol na moleira transforma o que é natural em sobrenatural.  Vejo-me rodeado por almas penadas, daquelas que habitam as ruínas do meu tempo.  Milhares delas estão sem rumo por causa do sol aceso no céu sem nuvem. Algumas se escondem numa tapera à beira da estrada, outras no descampado cutucam um tamanduá bandeira que corre com passos trôpegos. Na mata fechada Saci sopra seu cachimbo. Um assovio vindo da copa de uma paineira avisa os animais sobre o perigo iminente de uma onça faminta. Um copo de água fresca do pote afasta minha cabeça do delírio.

        As obras literárias clássicas foram escritas sob o domínio do drama ilusório; sofrimento, medo e aflição é o prato principal de uma obra literária; o ambiente, a sobremesa.    

        Antes da chuva, o pó da estrada se assenta nas árvores qual picumã grudado nas folhas. Talvez nem sejam árvores; pedaço de poeira em forma de desenho assimétrico é o que vejo. 
        Ou então é um fantasma na estrada a reter a poeira dos espíritos que passam pelo universo, de dia ou de noite.  

        Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raízesjornalismocultural.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00.
       
terça-feira, 4 de agosto de 2015 | By: Unknown

Do lado direito do sol

         Criança é a poesia ligada numa tomada com duzentos e vinte anjos. Poeta se imagina criança conectada com o universo das imagens.  A epifania desta crônica revela a sobrenatural tentativa de fugir do supérfluo mundo das aparências. Gosto de jogar as palavras no papel com o pensamento lúdico de viajar para o lado direito do sol.  Esse o jeito que encontro para enfrentar a vida; pode ser mais uma tentativa de enrolar a morte inexorável com a agradável fantasia dos sentidos.
          Rubem Alves, disse que “cada velho tem, dentro de si, uma criança que deseja brincar”. Então, quando eu morrer, quero nascer de novo criança, carregar água na peneira, à imagem de Manoel de Barros. Essa ideia de que o sol tem lado é do Menino do Mato, “ele me disse que do lado esquerdo do sol voam mais andorinhas do que os outros pássaros”. Não sei a resposta certa a essa questão, mas a precisão poética está no poema Joaquim Sapé.
           Transformar imagens em palavras é ofício de escritor. Gabriel Nascente, o menino com franjas de doce das laranjeiras, é poeta de tempo integral “tatuando borboletas no dorso dos horizontes”. O universo é a macro poesia do Criador; o verbo, síntese transcendental, é o microcosmo do poeta; adivinho dos afetos, da morte e das paixões. Isso mesmo; poetar é fecundar a aridez desértica da existência.   
           Ele vive, à exaustão, a dor metamórfica. E ainda se faz castiço para interpretar a vontade de Deus que sempre tem algo a nos dizer.  Assim como é a criança que conhece a alma dos adultos, sabe tudo; do começo ao fim. Para Gilberto Mendonça Teles “O fim do mundo começa no fundo meu quintal, nas sombras daquele muro de taipa que se eleva até as nuvens e me obriga a imaginar o que está do outro lado, nos limites ou no sem-fim da forma inatingível – essa que o azul do tempo borda ou disfarça no invisível das folhas da mangueira”.
           Pois é. Preste atenção em quem escreve ficção. Se ele não se tornar menino o texto fica gago. Ariano Suassuna, menino-moleque do sertão nordestino, vestia a roupa da travessura para contar seus causos. Chicó, seu personagem em O Auto da Compadecida, era um doido menino que contava mentiras. Numa de suas entrevistas Suassuna disse ter “simpatia por mentiroso e doido. Como sou do ramo, identifico mentiroso logo."
           Todo escritor é um mentiroso que finge dor ou alegria; ou os dois juntos. Geraldinho foi um mentiroso alegre que Hamilton Carneiro conheceu em Bela Vista. A história da bicicleta é mentira. Nilton Pinto, outro mentiroso incorrigível, tem a pureza lírica da gente da roça. E sabem por que a dupla com Tom Carvalho dá certo? Porque, agora, são dois mentirosos. No bom sentido, claro.
           Gente estou esquecendo o tema de hoje: crianças.  
           Elas não podem viver bem sem a poesia que alumia os caminhos escuros da alma. Menos notícia, mais poesia!
           Nada melhor para explicar um pensamento tosco, como é o deste cronista, do que recorrer a Carlos Drummond de Andrade. “A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem”.
           Penso que o poeta, igual aos meninos, vivem a colorir pássaros, qual berloques de dançarina espanhola.
           Criança é poesia, ainda que o Poeta não a houvesse criado.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM- Revista - Goiânia - Goiás em 01 de agosto de 2015)
terça-feira, 14 de julho de 2015 | By: Unknown

