segunda-feira, 28 de janeiro de 2013 | By: Doracino Naves

Inútil de galocha


Hoje eu me sinto um inútil nessa paisagem. Mas, creiam, isso não é definitivo. Eu voltar depois da batalha interior, tal qual Ulisses voltou da Guerra de Troia. Creio no ideal da vida criado para manter o foco das pessoas determinadas. Mas, no panorama do mundo, pouco faço para melhorá-lo. Sonhar, trabalhar, conversar, ouvir e escrever histórias ainda é muito pouco. Saber que sou importante para algumas pessoas não me convence de que sou necessário aqui. Sou um inútil de galocha.

Ocupo meu tempo com coisa que julgo importantes, mas tudo continua o mesmo. Sinto-me mais espectador do que protagonista das cenas que se passam no teatro do mundo. Sou um cronista que fala daquilo que sopra nos meus ouvidos. Não sou erudito ao ponto de pegar um livro a cada minuto para ler. Prefiro o livro aberto escancarado do viver das pessoas. Porque não viajo nas ideias dos autores que leio, prefiro ler no livro escrito nas emoções, também sou inútil à literatura. E até quando leio nesse livro minha percepção é pequena; sou inútil de verdade.

Li muitos autores. Apreendi na memória muito pouco do que escreveram. Então, não saberia fazer citações teatrais convincentes além das que o meu espírito captou. Considero-me inútil também como leitor por não receber a influência da maioria que estudo; acho melhor observar os dramas diários, as comédias e até as tragédias no espreguiçar da vida terrena. Por essa causa me acho superficial e inútil.

Na maioria da leitura dos grandes clássicos quando não vejo utilidade nas palavras guardo-os gaveta. Ás vezes percebo que o nem o autor acredita no que escreve. Escrever sem crer no que faz é o fim de um escritor. Talvez eu não os compreenda porque sou deficiente de cabeça. Sou um inútil para decodificar autores eruditos. Escolho os textos claros. Se eu disser que considero o apóstolo Paulo um dos maiores filósofos da humanidade serei considerado pelos intelectuais um literato inútil e alienado. Fico na minha inutilidade literária. Entretanto não exalto a obra que não toca a minha alma.

Tenho dificuldade para ver ouro em textos literários herméticos. Penso que vem daí a minha dificuldade para entender as obras consideradas densas. Alguns intelectuais dizem que leem um livro por dia. Outros se envolvem na leitura de vários livros ao mesmo tempo. Eu, ao contrário, demoro meses para ler um livro e, ao final, fico com a sensação de não entendi a ideia do autor.

Sinto-me inútil quando me vejo assim; um leitor inútil por não compreender as sutilezas do autor. Isso aumenta o estoque da minha burrice. Penso as histórias na percepção do que acontece no cotidiano e não no estilo da literatura tradicional. Dostoievsky me impressiona pela trama de suas obras; não me enternece com seus personagens sombrios. Estou relendo Crime e Castigo. Leio bem devagar umas dez páginas por semana. Não tenho pressa. Essa paisagem não precisa de mim; sou inútil.

Penélope, estou de volta.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 26 de janeiro de 2013).
sábado, 19 de janeiro de 2013 | By: Doracino Naves

Pouso Alto

Foi em Piracanjuba, no sítio Vale das Quimeras, nome dado em homenagem ao novo livro da amada Clara Dawn, que pensei minha crônica da semana. Ventava sereno nessa manhã de janeiro. O vento espalhou a chuva fina que mais parecia um véu de translúcida brancura. Uma bruma fresca cobrira o grotão da divisa do sítio e o cerrado de galeria. O vento bailava a chuva em movimentos horizontais suaves e precisos, como se soprasse uma cortina feita com delicada e esvoaçante renda; vi, juro que vi, uma bailarina vestida de branco rodopiando seu vestido transparente pelos céus de Pouso Alto. 
                
O lago, flagelado pela seca de 2012 e agora com chuvas a cântaros, começava a subir com as águas filtradas pelas pedras tapiocanga. Apressei os passos, pois, embora com aparência leve, a chuva, só contando os pingos que caiam das telhas da casa, encheria milhares de botijas. Pensei no mestre Rubem Braga, o maior cronista brasileiro de todos os tempos, nascido em Cachoeiro de Itapemirim. Sorte que a cidade dele continua viva.
            
