segunda-feira, 1 de dezembro de 2014 | By: Clara Dawn

Vaga-lumes do céu

              Essa mania de estar sempre perto de mim entontece meus sentidos. Por mais que meu espírito viaje anônimo na noite de sono, continuo dentro de mim após despertar. Acordo pronto a seguir meus sonhos revelados. Hoje é sábado. Olho a cama que amanhece com os lençóis remexidos, amarrotada pelo frenesi de corpos tatuados pela esperança. Também pelas rugas dos pesadelos e das utopias antigas. Espicho os braços; as mãos cruzam dedos estalantes acima da cabeça. Os joelhos crepitam no ajuste dos ossos. Por um momento me lembro de um poema de Pio Vargas: “O ser é espelho, que é imagem. Não se sabe em qual premissa ele empreende sua viagem. Existir fora dele é ser um sol sem paisagem”.

               Depois dessa noite, segue-se o dia normal. O coração, às vezes fraco, outras forte, pergunta se o intervalo do sono, aberto ao espírito, foi bom para a recuperação das emoções guardadas na alma. Os pés que tocam o chão frio andam em círculos procurando a trilha certa do novo dia. Ingratos pés da roça que não se acostumam a morar nos sapatos; querem, ou o chão de terra batida ou, se é para andar calçado, um par de sandálias velhas e confortáveis. O pé esquerdo, mais próximo do coração, dá o primeiro passo; único, universal e definitivo.
               Digo adeus à noite que passou. O presente que chega há de encontrar - no oeste da agonizante jornada diária -  o limiar de uma pausa que dividirá o real do sonho. Enquanto penso no que vou enfrentar, me calo. A memória é o espelho a refletir passagens; a lembrança  retêm as preferidas. Ainda recordo o cume da pequena serra de Porto dos Barreiros, quando de lá saí com meus pais e meus irmãos. Foi o último ponto que enxerguei antes que a jardineira entrasse na mata.
                Associo essa imagem, à outra: de uma criança judia, destinada a Auschwitiz, retirada à força dos braços de sua mãe. Vê, pela última vez, da janela de um trem, o alto dos picos das montanhas da pequena cidade polonesa cobertos de neve.  Essa visão durou tão pouco, mas ficou guardada para os momentos de angústia do menino sobrevivente. Nem as atrocidade que vira na guerra apagaram essas imagens. Assim são as coisas.  O sofrimento, em si, não apaga a beleza das experiências que se foram e nem as do porvir.
                 Perplexo diante das agruras da vida, o homem pergunta se o fardo que carrega na couraça do corpo físico é ancestral ou de uma noite apenas? A ideia do tempo que ruge em nossos ouvidos, é, na realidade, pontos luminosos a nos guiar, como se fossem vaga-lumes no céu. A força imagética que surge do passado movimenta e direcionam nossos pés, em círculos, pelo ar, pelo chão, por qual caminho escolher, até encontrar a porta do sol ou as pedras da caminhada. Tem um poema de Emily Dickinson que diz assim: “Essa é a hora de chumbo – que se relembra, se superada, como alguém enregelado recorda a neve: Primeiro, o frio – depois, o torpor – e, então, o deixar-se ir”.
               
                   Já que falei em “corpo físico”, a linguagem espiritualista utiliza outra forma da crença na reencarnação. Essa é a filosofia espírita: primeiro, a encarnação, depois, o sofrimento de viver presa à gravidade terrena e, então, a liberdade de voar com a Luz.

                Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30, reprise domingo, 23h00. Escreve aos sábados no DMRevista.

Jogo de palavras

Putz! Lá vou eu nessa manhã cinzenta. Cadê a luz do meu dia? A cabeça deste cronista fica na nuvem, mas sei que acima da garoa tem um sol cheiinho de raios luminosos a brilhar para todos, em qualquer canto da terra. O meu primeiro passo é canhoto. Penso que é por isso que estou meio atrapalhado para fazer as coisas do dia a dia. O piloto automático não funciona.
        
Vem, sol! Abre as cortinas do novo dia. Acorda os meus sentidos. Ando com os passos cadenciados. Pé canhoto... Pé direito... Assim, caminho pela casa. Tem outro jeito de cumprir nossos deveres cotidianos, senão o de cada um na sua hora e lugar? Claro que não. Se for noutro ritmo o tombo é certo.  
          
Dizem que começar a caminhada com o pé esquerdo dá azar. Bato três vezes na madeira para espantar a alvorada gris que nubla o meu pensamento. Na hora de escovar os dentes, ponho creme de barbear pensando que é dentifrício.  Faço o nó da gravata antes de vestir a camisa. Por pouco não saio de paletó e cueca; sem a antiga calça azul. Através da janela vejo os carros andando de ré. Sei não, mas me sinto confuso para fazer o meu trabalho.
          
Putz! Logo hoje que tenho de enviar minha crônica para o Diário da Manhã;  a rotina do escritório e, ainda, gravar o programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV? Tenho que equilibrar tudo para dar conta dessas tarefas. Talvez uma música ajude a pôr a casa em ordem. Surge a voz doce de Marlene: “Lata d’água na cabeça/ lá vai Maria, lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa? Lá vai...”.
          
Assim segue a marchinha de carnaval. Foi bom para começar a pensar melhor. Para espantar burrice o humor faz melhor. Lembro-me de uma história de Mário Quintana, contada por Juarez Fonseca, no livro Ora Bolas.
         
Encarregada de pegar Quintana no Hotel Magestic, Ângela Moreira chegou antes da oito da manhã. Dali iriam para o estúdio da ISAEC, na Rua Senhor dos Passos, onde estava sendo gravada a Antologia Poética. No carro, depois de um longo silêncio e um bocejo, o poeta pede desculpas:

Eu sempre acordo meio burro...
Eu, não! Eu já acordo a mil.
E ele, com sedutora condescendência:
Ah!... O problema é que pessoas assim ficam burras o dia inteiro.
          
Já que falei em televisão, aqui vai outra de Mário Quintana, uma das 130 historinhas. Sem lengalenga:
          
Em 1978, enquanto aguardava uma entrevista que seria feita pela TV Gaúcha, Quintana, quieto, observava a equipe de televisão se preparar.
          
Era moda, na época criada pela TV Globo, até hoje seguida por muitos repórteres, encostar o microfone na boca do entrevistado e perguntar: “Quem é o fulano?”. Para facilitar a vida do editor, ele deveria responder: “Sou o ator fulano de tal, um homem do povo, que compra em supermercado, entra no ônibus, acredita no mundo novo, patati, patatá”.
         
A repórter da TV Gaúcha foi de primeira:
        
Quem é Mário Quintana?
Surpreso, quase incrédulo diante da pergunta, ele só achou uma saída:
Sou eu, minha filha.
         
Pronto. A música de Marlene e o humor do poeta Mário Quintana devolveram-me a luz que faltava. Agora já posso enfrentar o dia com o sol que aparece na expectativa de mais um dia.

Seja bom ou ruim, lá vou eu...  