Marcado para morrer


       Assisto na televisão as cenas do documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.  Viajo de volta ao tempo em que andava de trem entre Araguari a Goiânia. Em uma das cenas do filme, um grupo de crianças desce do trem junto com mãe camponesa com uma trouxa de roupas nas costas; tipo retirante.  Atrás, ia o pai com uma surrada mala de couro cru. O filme, pensado inicialmente, para mostrar a luta no campo, narra também o assassinato de João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé, interior da Paraíba.

       Aquela passagem de crianças, ainda de calças curtas, em fila, saltando as escadas do vagão, lembra a mesma em que eu descia, antes de todos, na estação ferroviária para contar, de um a sete, meus irmãos menores. Tinha medo de que um deles pudesse se perder no meio da multidão de viajores apressados.

        Meu pai começara a vida trabalhando como lavrador em Porto dos Barreiros, Minas Gerais. Até meados do século passado havia muita pobreza no campo, daí começou a migração para os grandes centros urbanos. Sou pedaço dessa história cigana que fugiu da “precisão” para dias melhores. Tenho um pé na roça e minhas raízes continuam fincando ao pé de um mourão, hoje submerso pelas águas do Rio Paranaíba, com meu nome desenhado a canivete por meu pai.  

        Pois é, Porto dos Barreiros, a minha Atlântida Perdida, está coberta pela represa de uma hidrelétrica. A cidade mudou de lugar e minha alma vaga por terras que jamais sonhara visitar. Por essa causa - penso que as recordações da infância afligem a vida de todo mundo -  uma cena ou uma palavra puxa a lembrança de algo que se foi.  Noutro dia, Tio Galdino, o pai do filho do homem, se lembrou da época em que eu, já morando em Goiânia, passava as férias escolares em Porto dos Barreiros; chegava sempre com uma capanga de objetos pessoais nas mãos. Aí, comparando os períodos, percebi a diferença daquele tempo. Dá dó a pureza dos meninos da minha geração.

        Nem uma mala para levar as pobres roupas. Não me importava a simplicidade em que vivia. Ao contrário, era feliz e alegre; ingênuo e bobão, da mesma forma que sou hoje; o bobão da Lorinda que acredita em todos. Deixa essa conversa para outra hora. 
        O documentário feito pela equipe da UNE Volante é um retrato irretocável das lutas sociais dos pobres explorados, à última gota de suor, pelos ricos. Os governos passam e tudo continua igual. O número de pessoas pobres aumenta na mesma proporção que o dos ricos. A vida puxa uns para cima da arrogância e outros abaixo da linha da dignidade. E o pião da existência continua girando.
    
        Nesta manhã de sexta-feira, ainda com o ar fresco da frente fria que invadira Goiânia no meio da semana, uma mulher pequena e magra, vestes maltrapilhas, varre a calçada da Caixa Econômica Federal, próxima à Praça Tamandaré, Setor Oeste.

        Logo percebo que não é uma gari da prefeitura.
        
         - Bom dia. Falei resoluto.
     
         Ela não respondeu; sequer olhou para mim.

        “Parece doida”, falei com meus botões.

         Lembrei-me de Cachoeira, a doida de Palmelo que usava roupas encardidas e exalava cheiro de alho mascado. Cachoeira falava com espíritos; discutia calorosamente com as vozes do além. Eu não acredito em espíritos falantes, mas confio na santa doidice dos doidos.