Tenho dó de mim; minha cidade está morta. Explico a minha indignação: nasci em Porto dos Barreiros, distrito de Araguari, hoje afogado pelas águas represadas de uma usina qualquer. Nem sei o nome dela. Também não importa, odeio-a como os Atlantis odiaram o dilúvio que afogou a mística Atlântida.  Aquela usina tirou o meu chão, mas não enterrou as minhas raízes; somente cobriu-as  com as águas barrentas do rio Paranaíba. Por isso, seja na época das enchentes ou na sequidão da primavera, minha origem brota viva em todos os lugares aonde estou.
                 
Assim,  vivo a procurar a minha Pasárgada em toda cidade por onde passo. Hoje meu pouso alto é Piracanjuba. Abençoado seja Rubem Braga nos seus 100 anos de amor a Cachoeiro de Itapemirim. 
                 
Entrei na sala com três pingos d’água nos óculos. Interessante, os primeiros pingos de chuva sempre caem na lente do míope ou na cabeça do careca.
           
Voltei para a televisão que mostrava um campo aberto com milhares de famílias atentas ao concerto sinfônico da Orquestra de Berlim. Na regência um jovem maestro: Gustavo Dudamel, uma das revelações do projeto El Sistema, criado na Venezuela em 1975. Essa ideia, fundada pelo maestro José Antonio Abreu, é um instrumento de organização social inovador; criou grandes músicos – em mais de 130 orquestras – e tirou das ruas quase meio milhão de crianças carentes. A 5ª Sinfonia de Beethoven, naquele momento, era a coisa mais importante que acontecia no mundo.
              
Quando voltei para apanhar meu chapéu vi o caseiro sentado num tamborete sob o galpão do curral. A expressão do seu rosto estava séria; o olhar perdido na ribanceira do tempo tornou-se plangente. Talvez pensasse que, com com a chuvarada, não mais lhe restasse a fazer na vida. Porém, ele sabia que o tilintar da chuva no teclado da terra eram mais importante. 

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 19 de janeiro de 2013)

                  Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013 | By: Doracino Naves

Pé na tábua

 Agora que tudo voltou ao normal a história de cada um segue do ponto em que parou antes das festas de Natal e Ano Novo. Ledo engano pensar que no fim de ano as dificuldades vão acabar e que no ano seguinte tem uma montanha coberta com chocolate a esperar por nós. As festas populares cultuam o valor simbólico do renovo e servem de trégua entre dois períodos: luta e esperança. O perdão da natureza brota na alegoria festiva das intenções.

Dá vontade de ganhar mais dinheiro, pôr a saúde em dia, apurar o físico nas trôpegas caminhadas em volta do parque Areião, ler muitos livros, dançar à meia noite em Paris, conservar os amigos fiéis, manter a certeza de que ainda vamos ver o time preferido ganhar o campeonato mundial, tomar sorvete nas tardes quentes de domingo. Ser feliz...muito feliz.

Pois é, a festa acabou na bagunça da manhã do primeiro dia do ano. Mas, ficamos com a impostergável sensação de que fomos enganados pelo tempo. A passagem dos ventos festivos não apagam as angústias e medos. Nossas crenças e convicções continuam a mesma. Esses sentimentos devem ser controlados e vencidos com um plano bem calculado como faz o comandante para navegar em mares revoltos. Existe uma misteriosa imprevisibilidade no viver. Tem um fado português que diz assim: navegar é preciso, viver não é preciso. E o barco da vida continua a travessia nos solavancos das emoções. O coração, muitas vezes indeciso, guarda bem escondido as cobiças do futuro.

Nesses casos, o melhor a fazer, como ensina o folclore caipira, é ter fé em Deus e... pé na tábua. Lá vamos nós, apesar do apagão e da ameaça de racionamento de energia elétrica. A culpa será dos trovões que chicoteiam os céus do Brasil e não a falta de investimento no setor. E aqui, em nossa urbe, o pemedebê briga por cargos na prefeitura. Até nessas coisas a gente percebe que nada muda.

Tem uma montanha com cobertura de chocolate do outro lado da rua.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.