         
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista. 
segunda-feira, 17 de novembro de 2014 | By: Clara Dawn

Dualidade

Meus olhos não perdoam essa Goiânia com mais de um milhão e meio de habitantes. Cadê aquela Goiânia de 200 mil almas? Num pequeno espaço de tempo - comparado ao das grandes cidades - o buraco negro de prédios de concreto engoliu as minhas certezas.  Em que mundo se esconde as gargalhadas das raparigas nas praças e ruas; no contínuo vaivém de eras passadas?
                 Ouço, vindo do recôndito da metrópole, o choro abafado das mães diante do mal das drogas que atormentam os nossos jovens. Prefiro as crianças sujas e descalças brincando na enxurrada; jogando finca; tocando pião; as mãos sujas de terra e manga madura; ou crianças alçando pipa aos céus de eternas estrelas. Prefiro assim, à habilidade da primeira infância no videogame ou aos dedos ágeis no teclado de um Iphone. Avoco Fernando Pessoa: “Brinca, criança, brinca! Brinca pegando numa pedra que te cabe na mão”.
               Digo não a esta Goiânia de trânsito nervoso, prefeito e vereadores que se escondem nos gabinetes, alheios à miséria e ao sofrimento das ruas. Não ao insensato desprezo às raízes da capital. Bendigo a tradição da cultura de respeito ao outro.
                Existem tantas palavras banalizadas que nem sei o que representam nesse jeito egoísta da cidade grande: verdade, mentira; gratidão, ingratidão; amor, desamor. A dualidade do sentimento permanece confusa quando decodificam as palavras.  Apenas a poesia - que aviva a alma arredia do homem - é capaz de interpretar o verdadeiro significado das palavras.  Quando inspirado pelo espírito, o poeta solta as mãos dos joelhos cruzados para alçar vôos bem altos.
                Escrever coisas assim, da memória da cidade ou de reminiscências do verbo, é parar o tempo. Pois, que o tempo pare! Assim a fantasia estanca as dores de uma cidade que cresce, mas perde a aura sutil das certezas. Nesta madrugada insone, a chuva de novembro cai deslizando pelas cortinas do céu. Do alto da janela do prédio onde moro, o vento leste sopra o manto de chuva que balança no espaço vazio, as almas trançadas com fios de renda; de cor leitosa e translúcida.
                A miríade dos pingos que, juntos, caem céu abaixo fazem ruído uníssono quando tocam o telhado de amianto. Bem diferente do romântico gotejar das lágrimas que se jogam sobre as telhas antigas; feitas de barro. Depois as gotas formam pequenos regos até chegar às ruas; desaparecem nos bueiros; submergem nos córregos que deságuam no Rio Meia Ponte. E o Vale se enche de bênçãos.
               Mexo nos óculos para ajustar a chuva à chuva do pensamento. Um pequeno toque muda o ângulo do que enxergo. O grau da memória vai a outros mundos; grandes e pequenos universos imbricados.
              Ás vezes me perco ante as portas de Deus.
  
             Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raizesjornalismocultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.                
segunda-feira, 10 de novembro de 2014 | By: Clara Dawn

Trilogia do voto

Nesta crônica, véspera das eleições presidenciais de 2014, meu personagem Simão Sem Caráter tenta impor a sua vontade batendo as teclas do computador, despertado que foi pelo artigo “O herói sem caráter”, de Dora Kramer, publicado nesta semana. Travo, na alma, uma luta ferrenha com Simão Sem Caráter. Ele bate palavras desconexas; apago-as com o pensamento em não escrever desatinos. Nessa angústia de escrever... apagar... escreve de novo... deleta mais uma vez... peço ao personagem que se vá.
        
Dá sossego, Simão! Assumo o controle da escrita. Percebo, além das trevas do fanatismo político, movimentos visíveis de uma multidão a cantar com Geraldo Vandré “Pra não dizer que não falei de flores”. A voz rouca de Milton Nascimento me lembra “Coração de Estudante”. Daqui a algumas horas vou votar. Engulo metáforas de quimeras. Agora, meu personagem é o Eleitor.
         
Ele entra na sala - piso axadrezado - onde está a urna eletrônica; receptiva na espera, sonora ao confirmar o voto. Antes do voto, a cabine, em silêncio, compreende o sonho de Eleitor sobre a importância da sua escolha. Dentro desse sonho existem outros mundos, outras verdades; dentro delas coexistem universos diferentes ao seu ideal. O coração do ser humano é solo sagrado, multifacetado. Woody Allen mostrou isso ao cruzar histórias na trama do filme Para Roma com Amor. Sentir, desejar, votar, eis a trilogia do voto. O ato de votar em um candidato surge das reflexões sobre o que queremos.
          
Os olhos de Eleitor ficam órfãos. A sala está calada, mas percebe o brilho das estrelas. Essa sala tem portas que levam a outros lugares; parede que escutam gritos de socorro; piso que se movem sob os pés; um céu cheio de estrelas. A reverência ao voto é tamanha que, nesse instante, Eleitor fica de joelhos. Assim, alivia a alma do bombardeio da campanha eleitoral. O peito se enche com a esperança do voto livre. Os pensamentos reverberam nas linhas imaginárias do tempo. Os ouvidos captam um soluço antigo que clama por igualdade entre todos.  Mas ouve o seu próprio gemido.
         
Fecha os olhos antes de teclar; a sala respira fundo. De olhos fechados os outros sentidos são acordados. Das paredes ecoam vozes vindas dos confins do universo. Longe, talvez do outro lado da rua, um piano toca Ave Maria. O ambiente se enche de música suave. Uma voz se anuncia mansa e serena.  “Sou do Centro-Oeste. Estou perto de ti. Represento o sol poente, prenúncio da noite. Mas a Luz Verdadeira vai iluminar a sua decisão”. Na outra parede tem uma porta aberta.
         
“Sou a porta do Sudeste. Quem chega aqui renasce. Abra o coração à concórdia. Feche os olhos ao ódio e à maldade da mentira”. Eleitor se mostra receptivo às vozes que se manifestam. “Psiu! Sou do Norte. Lugar de mata e rios. No meio de uma reta ao Planalto, à esquerda, está uma região de um povo forte e valente”.
          
O Nordeste se apresenta. “Sou Nordeste, lugar onde se coloca a pedra de fundação das grandes construções. A Terra é um grão de areia cósmica que se fez rocha e da rocha nasce uma montanha de rubis a coroar os pensamentos de paz”.  As mãos de Eleitor vacilam antes de digitar o número.
         
Na ponta dos dedos está a memória ancestral do poema que será escrito no futuro.  “Ei, sou a parede do Sul, onde é sempre meio dia. Aqui o sol nunca se põe. Sou azul igual ao Céu. É assim de gosto de ser vista; com o olhar azul da criança que descobre o mundo”. Eleitor reflete mais um pouco. Vê, ao alto, uma luz pendurada por fios de prata. “Sou o Céu. Aqui habitam estrelas, planetas e galáxias. Guardo a Palavra Sagrada do começo do Universo. Ao meu lado está a Partícula de Deus. Essa partícula explica o mistério da Iniciação. O homem nasce preso a uma corda luminosa que liga-o ao Eterno. Mesmo assim o homem se debate no cordão das discórdias. Outro ponto chama a atenção de Eleitor.
         
“Sou o piso em preto e branco que nivela a nação brasileira. É no piso da terra que se abrigam os mares, os continentes e os portos. Sou o solo sagrado que dá tudo a todos, sem distinção. Por isso espero a fraternidade de todas as regiões num só projeto de vida. Somos uma nação multicolorida e igual na diversidade da sua cultura”. 

Eleitor dirige seus dedos ao teclado. Olha mais uma vez ao seu redor. A sala parece vazia, envolta em uma misteriosa energia. Os números dançam e se refletem nas paredes do zodíaco. O voto se alimenta de sonhos; sobem dentro de luminosas lanternas de papel. Tecla o número escolhido.  Cumpre-se a última etapa da trilogia do voto.  Da escuridão profunda nasce a luz.