          Também creio no zunzunzum cósmico de que estou marcado para morrer.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 11 de julho de 2015)          

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, wwwraizesjornalismocultural.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00. Escreve aos sábados no DM Revista.
segunda-feira, 18 de maio de 2015 | By: Clara Dawn

No campo tem curriola



                        
 “Periquito tá roendo o coco da guariroba/Chuvinha de novembro amadurece a gabiroba”. Esse é o começo da trilha sonora mais conhecida de Goiás. Nossas manhãs de sábado perdeu, pela retirada do programa Frutos da Terra do ar, o cheiro e o gosto das frutas do cerrado. Esses sentidos eram despertos pelos acordes e os dois primeiros versos da música do mesmo nome do programa semanal; última cantada de João Caetano na TV Anhanguera. Fernando Perillo, primeiro a gravá-la, Genésio Tocantins, vocal do Musika, Marcelo Barra e Pádua também cantaram o hino do programa.
                         
A cultura popular sente a perda irreparável do programa mais goiano da história da televisão. Frutos da Terra continua na nossa imaginação. Mas Goiás perdeu a mais importante trincheira de resistência cultural para a enxurrada da aculturação globalizada. Imagino que um programador da Rede Globo decretara: a televisão regional que se dane!
                         
Os olhos e ouvidos da maioria expressiva no estado - a que mora no interior ou os filhos e netos que vivem em Goiânia - conservou seus hábitos nas manhãs comandadas pelo mestre Hamilton Carneiro. Quem veio de fora também foi tocado pelas nossas tradições e a simplicidade arrebatadora de Hamilton Carneiro.  Ele teve a companhia de um timaço: Carmo Bernardes, Bariani Ortencio, músicos e contadores de causos; Geraldinho, Nilton Pinto, Tom Carvalho e Ostecrino Lacerda. A tradição goiana ganhou, na força daTV, a magia da roça expressa no jeito goiano de viver. “E não tem nada mais doce que araçá dessa terra”.
                       
Ainda ecoa no sertão do Brasil Central a música  composta por Genésio Tocantins e Hamilton Carneiro para abrir o programa mais longevo da televisão goiana. 32 anos e 1403 programas feitos com o olhar criterioso do apresentador. Um acervo e tanto, não é, Hamilton?  Nesse brejo tem ingá.

Pois é. Frutos da Terra tem as mais belas imagens do povo de Goiás, retiradas da sensibilidade de ouvir e perceber o outro. Hamilton faz o cruzamento de frutas do cerrado com passarinhos para obter gorjeios e canções; olhar seráfico na escolha de seus convidados. Mágica do poeta Manoel de Barros, o menino do mato que fazia parte da natureza; imaginou uma formiga ajoelhada na pedra. A canção de Hamilton é a metáfora maravilhosa  da fartura do cerrado.

A TV Anhanguera subtraiu do telespectador o direito de acesso às nossas raízes; Frutos da Terra foi para a guilhotina. Talvez seja a hora de os movimentos populares irem para a rua pedindo mais cultura. Por que não? Cultura também é um direito do cidadão.

Noutro dia, em Piracanjuba, Maria, uma mulher comum, do povo, se dizia triste por causa do fim Frutos da Terra.

- Coitado do Hamilton, ouvi falar que ele está muito doente. Eu oro por ele com um galho de arruda pedindo a Deus para lhe repor as virtudes do corpo.
                     
Respondi:

- Hamilton está bem de saúde; firme no trabalho da sua agência de publicidade. Continue orando, pois todos precisam de prece.
                      
Mestre Hamilton, fazemos um pedido: volta com o programa Frutos da Terra, mesmo que seja em outra emissora. Os artistas, sem você a divulgá-los, perderão shows e a oportunidade de mostrar a força de uma cultura rica e diversificada.
                   
O público, excluído das decisões, perde mais. Certamente que uma pesquisa feita em todo o estado de Goiás mostraria a grande audiência do seu programa. Talvez outra emissora já tenha percebido a falta que você faz com o seu Frutos da Terra.
                  
Aí o rumo das coisas pode ser diferente.
                   
“Tem uns pés de marmelada depois que passa a pinguela...”.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Sábado, 16/05/2015 - em Goiânia - Goiás)
sexta-feira, 15 de maio de 2015 | By: Clara Dawn

Simão manqueba

         

Aos dezesseis descobrimos coisas maravilhosas. Alguém pode ter uma experiência de vida inusitada antes dessa idade. Mas, só aos dezesseis anos isso se eterniza, sublima ou passa à memória. Foi assim com Simão, o Sem Caráter, personagem que já me deu muito trabalho.  Na última vitória do Anápolis sobre o meu Vila Nova, ele me aparece no Serra Dourada para dizer que o Tigrão iria perder o jogo. Batata! 3 a 1 para o Galo da Comarca.

