sábado, 19 de janeiro de 2013 | By: Doracino Naves

Pouso Alto

Foi em Piracanjuba, no sítio Vale das Quimeras, nome dado em homenagem ao novo livro da amada Clara Dawn, que pensei minha crônica da semana. Ventava sereno nessa manhã de janeiro. O vento espalhou a chuva fina que mais parecia um véu de translúcida brancura. Uma bruma fresca cobrira o grotão da divisa do sítio e o cerrado de galeria. O vento bailava a chuva em movimentos horizontais suaves e precisos, como se soprasse uma cortina feita com delicada e esvoaçante renda; vi, juro que vi, uma bailarina vestida de branco rodopiando seu vestido transparente pelos céus de Pouso Alto. 
                
O lago, flagelado pela seca de 2012 e agora com chuvas a cântaros, começava a subir com as águas filtradas pelas pedras tapiocanga. Apressei os passos, pois, embora com aparência leve, a chuva, só contando os pingos que caiam das telhas da casa, encheria milhares de botijas. Pensei no mestre Rubem Braga, o maior cronista brasileiro de todos os tempos, nascido em Cachoeiro de Itapemirim. Sorte que a cidade dele continua viva.
            
Tenho dó de mim; minha cidade está morta. Explico a minha indignação: nasci em Porto dos Barreiros, distrito de Araguari, hoje afogado pelas águas represadas de uma usina qualquer. Nem sei o nome dela. Também não importa, odeio-a como os Atlantis odiaram o dilúvio que afogou a mística Atlântida.  Aquela usina tirou o meu chão, mas não enterrou as minhas raízes; somente cobriu-as  com as águas barrentas do rio Paranaíba. Por isso, seja na época das enchentes ou na sequidão da primavera, minha origem brota viva em todos os lugares aonde estou.
                 
Assim,  vivo a procurar a minha Pasárgada em toda cidade por onde passo. Hoje meu pouso alto é Piracanjuba. Abençoado seja Rubem Braga nos seus 100 anos de amor a Cachoeiro de Itapemirim. 
                 
Entrei na sala com três pingos d’água nos óculos. Interessante, os primeiros pingos de chuva sempre caem na lente do míope ou na cabeça do careca.
           
Voltei para a televisão que mostrava um campo aberto com milhares de famílias atentas ao concerto sinfônico da Orquestra de Berlim. Na regência um jovem maestro: Gustavo Dudamel, uma das revelações do projeto El Sistema, criado na Venezuela em 1975. Essa ideia, fundada pelo maestro José Antonio Abreu, é um instrumento de organização social inovador; criou grandes músicos – em mais de 130 orquestras – e tirou das ruas quase meio milhão de crianças carentes. A 5ª Sinfonia de Beethoven, naquele momento, era a coisa mais importante que acontecia no mundo.
              
Quando voltei para apanhar meu chapéu vi o caseiro sentado num tamborete sob o galpão do curral. A expressão do seu rosto estava séria; o olhar perdido na ribanceira do tempo tornou-se plangente. Talvez pensasse que, com com a chuvarada, não mais lhe restasse a fazer na vida. Porém, ele sabia que o tilintar da chuva no teclado da terra eram mais importante. 

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 19 de janeiro de 2013)

                  Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

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