Uma brisa suave enche a sala.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, sábado 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista. 
segunda-feira, 29 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Ode a Nelson Siqueira

Não sei se o leitor já teve saudade das coisas antigas ao passar por uma casa, uma rua ou qualquer outro lugar capaz de formar uma cadeia de lembranças. Hoje vivi esse momento ao cruzar a faixa de pedestre da Rua 3, no Centro, próxima ao Jóquei Clube de Goiás. No mesmo lugar, em 1960, seguro na mão de meu pai, Zequinha Naves, atravessei a rua com destino à casa do Dr. Nelson Siqueira, já demolida. Hoje em seu lugar existe uma farmácia. Lembro-me de que meu pai dissera que naquela casa morava um colega do fisco que se elegera deputado estadual, pelo PSD de Pedro Ludovico. O motivo da visita seria tratar de algum benefício para a cidade de Palmelo, onde meu amado pai era o Coletor Estadual.

Ao passar por aqui, a saudade dói no fundo da alma. Aprendi tudo com ele: honra, dignidade, amor ao próximo, essas coisas de um homem íntegro. Viveu sua exemplar história  de modo cristão. Enquanto Fiscal de renda, cargo no qual se aposentou, gabava-se de nunca haver emitido um Auto de Infração. Orientava mais do que punia. Se houvesse imposto atrasado esperava pelo recolhimento. Quando havia indício de sonegação fiscal pedia ao contador para corrigir e recolher o valor devido. Morreu pobre, mas com muitos amigos.

Ô de casa! A porta da residência do deputado Nelson Siqueira se abriu. Fomos convidados pela empregada a entrar. Na sala de espera tudo estava limpo e organizado. Um sofá de couro; mesa de jantar enorme coberta com forro de rendas brancas e cadeiras altas; um rádio, à pilha, em detalhes dourados; a cristaleira em estilo clássico combinava com a decoração. O piso encerado brilhava com cheiro de asseio. Tive a impressa, pela mesa grande e a quantidade de cômodos da casa, que ali morava uma família numerosa.

Não demorou e o  Dr. Nelson Siqueira entrou na sala. Recebeu meu pai com alegria e me saudou com carinho. Os dois conversaram sobre assuntos de política. Nem prestei muita atenção. Mas, ouvi quando ele perguntou sobre Santa Cruz, próxima de Palmelo; somente uma légua de distância.  Pensei comigo: Santa Cruz, Potira. Era o apelido da cidade. Jamais soube o motivo.  Entretanto, sabia que nenhum morador gostava de ouvir Potira. Vibrava de forma pejorativa aos ouvidos santa-cruzenses. Terminou a conversa. Os dois se despediram. Já na calçada agarrei na mão de meu pai; cruzamos a rua de volta, rumo à Avenida Anhanguera.

Desde então, sempre que passei por aquela casa recordava aquela visita. Pedro Ludovico, Nelson Siqueira, meu pai, José Naves Martins, o Zequinha. Até que um dia, penso que foi em 2013, uma máquina levantou poeira no trabalho de demolir a antiga casa. Na hora não encontrei motivo que justificasse a demolição de uma casa cheia de histórias para construir um prédio novo. Depois percebi que a modernidade, arrasadora, substitui os valores tradicionais. Paro para pensar no desfecho desta crônica.

Sem noção do modo de como terminá-la, vejo, surpreso, na capa do Diário da Manhã de hoje, quarta-feira, dia 24 de setembro, a notícia da morte do Dr. Nelson Siqueira. Sobrenatural ou não, pela coincidência inusitada, a notícia cai como uma pedra vinda do alto em velocidade crescente. Imagino que tudo tem um fim. Leon de Tolstói narrou a expectativa de Ivan Ilitch diante do sofrimento da morte: “Eu estou caindo... Não adiante resistir”.  

No começo da vida há um ponto de luz; depois, ao fim, essa mesma luz reaparece com prenúncio de que a morte pode ser um recomeço. Essa é a sensação quando a gente vê partir, rumo à grande morada celestial, alguma pessoa dedicada que viveu para servir ao semelhante. Tenho essa impressão do Dr. Nelson Siqueira; bondosa alma.

Aquele lugar, mesmo com prédio moderno, sempre me lembrará meu pai e as boas práticas da vida de pessoas honradas.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista em 26 de setembro de 2014 em Goiânia - Goiás).
segunda-feira, 15 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Flor de ipê que voa

O que mais tememos é o novo. Aquilo que nos faz sair dos nossos hábitos. Eu odiaria morar em São Petersburgo; Dostoiévski, não. Crime e Castigo é ambientado nessa cidade fria, cinza e perturbada pela culpa de Raskólnikov. E se eu morasse no Rio de Janeiro? Detesto água salgada. Tom Jobim, notívago inveterado, amava o Rio. Ou amava as garotas da praia? Ambas as coisas, penso.
           
Morar em Petersburgo ou no Rio de Janeiro é uma novidade que me assusta; nem o frio cinzento da cidade de Ródia, nem o sol escancarado na areia quente de Ipanema. Contento-me com o tempo abafado seco de Goiânia nesse prenúncio de primavera. Estou a me acostumar com a ideia de, num dia qualquer, morar em Piracanjuba. Lá sou amigo do Mazai e da Fadinha que - na chegada - me esperam na porteira e - na saída - vão até ao mata-burro do Sítio Vale de Quimeras. Quando estão com fome dizem, psiu! Quando vou embora, tchau.
             
Parafuso, um vira-lata tão querido quanto o falecido Loló de Gabriel Nascente, viajou direto para o céu. Antes desse fatídico dia, durante a sua curta existência de sofrimento, Parafuso fora coroado por mim o Rei do Vale. A coroa foi passada a Mazai, um pastor alemão negro e brincalhão que chegou depois. Noutra dia eu sonhei que os cachorros falavam. Do jeito que as coisas vão os cachorros logo vão falar. Nesse dia direi a Mazai para calar seus latidos nas minhas madrugadas. Declamar versos de Fernando Pessoa é melhor. E o pássaro-preto, faça chuva ou sol, cantiga alto no cajueiro em flor.  
            
Lá também moram araras-azuis, canário amarelinho igual ao Piu-Piu e um casal de pirarucus - chamados Boni e Clyde - festeiros das manhãs ensolaradas. Ah, tem um Martim Pescador bem atentado. Noutro dia um canário amarelo voou baixo sob a luz do sol. Disse à Clara: “Eu vi uma flor de ipê amarelo voando”.  Nesta crônica escolhi falar de amenidades. Concordo que o cronista deve refletir a alegria do mundo. Tom Jobim pensa que “a arte tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta”.
            
Então, viva Bernardo Elis, J.J. Veiga, Dona Belkiss, Carlos Brandão, Siron Franco e Marcos Fayad. Pois é. O que é honesto é simples e direto; a desonestidade, ao contrário, é falsa e dissimulada. Por falar em simplicidade me lembro da pintora Djanira. Ela foi uma artista brasileira famosa que pintou a gente simples das ruas, dos campos e do mar. No fim da sua vida renunciou a tudo, internou-se num convento de freiras e passou a se chamar Teresa do Amor Divino. É dela um poema chamado Viagem. É assim: Eu vi nas cores do marfim/um elefante selvagem/que viera das índias/oferecendo-me caminhos/onde poderia/perigosamente/fechar meus olhos/ e partir, partir.../Mas era pecado/e viajei no pecado/Ao infinito viajei/ e perdi-me no tempo/ que era pecado.
             