       Quando fez dezesseis, Simão Sem Caráter foi à Zona. Na antiga Avenida Bahia, em Campinas, iniciara a sua vida sexual com uma prostituta do baixo meretrício de Goiânia. Ele dizia que a Zona da elite ficava na Rua P-16. Preferia puta pobre por ser mais fogosa. E o preço era menor. As putas da Bahia não pediam Cuba Libre que custava dez cruzeiros; Caipirinha, sim, custava só um. Jamais pagaria Cuba Libre a uma puta.

        Com dezesseis viu a ditadura militar assumir o governo do Brasil. Nem comunismo, nem capitalista; soviéticos ou americanos, farinha do mesmo saco. Em uma dessas visitas ao prostíbulo viu um par de muletas encostadas no muro de entrada da casa de Dilurdes. Jogou-as no quintal baldio e entrou certo de não haver testemunha. Lá dentro, olhou em volta para saber quem poderia ser o dono; permaneceria na sala até descobrir. Nisso chegou Pedro Montanha, um policial civil forte e violento . Muita gente tinha medo das reações intempestivas de Montanha. Com o pé direito engessado se apoiava em Dilurdes.

        “Eis o dono das muletas.” Tremeu de medo só em pensar que alguém poderia tê-lo visto no malfeito.

         Ficou quieto alisando as pernas de uma mulher com cintura de tanajura. Logo ouviu a explosão irada de Pedro Montanha.

        - Qual foi o filho da mãe que pegou minhas muletas?!!

        Diz a cultura popular que o bom cabrito não berra. Simão ficou no seu canto, com a eterna cara de peixe morto; jeito manqueba de ver o mundo; sem coragem para assumir nada; indeciso, em cima do muro. Deixava a peteca cair sem remorso. Um alvoroço dos infernos se instalou na putaria. Gente para todos os lados e nada de encontrar as muletas. Até o cafetão Jair saiu à rua para procurar. Ninguém as encontrou, embora todos procurassem até em lugares antes procurados. O medo era visível.

         Montanha espumava a boca de ódio; as veias do pescoço dilatavam a cada acesso da fúria.  
     
        -Vou matar o engraçadinho que fez isso.

        Simão Sem Caráter, um monte de merda inqualificável, permanecia inerte. Agora com a mão atrevida na cinturinha de pilão. Mesmo na desordem a casa das damas continuava a funcionar. Percebendo que Simão não ia render nada, a acompanhante preferiu encontrar um homem com dinheiro para gastar.

          Outra mulher saiu do quarto; terminara o seu serviço.

         - Por que essa gritaria?

         Dilurdes explicou o acontecido.

        - Ninguém sabe onde foram parar as muletas de Pedro Montanha.
        - Eu sei onde elas estão.

       Chamou Jair.

        - Vamos ali. Eu vi um homem jogá-las no quintal ao lado.

       Montanha esperou a mulher devolver as muletas.

        - Quem fez isso?

        Simão se moveu com indiferença.  A mulher respondeu.

        - Não sei. Estava escuro; vi apenas o vulto de um homem. Não sei dizer mais nada.

        Pedro Montanha saiu inconformado. Antes de ir embora ameaçou:

        -Ainda vou descobrir quem foi o safado. Aí então...

        Simão coçou a cabeça.

        Viu a mulher que encontrara as muletas chegar mais perto.

         -Paga um cuba, meu bem?
       
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista em maio de 2015)
segunda-feira, 23 de março de 2015 | By: Clara Dawn

Sou daqueles...

            
Bertha Worms - 1868/1937
Sou daqueles que já subiu em ônibus, usou bicicleta para ir ao trabalho, viajou de trem de Araguari a Goiânia, e pernoitou em rede enquanto a gaiola atravessava o Rio Amazonas. Também tive um fusca azul com rádio e toca-fitas modernos. Sou assim, vivo e guardo coisas para contar depois. Noutro dia, no Setor Oeste, próximo ao Pão de Açúcar, descobri uma nova profissão ao avistar uma mulher com seis cachorros quase que pendurados por finas correntes com tem-tenzinhos coloridos. Estava escrito na camiseta vermelha: “Passeadora de cães”. Enquanto os cães faziam cocô ela dedilhava um Iphone. Hábitos modernos. Hoje, por escolha, ando a pé pelas ruas e esquinas.
             
Fui engraxate no mercado da Vila Nova para ganhar uns trocados e ir ao cinema. Na Avenida Anhanguera com a rua 24 os gibis usados ficavam expostos para venda e troca; havia até câmbio negro. As sacanagens de Carlos Zéfiro custavam mais. Hoje, minhas mãos tremem e o coração acelera quando abro um livro de Fernando Pessoa; poeta de mil facetas.
             
Muitas vezes, literalmente, arrisquei a pele para tomar banho no córrego Caiapó, em Palmelo. Num desses dias apanhei de chicote trançado com tiras de couro de boi; o sinal da lambada ficou na perna por muitos anos. Também já pulei num lago, em Pium, para pegar uma capivara pela perna. Certa vez corri na praia do fuzil, no Rio Araguaia, atrás de um jacaré pequeno. Peguei-o pelo rabo; com a boca amarrada foi jogado na canoa. Hoje, de guarda-chuva azul, bordas amarelas, caminho sob as intrépidas águas de março que desabam do céu trovejante.
            
Quando interessava por alguma moça escrevia patéticas cartas de amor. Compus singelas peças de teatro que encenávamos no fundo do quintal da casa dos meus pais. Organizei rituais e cerimônias usados na maçonaria. Hoje, escrevo despretensiosas crônicas para o Diário da Manhã. Nesse tipo de escrita sempre escolho a amenidade às mazelas e maldades. Fujo do confronto sem causa.
           
Passei pela direção de grêmio estudantil em plena ditadura militar, nos anos sessenta. Estive vereador por Goiânia na legislatura de 1988 e 1992. A cultura foi o meu foco. Acompanhei, de longe, como eleitor, Henrique Santillo no seu ideal sobre o sofrimento do povo. Santilo foi um estadista que ficou sozinho à beira da estrada ideológica. Hoje, percebo os políticos como uma classe abúlica em relação às reformas que a população deseja.
          
Sou daqueles que gosta de andar a pé pelas calçadas; desniveladas e perigosas. Gostaria de voltar a viajar de trem. Vejo filmes antigos; prefiro os que me levam para longe da morbidez da televisão brasileira. Hoje, gosto de ver Brad Pitt e os filmes com roteiros argentinos.
         
Não tenho mais idade para arriscar a pele nas aventuras em córregos, lagos ou rios. Prefiro andar de guarda-chuvas aberto sob as chuvas amenas que caem nesta manhã. Quem sabe, ao final do dia, um chocolate quente. Ou a promessa de um sorvete nas futuras tardes de primavera na Praça Tamandaré. Tem hora que penso que minhas aleivosias vão me levar à loucura. Não sei se é pela mediocridade do meu jeito de viver ou se vem pela loucura dos outros.
         
Por essa causa escolhi a ideia de um Deus Todo-poderoso à dubiedade da maçonaria em relação ao sagrado. Fico louco com a falta de unção da maioria das pregações religiosas. Acho até que ando meio louco.
       
Assisto ao mundo de fofocas e polêmicas políticas nas redes sociais onde persiste a guerra das conveniências. O sangue da notícia policial gruda na tela da televisão. Desaprendo com tudo o que vejo e sinto.
         
Sei que nada sei; é a única certeza.  Estou ficando louco com a superficialidade de tudo e a falta da poesia para enfrentar o adverso.
          
Neste fim de semana vou, com a amada, para Piracanjuba.
         
Talvez sentar num banco tosco, à beira de um fogão caipira, ouvir as histórias interessantes dos roceiros sabidos e encontrar lenha nova para outras crônicas.
         
Sou daqueles que traz a loucura de todos os tempos para dentro de si.
        
Sou daqueles loucos...loucos...