Comecei falando de medo do novo e me perdi nessas abstrações da escrita. Mudei o rumo da prosa. Também pudera. Escrever uma nova crônica já não me apavora, nem angustia. É só refletir o que está na alma.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 13h30.
segunda-feira, 1 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Tempo abafado seco

Noutro dia marquei mais um encontro com meus netos Júlio, Gustavo e Marcus Jr., num restaurante self-service. Nesse restaurante, perto de onde nós trabalhamos, a gente se encontra duas ou três vezes semana. Para ganharmos tempo ao trabalho o almoço é sempre rápido. Mesmo assim ainda sobra um tempinho para as conversas a respeito do cotidiano da cidade grande, onde a miséria e a loucura andam juntas. Existe, nesses encontros informais de avô e netos, uma aura amena e prazerosa.
              
O dia estava cinza, quente, abafado seco, com leve prenúncio de chuva temporã. Quando eles chegaram para o almoço eu já estava sentado longe da televisão colocada para os fregueses habituados a ver televisão na hora das refeições. Estava no horário do TRE com a sordidez política de alguns candidatos. Escolhi uma mesa pequena de quatro cadeiras. Naquele lugar simples com comida caseira, almoço nos dias da semana. Com tantas coisas a fazer nem dá tempo de almoçar em casa. E a comida por quilo custa menos do que em outros restaurantes. Porque com pouco dinheiro faço igual quando se tem um cobertor curto; encolher as pernas para cobrir o corpo.
              
Júlio chega primeiro; rosto jovial marejado de suor, depois de caminhar umas seis quadras até ali. Logo chega o Marcus Jr., que se senta em frente à televisão. Puxa assunto sobre o debate dos presidenciáveis na Band, ocorrido na noite anterior. Expõe sua opinião. Ouço com atenção. Continuo ouvindo com um discreto sorriso quando a opinião bate com a que penso. Por último vem o Gustavo com o porte de soldado cristão das cavalhadas de Santa Cruz de Goiás.
                
Essas conversas com meus netos, que faço questão de acontecer com regularidade, me mantém ligado ao mundo real dos jovens. Conto essa história sem a pretensão de teorizar ou propor filosofia. Falar sobre as engrenagens da realidade é um ato de fé que beira à ficção. Pelo que sei – e sei que nada sei – é assim que os romancistas trabalham sua narrativa. Há uma exigência imperativa: o universo do escritor deve ser verossímil.
               
Mesmo que um raio de fantasia caia na sua cabeça. Tantas coisas estranhas, tantos fatos improváveis acontecem na vida que é difícil de saber o que é a realidade. Esse é o tom realista por trás do texto de Paul Auster ao escrever O Caderno Vermelho. Numa passagem arrebatadora do livro ele conta a história de um menino que andava a seu lado foi atingido por um raio e morreu.
                 
Auster conta que fora a sua primeira e trágica experiência com a instabilidade das coisas. Essa minha história nada tem a ver com essa experiência de Paul Auster. Lembrei-me dessa passagem do livro por um devaneio qualquer. Júlio e Gustavo, sentados do mesmo lado da mesa de quatro cadeiras, quais siameses, desviam o olhar à outra mesa, esta de duas cadeiras. Tanto falo, tanto gesticulo que penso que, desta vez, ficaram desinteressados do que digo. De frente para eles uma moça de olhos verdes, perfeitos e jovens; o colo arfa na brandura do ar parado, abafado seco. Ela fixou o olhar na direção dos dois e sorriu com dentes brancos de esperança.
                
Fingi não ter percebido o flerte. Foi então que a televisão mostrou os gols da rodada com mais uma derrota do nosso amado Vila Nova diante de um grande público. No salão a maioria comentou a triste sina do Tigrão. Mas a alegria do reencontro superou os dissabores do futebol.
               
Lá fora as pessoas se movimentam com suas misérias e loucuras de mãos dadas. Voltei para o interior do restaurante. Tive a sensação de que estava vazio. Era somente a impressão quando percebi que uma multidão vai e vem sem parar; uma parte sem saber aonde ir. Marquei um novo encontro com meus netos.

                 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizestv.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.  
quarta-feira, 27 de agosto de 2014 | By: Clara Dawn

Passarinho afogado

Escrever me faz saber melhor o que não sei.  Um ato que abre a possibilidade de me descobrir quando me enxergo no outro. A inspiração artística é uma Graça Divina; o momento mágico em que o Ser se desliga das coisas humanas. Deus e o Silêncio criativo são presenças inefáveis. A Graça, imprevisível, pode chegar silenciosa num lampejo dourado ou se esvaziar dela por longos períodos.
                
Nesses momentos de inspiração a alma transpõe o mundo para encontrar a Graça nos deleites da poesia. Talvez seja correto dizer que toda arte provém de uma mágia transcendental. Quem sabe a gente pode afirmar que as obras primas dos grandes artistas são psicografias. Talvez...
                
Recordo de uma resposta de Alceu de Amoroso Lima – Tristão de Ataíde – à Clarice Lispector sobre “o que pretendem de mim os meus livros?”.
                
“Você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores, que não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é o personagem maior do autor dos seus romances. E bem sabe que esse autor não é desse mundo...”
                 
Quando escrevo prefiro a escrita mágica, poética, à escrita lógica, fundamentada somente no factual. O romantismo, simbolismo ou modernismo - resumindo as fases ou tendências da literatura: a revolução literária de 1920 somada às crônicas do mestre Rubem Braga são modelos suficientes para sacudir as favas penduradas na árvore do tecnicismo literário. Escrevo de olho na poesia singela da vida; subjetivo na objetividade característica do jornal.  O contraste entre a notícia crua e a interpretação pessoal do cronista dá força para esse gênero literário sobreviver. A notícia pode ser um motivo para a crônica, por envolver pessoas e situações interessantes. Mas, sob o ponto de vista literário, é dispensável. Perfeitamente dispensável. Pelo fato de que a crônica é livre para voar aonde a alma for.
                  
O cronista recolhe do dia-a-dia os fragmentos da vida, depois reúne tudo isso num texto organizado com a intenção de seduzir o leitor. É como tirar da água um passarinho afogado e dar-lhe vida.

Nesse processo gosto de tudo que me lembra a poesia...até do que escrevo. Às vezes...

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados bo DMRevista.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014 | By: Clara Dawn

Quintal nosso de cada dia

Bem, aqui está você. Agosto de 2014. Estamos no centro de Goiânia onde os quintais foram arrancados. Poucas árvores frutíferas restam entre o chão cimentado, a piscina e a churrasqueira. Para quem não gosta de quintal, varrer as folhas é um desperdício de tempo. Poucas casas ainda resistem enquanto residência. A maioria foi substituída por prédios de apartamentos e escritórios. Os galos, aprendizes de barítonos, desempoleirados pela modernidade, já não cantam na madrugada dos insones.
           
A sirene desesperada - de ambulância ou da polícia - ecoa na noite. Notívagos moradores de rua rondam a praça entre gemidos e gritos; alguém roubara o cobertor do outro. Bêbados insanos cruzam a esquina com o som do carro nas alturas. Os fantasmas da cidade acordam através da escuridão. Há um instante na noite em que o silêncio é aterrador; dá até para ouvir as batidas do próprio coração. Nessa peleja noturna, pensando nos quintais antigos de Goiânia, amanhece com o sol a aquecer o tímido frio do Centro-Oeste. Pois é, aqui estamos numa alvorada de agosto, no círculo dos arranha-céus sem quintais. Meus olhos procuram a lonjura além do Setor Aeroporto. Quem sabe existe um quintal no meio da miríade de prédios que os meus olhos míopes enxergam dobrados pelo pterígio.
       