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em 28 de março de 2015)
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015 | By: Clara Dawn

Uma pedra que cai

Não sei se o leitor já teve saudade das coisas antigas ao passar por uma casa, uma rua ou qualquer outro lugar capaz de formar uma cadeia de lembranças. Hoje vivi esse momento ao cruzar a faixa de pedestre da Rua 3, no Centro, próxima ao Jóquei Clube de Goiás. No mesmo lugar, em 1960, seguro na mão de meu pai, Zequinha Naves, atravessei a rua com destino à casa do Dr. Nelson Siqueira, já demolida. Hoje em seu lugar existe uma clínica. Lembro-me de que meu pai dissera que naquela casa morava um colega do fisco que se elegera deputado estadual, pelo PSD de Pedro Ludovico. O motivo da visita seria tratar de algum benefício para a cidade de Palmelo, onde meu amado pai era o Coletor Estadual.

Ao passar por aqui, a saudade dói no fundo da alma. Aprendi tudo com ele: honra, dignidade, amor ao próximo, essas coisas de um homem íntegro. Viveu sua exemplar história  de modo cristão. Enquanto Fiscal de renda, cargo no qual se aposentou, gabava-se de nunca haver emitido um Auto de Infração. Orientava mais do que punia. Se houvesse imposto atrasado esperava pelo recolhimento. Quando havia indício de sonegação fiscal pedia ao contador para corrigir e recolher o valor devido. Morreu pobre, mas com muitos amigos.

Ô de casa! A porta da residência do deputado Nelson Siqueira se abriu. Fomos convidados pela empregada a entrar. Na sala de espera tudo estava limpo e organizado. Um sofá de couro; mesa de jantar enorme coberta com forro de rendas brancas e cadeiras altas; um rádio, à pilha, em detalhes dourados; a cristaleira em estilo clássico combinava com a decoração. O piso encerado brilhava com cheiro de asseio. Tive a impressa, pela mesa grande e a quantidade de cômodos da casa, que ali morava uma família numerosa.

Não de morou e o  Dr. Nelson Siqueira entrou na sala. Recebeu meu pai com alegria e me saudou com carinho. Os dois conversaram sobre assuntos de política. Nem prestei muita atenção. Mas, ouvi quando ele perguntou sobre Santa Cruz, próxima de Palmelo; somente uma légua de distância.  Pensei comigo: Santa Cruz, Potira. Era o apelido da cidade. Jamais soube o motivo.  Entretanto, sabia que nenhum morador gostava de ouvir Potira. Vibrava de forma pejorativa aos ouvidos santa-cruzenses. Terminou a conversa. Os dois se despediram. Já na calçada agarrei na mão de meu pai; cruzamos a rua de volta, rumo à Avenida Anhanguera.

Desde então, sempre que passei por aquela casa recordava aquela visita. Pedro Ludovico, Nelson Siqueira, meu pai, José Naves Martins, o Zequinha. Até que um dia, penso que foi em 2013, uma máquina levantou poeira no trabalho de demolir a antiga casa. Na hora não encontrei motivo que justificasse a demolição de uma casa cheia de histórias para construir um prédio novo. Depois percebi que a modernidade, arrasadora, substitui os valores tradicionais. Paro para pensar no desfecho desta crônica.

Sem noção do modo de como terminá-la, vejo, surpreso, na capa do Diário da Manhã de hoje, quarta-feira, dia 24 de setembro, a notícia da morte do Dr. Nelson Siqueira. Sobrenatural ou não, pela coincidência inusitada, a notícia cai como uma pedra vinda do alto em velocidade crescente. Imagino que tudo tem um fim. Leon de Tolstói narrou a expectativa de Ivan Ilitch diante do sofrimento da morte: “Eu estou caindo... Não adiante resistir”.  

No começo da vida há um ponto de luz; depois, ao fim, essa mesma luz reaparece com prenúncio de que a morte pode ser um recomeço. Essa é a sensação quando a gente vê partir, rumo à grande morada celestial, alguma pessoa dedicada que viveu para servir ao semelhante. Tenho essa impressão do Dr. Nelson Siqueira; bondosa alma.

Aquele lugar, mesmo com prédio moderno, sempre me lembrará meu pai e as boas práticas da vida de pessoas honradas.