Outros bairros da cidade, limítrofes do abuso imobiliário, agonizam com a mesma sina do centro. O bairro de Campinas, antes plácido e hospitaleiro, se transformou em burgo. Cadê os quintais que foram plantados aqui? O último bem cuidado de que me lembro foi o da orquidófila Amália Hermano, na Rua 24. Ali, quase em frente ao Instituto José Mendonça Teles, o quintal de Amália tinha um Ipê que  florava na primavera. Sinto saudade dos quintais com pés de goiaba, caju, manga, abacate e laranja que, na falta de um bom poleiro, recebiam os galos cantadores. Goiânia é uma cidade sem cocoricó. Sou capaz de apostar que os jovens de hoje nunca ouviram o canto do galo. Assim, quando ouvirem um canto de galo, vão pensar que é um dinossauro ciscador.
      
Adonias, filósofo caçador de quintais, conta que um dia desses saiu à procura de um quintal. Andou... andou... andou até encontrar um bem cuidado pelas bandas da Vila São José. Bateu palmas à porta.
      
“Ô de casa!”
     
“Já vou”, respondeu uma voz de homem no fundo de um quintal à antiga.
      
“Parabéns, pelo seu quintal.” 

“Obrigado, moço. Estou aqui há mais de vinte anos. Esse quintal é o meu passatempo. Cuido dele com muito amor; tem frutas, verduras e plantas que servem de remédio. Tenho poucas galinhas; dez, mais um galo. Quer entrar?”.   

Andaram pelo pomar, a horta verde com tomates vermelhos e jilós amarelados. Uma figueira frondosa, plantada perto do fogão caipira em desuso, soltava frutos em abundância. A alma de Adonias fora amenizada com a visão desse oásis perdido entre o céu, o asfalto e o concreto da cidade grande. “Aceita uma xícara de café?”. Tomou o café morno e foi embora com a certeza de que alguém cuida do seu quintal.

Bem, aqui estamos nós. Agosto de 2014. Surge na memória a figura de uma mulher idosa, vestido rodado com bolsos cheios de balinhas, varrendo as folhas amareladas de uma jabuticabeira de perfumadas flores brancas; plantada num quintal de Porto dos Barreiros. É a imagem de Vó Sinhá a indicar que no paraíso os quintais são abundantes e floridos para quem é responsável pelo quintal da sua existência na terra.


Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados Np DMRevista.
segunda-feira, 21 de julho de 2014 | By: Clara Dawn

Sem poesia o mundo é preto e branco

Tem duas coisas que o escritor deve zelar. Uma é escrever só o que acredita. A outra é assumir a idade que tem, nem mais jovem, nem mais velho do que realmente é. O que eu devo escrever na minha idade?, e jamais o que eu, com sessenta e cinco anos, escreveria com dezoito.
                  
Quando o leitor percebe que a gente não é autêntico o que escreve perde o interesse. No meu caso nunca havia pensado em escrever crônica; nem outros gêneros literários. Minha primeira profissão foi contador. Comecei com dezesseis anos em Hidrolândia, interior goiano. Nesse trabalho criei rotinas para dar conta do serviço.
                
Naquela época existiam dois métodos de escrita contábil: à mão, escrito direto no livro Diário ou feito na máquina de escrever pelo sistema de ficha tríplice em que ficava pronto o Diário, o Razão e o livro Caixa. Depois os lançamentos datilografados eram impressos num caderno de capa dura com folhas em branco e enviado à Junta Comercial para registro. Quando fiz a opção pelo segundo método imaginava o final do Balanço do exercício.
                 
Descobri mais tarde que essa imagem platônica de como o trabalho ficaria no fim foi uma escolha pelo caminho moral. A minha obrigação era encontrar o meio mais fácil de arranjar os fatos na contabilidade. Então, hoje sei disso, ao construir esse universo que era habitado somente por mim, aprendia a escrever histórias.  Mas a decisão definitiva, que me pareceu fortuita na ocasião, foi o desafio do Batista Custódio que me convidou a escrever no Diário da Manhã. “Você sabe escrever?”. Respondi que era jornalista. A resposta veio fulminante: “Não perguntei se você é jornalista, perguntei se quer escrever no jornal.” Disse que nunca havia pensado sobre isso. Aí veio o desafio: “Por que não?”.
                 
Foi assim que decidi começar. Em perspectiva, penso que esse caminho estava sendo preparado desde quando começara a idealizar o meu mundo. A primeira leitura, que me fez sonhar, foi a coleção completa de Júlio Verne. Fiquei fascinado com as possibilidades das viagens inventadas pelo autor.
                   
Hoje a leitura que mais gosto é a poesia. Estou certo de que o poeta é o guardião da língua. Sem a poesia que encanta, a vida é o inferno. Somente a poesia - seja na literatura, na música, ou nas artes de um modo geral - é capaz de colorir nossa passagem pela terra. Noutro dia, numa crônica de Gabriel Nascente, - que escreveu o livro de poesia Biografia das Cinzas, premiado este ano pela Academia Brasileira de Letras - a respeito da morte de Ivan Junqueira, o poetinha, criado no Bairro Popular, foi genial: “Levar poeta para o cemitério é a mesma coisa que enterrar passarinho vivo”. É uma metáfora primorosa. 
                     
O poeta cumpre o destino de guardião de qualquer idioma: zelar pela sacralidade da língua é o seu dever maior. Ele é o exemplo do correto uso das palavras numa época em que a língua materna é conspurcada e imprecisa. Na minha idade acredito que essas coisas são importantes.

                    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.com, PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.  
segunda-feira, 30 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Piracanjuba, Caminho da Sorte

Dez horas de sábado, numa fila da lotérica de Piracanjuba - terra de Leo Lynce e Ney Teles de Paula – ouço as conversas animadas das pessoas simples do interior.  Não tenho o costume de espichar os ouvidos para ouvir o que o outro fala. Mas é impossível ficar alheio ao que acontece numa fila. Nessa minha fila todos se cumprimentam e o papo rola solto. Quem sai diz “até logo” e os que ficam, “Vai com Deus”!. Lembro-me de um soneto de Pablo Neruda que fala assim: Amigo, leva contigo o que queiras, e se assim desejares, dou minha alma inteira, com suas brancas avenidas e suas canções.
                
As filas do mundo devem ser alegres e solidárias como é a fila de Piracanjuba; pleno como são os versos de Lynce. Então compreendi que as filas são lugares próprios para aproximar as pessoas e fazer novas amizades. Essa fila popular me ajuda a fugir dos labirintos da alma, presa no formalismo da vida moderna da grande cidade. Quando um cronista se vê numa situação assim pensa no sentido de extrair lições do viver cotidiano das pessoas. Nesse apreender a imaginação bate asas e voa alto. É o que faço agora.
                  
Retenho na mente tantas maravilhas quanto é possível à minha percepção. Com elas arquiteto a estrutura das histórias que narro aqui; conheço bem meus limites literários. Dédalo, pai do sonhador Ícaro, fez dois pares de asas e deu um ao filho. A intenção das asas era escapar do Labirinto de Creta, de onde nem  Minotauro conseguira. Advertiu, porém, que não deveria voar muito alto, pois as asas seriam ser derretidas pelo calor do sol.
                 
Sempre penso nisso quando vejo o que escrevi perto da primorosa criatividade de Rubem Braga; derrete-se como se fossem as asas de Ícaro próximas à luz. Para amenizar a abissal diferença encontro em Willian Falkner - prêmio Nobel de Literatura de 1949, ano em que nasci - um suave e estimulante consolo. Ele diz sobre a sua obra: Todos nós fracassamos na tentativa de alcançar nosso sonho de perfeição. Por isso, nos avalio de acordo com o nosso esplêndido fracasso ao tentar fazer o impossível. Falkner reconheceu que fracassara ao escrever poesia e contos. E, fracassando nisso, começou a escrever romances. Para chegar à perfeição continuou a escrever alguns dos mais importantes romances da literatura americana. Em cada um deles explodiu a sua capacidade criativa. Mesmo diante do sucesso dos seus livros estava convencido de que se reescrevesse toda a sua obra faria ainda melhor.
                  
Por acreditar que o fracasso pode estimular a dar um passo  adiante é que tento todas as semanas o desafio saudável de aprimorar o que escrevo. Sou um artista determinado a ser melhor do que eu mesmo. Os grandes escritores são deidades que observo e me inspiro. Leio a todos pelo deleite da leitura e com o objetivo de aprender.
                    
Continuo na fila da lotérica até chegar a minha vez de ser atendido. Confortável no convívio com  aquelas almas ingênuas e arrebatadoras decido ficar ali mais um tempo. Alguém conta um bom causo. Todos rimos. 
                   
É engraçado, amigo. O texto é de Neruda. Que importa! Ninguém sabe entregar em mãos o que se esconde por dentro, mas te darei minha alma, ânfora de mel suave, e tudo te darei...Menos aquela lembrança...
                  
Onze horas. Saio da lotérica Caminho da Sorte com as expressões, palavras e sentimentos das pessoas bem marcados na memória.

                 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 23 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

A casa de postigos verdes

Amada Clara, quando eu tiver de morrer, pensai de mim alguma coisa assim: que as crônicas e tudo o mais que escrevi foram inspirados nos teus beijos e, perdoai-me por ser tão humano, nas sombrias ondas do mundo a gargalhar na amplidão da alma. Que há, na lonjura do infinito, algum lugar que será sempre o Vale de Quimeras, idealizado em teu romance. Encontramos, um no outro, a segurança que não morre: nas conversas animadas de todas as manhãs; nas risadas livres a caçoar das nossas manias; nos cochichos ao pé do ouvido, no observar dos pássaros – nuvens que voam – sob o céu límpido da primavera. Ou na alegria do reencontro, no sono e no abandono do individuo para erguer o outro.

Construímos em nossas vidas uma casa em que o tempo ou as circunstâncias não derruba. Ganhamos, no jeito do viver, a paz inabalável onde a guerra do ego não pode. Mas a morte é um êmulo inelutável, um moinho que não pode parar. Por isso, quando eu tiver de morrer, pense mim com indulgência de amada.

Soai, clarins, soais por nós! Qual o pulsar frenético no eterno espírito da esperança; irmã da fé. Deste-me flores para amar-vos cada dia mais, caminhos para andar e rios de águas quentes com as bênçãos do sol. Movo-as no sentido de ficar sempre sob a luz benfazeja a despertar as sementes que criam novas possibilidades. Esse mesmo sol que aquece o barro é o mesmo que fora retirado de uma estrela perdida no universo. Pois é, despertastes meu sono letárgico e o sol do amor quebrou o encanto de quem não acreditava nessa forma poética de ver o mundo. Deus renova a minha fé para percorrer a estrada que me leva ao reencontro da amada.

Quero asas de borboleta para voar alto. Soai, clarins, soais por nós! Não permitas que o calor do sol derreta minhas asas de Ícaro. Que sejam eternas para voejarem acima de tudo. Contrario Alberto Caeiro: eu tenho que ter esperança e asas. Aqui viajo com Fernando pessoa: se tirar minhas asas fico perdido e largado no fundo de um barranco. Olho para a minha velhice e vejo rugas e cabelos brancos. Aí vem o caráter de Rubem Braga a lembrar a minha mineirice: olho essa cara feia e triste de gente do interior. Nas minhas crônicas já conversei sobre cidade, pescaria, lembranças. Eu fui criado na roça; sou caipira com orgulho. Prefiro o tom ameno da concórdia.

Não gosto de escrever sobre política nem falar mal dos outros. Este espaço no jornal é sagrado. Por esse motivo, a exemplo do chinês que coloca o resto de pão no lugar mais alto da casa, bendigo, na minha escrita, o dom de escrever. A utopia deve ser vista pelas frestas de uma casa de postigos verdes.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 21 de junho de 2014)

segunda-feira, 16 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Outra de Simão Sem Caráter

 Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 14/062014
Pensei em escolher o personagem mais idiota das minhas crônicas. O título, fácil, fácil, é de Simão Sem Caráter. Ele nasceu assim; sem noção de nada e nenhuma personalidade. Houve um tempo em que morou numa casa adornada com belíssimo jardim que ele tratava com esmero. As flores mais coloridas ele ganhara dos amigos; alguns que moravam muito longe. Sua ocupação principal era cuidar do jardim. Isso ele fazia muito bem. Logo o seu jardim se tornou motivo de incontidos elogios.
      
Um dia, o velho Xaxado, famoso bêbado da Vila Nova, amanheceu estirado entre as flores do Éden de Simão. Na noite anterior Xaxado seguia um grupo de Folia, mas se perdeu e dormiu sob a lua cheia de seis de janeiro, dia de Santo Reis. Alguns vizinhos o encontrou entre os canteiros e o cobriu de pétalas coloridas com uma ridícula coroa de flores na cabeça. Ao ver aquela figura exótica imaginou que um santo havia baixado em seu terreiro. Sonhara com um anjo coberto de flores à sua porta. E o levou para dentro de casa.
     
Deu-lhe uma bola de almôndega e um copo de vinho Sangue de Boi. Mais um copo de vinho...mais outro. Logo a verve cachacista do bêbado acordou. Aduziu que poderia, na qualidade de anjo caído do céu, atender a um desejo de seu benfeitor.
     
Vamos, Simão, capricha.
      
Então, lá vai. Presta atenção no meu pedido.
      
Pensou, pensou – coisa que não era comum em Simão Sem Caráter – que desejava ter o dom revelado no seu nome: aquele que ouve. Seu desejo seria ouvir os anjos que imaginara em vôos festivos sobre o jardim. Desejava ouvi-los tocar harpa e falar com eles. Seria a glória perfeita ouvir os sons harmoniosos dos anjos. Com apenas um pedido Simão Sem Caráter poderia fazer milhares de outros; seria íntimo dos anjos. Mas, a egrégora formada pelos vizinhos faria justiça ao apelido dado a Simão. Xaxado se divertiu com a burrice do outro. Uma vez sem caráter, sem caráter pela eternidade. Nem é necessário um mago para atender a um pedido assim.   
         
Simão Sem Caráter foi ficando cada vez mais sem personalidade. E nada de ouvir anjos. Percebeu a burrada que fizera com aquele pedido. Dias depois, o bêbado Xaxado, em busca de bebida e mais uma pelota de almôndega, pôs na cabeça uma coroa de flores murchas - mais ridícula do que a primeira - e apareceu na porta de Simão.  Depois de beber e comer ouviu de Simão para desfazer o pedido. Xaxado o instruiu a se banhar no Rio Meia Ponte, para que o desejo fosse revogado. Simão seguiu à risca as instruções de Xaxado e voltou ao seu estado latente.
           
A passagem de Simão pelo Rio Meia Ponte não deixou nenhuma marca; nem poderia com aquela natureza delével. Continuou, como sempre fora, idiota e sem caráter. Tempos depois Simão foi convidado a ser júri de um concurso de música para um torneio de futebol. Foram inscritas músicas bem elaboradas e outras nem tanto. Simão nunca entendeu de música e nem de nada. Da forma como era idiota e sem caráter, para ser honesto, declarou vencedor uma música sertanejo universitário. E essa música rodou antes de todas as partidas. Os anjos ficaram furiosos com essa escolha.
        
E deu-lhe, para sempre, ouvidos moucos, próprios de quem não sabe ouvir uma boa música.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 14 de junho de 2014)
segunda-feira, 2 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Néctar dourado

 Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 31/05//2014
 Escrever é retirar o pensamento da clausura. A palavra, como se fosse deus grego, pode ficar invisível ou desaparecer sem aviso. O verbo vai e vem feito uma brisa a conduzir afetuosas opiniões. Às vezes o texto se impõe por intermédio de uma personagem ou aparece num raio luminoso que põe a sua marca no processo criativo. Noutras foge como se fosse icor, o néctar dourado que flui das artérias da alma.
  
                 Atena! Oh, sábia deusa Atena! A graça divina do pensamento flui no verbo e na invenção das artes, da mesma forma em que concedestes a Diomedes o poder de enxergar os deuses invisíveis da mitologia grega. Concedas aos artistas a ousadia do jovem rei de Argos que rasgou o delicado vestido de Afrodite com sua lança; fez Apolo sair da nuvem de poeira e expulsou Ares à mansão de cristal do Monte Olimpo. Na cultura de todos povos, Afrodite representa a beleza literária. Apolo, a inspiração artística. Ares, símbolo do medo, brande a sua acha gigantesca na luta contra as invenções do espírito do homem.

                  Leva-nos, Atena, ao alto do Monte Pérgamo, onde Apolo colocou Eneias - filho da deusa Afrodite e do mortal Anquises - para formar a descendência romana e a linguagem latina. É deste lugar, sábia Atena, de onde vêm as gotas de ouro da inspiração que cai no registro da Flor do Lácio. A língua portuguesa imprime com sangue latino a verve de Camões, precursor da poesia expressa em nosso idioma. O autor de Os Lusíadas inicia nessa epopeia o grande desafio que estabelece a mais forte influência da literatura brasileira.

                  A língua portuguesa tem regras lógicas, inclusive a crase. Fique sossegado: crase não é tão feia quanto se imagina.  Basta entender o conceito do que é a crase. Para começo de conversa, não existe crase antes de palavra masculina. Apolo não andava a cavalo. Percebe? Não tem crase. Há uma exceção quando se usa moda ou maneira. O herói do desenho usa o martelo à Ares. Aí tem crase.

                   Também não se usa a crase antes de nome de cidade. Exceção quando se atribui uma qualidade à cidade: Vou a Grécia não tem crase. Mas, se eu disser: vou à Grécia de Platão tem crase. O uso da crase tem outras regras práticas. Essa crônica está ficando chata. Devo encerrá-la.

                   A palavra saiu sem dizer aonde ia. Os personagens dessa história partiram envolvidos num raio luminoso rumo a uma montanha bem alta. E o pensamento ficou preso na impossibilidade de escrever mais. 


Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 31/05//2014. 

                 
segunda-feira, 26 de maio de 2014 | By: Clara Dawn

Menina do Araguaia

Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2014

                    Pôr do sol na tarde quente do Rio Araguaia.  Árvores, pássaros, buritis sobrepostos sob o céu cor de abóbora formam um cenário de teatro de sombras. Ouvem-se as aves barulhentas em busca de abrigo. Um lagarto sinimbu levanta a cabeça acima do tronco do pau seco; espectro testemunhal do fim de tarde quando a onça pintada sai da toca. Os rios Javaés e Araguaia ainda estão cheios. É a primeira lua nova do outono, começo de noite do dia 29 de abril de 1975, na Ilha do Bananal.

                    Marcílio, o piloto do batelão Menina do Araguaia, pintado de azul e vermelho, se prepara para mais uma viagem. Nas laterais, amarrados com cordas, há três canoas de madeira para o caso de naufrágio. A tripulação era ele e mais dois ajudantes. Uma névoa fina cobre o rio. O batelão abarrotado de utensílios, índios Carajás, e alguns brancos acostumados com o rio; homens, mulheres e crianças deitados em redes amarradas nas frestas do barco. O piloto liga o motor a diesel. Manobra preciso o barco para evitar os bancos de areia. Depois de cerca de duas horas os passageiros dormem.

                   Menina do Araguaia tem uns oito metros de comprimento e, talvez, quatro de largura. As batidas do motor ecoam longe. Marcílio se orienta pela mata ciliar igual a um motorista que baliza a estrada pelas faixas laterais do asfalto. Ele conhece bem o percurso do rio: as curva; barrancs; ilhas pequenas e árvores fincadas na areia durante as enchentes. Marcílio acumulara muita experiência nessas viagens. Enquanto isso pensa na família e possibilidade de reformar a Menina do Araguaia. Necessita de dinheiro para comprar o material: tinta, pincel, lixas; essas coisas.

                   Por isso não recusa nenhuma viagem, mesmo que seja imprescindível viajar à noite sem lua. Um crucifixo com a imagem de São Cristovão o acompanha sempre. Passa da meia noite. O batelão avança devagar no escuro da noite. Um tosco lampião ilumina o cubículo de onde conduz o barco. Por causa da névoa, o farol da proa mal ilumina um metro a frente. Valei-nos, meu santo, nessa noite de barco cego. O motor Perkins, retificado em São Miguel, faz o barco  deslizar sobre as águas ainda turvas do Rio Araguaia. Aquele contínuo bater do motor dá sono.

                  Nisso ouve o motor falhar; após, para por completo. Marcílio desce com a lanterna para verificar o que acontece. Depois de mexer rapidamente nas peças desiste e volta ao leme, pois algum obstáculo pode fazer o barco virar. De súbito visualiza uma árvore plantada com galhos secos no meio do rio.O batelão vai direto ao tronco forte da árvore. Talvez seja um jatobá de barranco que caíra nas águas com o bater continuado das ondas.

                   O choque violento reúne todos no centro do barco que roda como se estivesse dentro de um funil. As crianças choram no escuro. Mesmo sendo bons nadadores, os carajás, zonzos pelo rodopiar do barco, ficam quietos. Quando param de girar alguns correm de um lado ao outro sem atinar para o perigo do tumulto dentro de um navio. Marcílio, com receio de o barco virar, pede calma a todos. Olha em volta e não vê sinal da mata, nem visualiza coisa alguma; estão no meio da parte mais larga do Araguaia. O pior é que o barco, inexplicavelmente, continua parado no breu da noite sem lua.

                  Alguma coisa retém o barco nessa posição. Marcílio dá ordem ao ajudante para verificar a razão de o barco permanecer imóvel. anuncia com o tronco de ponta cabeça: é uma árvore, comandante, os galhos estão segurando nosso barco. Marcílio dá outra ordem: desçam as canoas e salvem-se. As mulheres e as crianças vão primeiras. Por último os homens.  Todos obedecem ao comando da grande alma do piloto, a quem conhecem há muito tempo. Os barquinhos ficam cheios de gente a ponto de transbordar com a superlotação. Ele recomenda: vão com cuidado até encontrarem um lugar seguro.  

                 O rio, as águas revoltas em torno da embarcação e todas forças da natureza prestam a última homenagem ao comandante que conduz aquele infortúnio. O batelão, com o casco avariado pelo impacto, começa a naufragar nas águas do Rio Araguaia. Marcílio, com pose de capitão do Titanic, afunda junto com a Menina do Araguaia.

                Depois da morte trágica o corpo do piloto nem flutua. 

              E o céu do alvorecer desse dia acorda com as cores do último pôr do sol. Os ribeirinhos até hoje reverenciam seu herói. 

Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2014.

Torrentes de loucos


   
Publicada em 23/05/14 -Diário da Manhã - Goiânia - Goiás
  Vamos imaginar que eu e você, leitor, somos velhos amigos. Então, entre nós, há sinceridade para abrir os segredos guardados na memória e nas experiências da vida. O dia a dia, de recordações e vivências, é uma fonte de histórias interessantes. Acreditar nas percepções da vida é uma necessidade de quem escreve. Acredito no que escrevo; por isso alinhavo as histórias coloridas com o pincel da minha imaginação e faço a minha tarefa literária da semana com o pensamento no leitor. Se não tenho muitos leitores, gosto de pensar que é uma multidão.  

     Antes de prosseguir com o tema de hoje revelo o meu espanto com a escritora Patrícia Secco que mutilou a obra de Machado de Assis em troca de um milhão de reais do Ministério da Cultura. Ela jogou por terra a construção gramatical da linguagem única do autor de O Alienista que, nessa revisão, perdeu o encantado ritmo narrativo machadiano. E aí, Edival Lourenço? Pois é, professor José Fernandes. Agora que pensava ter aprendido a usar o ponto e vírgula, vem essa mulher, em nome do acesso à leitura, a retirar esse sinal de pontuação da obra fundamental do criador da Academia Brasileira de Letras. Completa heresia. Machado de Assis sem estilo é o fim da picada.  Mas, por pirraça, não paro de usar o ponto e vírgula; acho-o chique.

     Já que lembro Machado de Assis, escrevo no seu ritmo como se estive deitado em uma rede da Bahia; calma e buliçosa como são as baianas de Dorival Caymmi.  É manhã de sábado. Imagino o amigo leitor sentado numa cadeira na sacada do prédio ou debaixo de um guarda-sol de piscina; com as pernas sobre uma mesinha. Abre o jornal e lê as notícias do dia. No espaço que me é reservado no DMRevista está a minha crônica semanal.

      Cada um de nós tem um jeito de ler jornal. Posso imaginar o leitor dentro do carro a folhear com dificuldade as folhas do jornal sobre o volante. Como você me permite ser seu amigo imagino-o a pegar um DM antigo. Como não tem outra coisa para ler sente-se atraído pelo título desta crônica e lê.

       Quem escreve deseja encontrar um leitor imaginoso. Assim, a gente viaja juntos pelo tempo. Lembrando das boas e más coisas do passado como se fosse uma folha seca de laranjeira dentro de um diário de memórias ou o edifício que ruiu com o peso do telhado.  Para um autor que tem um leitor romântico o futuro de utopias é real. Mas, é preciso ter a fé de Abraão para perceber que existe algo verdadeiro no fim da linha.

        Aí, o leitor ajeita os óculos e começa a ler. Do modo como somos amigos sinceros, podemos imaginar tudo. Uma poesia de Fernando Pessoa faz psiu! “Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. Passo e fico, como o Universo”.

Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2014.
segunda-feira, 21 de abril de 2014 | By: Clara Dawn

Deus é O Grande Arquiteto do Universo e Cristo A Verdadeira Luz

Estou na maçonaria há quase quarenta anos. Até hoje rejeito a crença no Grande Arquiteto como o ser superior. Gosto do Rito Emulação, de origem inglesa, que crê no Deus da Bíblia; o único Vivo e Verdadeiro. Deus é o autor de todas as coisas; arquiteto do belo, suave e arrebatador universo. Também é um primoroso Geômetra no processo criativo do simples e harmonioso mundo. Então, segundo a minha fé, O Altíssimo Deus Todo-poderoso é O Grande Arquiteto do Universo.  

Tendência maçônica predominante no Brasil o Rito Escocês revela que uma força qualquer criou o mundo e foi descansar; um deus morto. Essa ideia - nó górdio que confunde maçom e não maçom - é aceita pela grande maioria. Quem se orienta por essa concepção filosófica não acredita na revelação de que Deus é Onipresente, Onividente e Onisciente. Não aprovo o discurso de um Deus sem obra exterior. Cristo é a materialização inconteste do Criador na terra.            

O Rito Emulação crê na intercessão salvadora de Jesus Cristo definido nos rituais e preleções como a Verdadeira Luz. Existem duas tarefas dadas ao maçom em sua admissão: a construção do templo espiritual, arquétipo do Templo de Salomão, e o encontro com a Luz Verdadeira, ápice da perfeição humana. Na maçonaria na qual acredito, ou em qualquer sociedade que coloca a honra e a virtude acima das coisas materiais, o aspecto moral prevalece. Afinal, a maçonaria segue o princípio cristão do bem ao próximo. Quando alguém me diz que a maçonaria não possui dogmas dá vontade de dar um pulo para trás. A maçonaria que eu creio tem um dogma: Deus.

Noutros tempos o presidente de uma conceituada associação internacional de potências maçônicas me disse que sua meta é ter maçons livres numa loja livre. Lembro-me de que olhei fundos nos seus olhos e de sobrolho respondi-lhe que tal fato é a oficialização da suruba ideológica dentro das lojas. O interessante disso tudo é que uma grande parte dos maçons brasileiros nem sabe a orientação filosófica do rito da sua loja.  É falta de estudo de quem não lê; fato comum na vida dos nossos conterrâneos.

Parece bonito dizer “sou maçom livre numa loja livre”. Ou seja, “acredito em qualquer coisa que quiser numa loja que pode fazer o que seu Venerável quiser”.  Percebo que a maioria está ali pelo convívio social. Isso não é ruim, afinal a fraternidade é uma das suas divisas mais antigas. Talvez o pior seja a falta de informações sobre a essência dos rituais. Mais recente, diante da luta quixotesca pela da falta de sensibilidade sobre o papel da maçonaria no mundo atual, resolvi dar um tempo nas minhas atividades dentro da loja e me dedicar à literatura. Penso que a ideologia dos antigos, limitada ao interior das lojas, envelheceu e está superada pela era moderna. No Brasil ela sofre com a sua crise de identidade; nem é uma instituição iniciática, nem um clube de serviços.  

A Ordem maçônica, fundada 1717, é o fato histórico mais importante da história recente da humanidade, pois formulou uma filosofia própria a inspirar filósofos, historiadores, estadistas, artistas e escritores que passaram pelas lojas. A maçonaria é, então, uma escola de pensamento fundada em princípios iniciáticos das antigas corporações e guildas de operários da idade média que evoluiu com a entrada de pessoas mais cultas. O resto é fantasia. 

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural (wwwraizesstv.net),  PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.
       
sábado, 12 de abril de 2014 | By: Clara Dawn

Oração à Loja

Os poetas, as crianças e os loucos reinventam o mundo a partir do nada. Gosto de loucos porque fazem o que os outros julgam impossível. Às vezes penso que o Criador age no espírito quando ignoramos os limites da vida terrena; aí Deus permite vôos mais ousados. Antes do nada existia Deus que fez o Big Bang e agora cuida da sua expansão; o Antes e o Depois é Deus. Ele é a causa e o efeito de tudo; o Senhor do tempo inexorável.
Falando assim, eu me lembro da Oração à Loja que escrevi há cerca de quinze anos, hoje decifrada nas lojas das três principais obediências maçônicas do Brasil. 

Oh, Senhor, Causa do Mundo, abençoa minha loja!
Seja ela um oásis onde todos os maçons encontrem harmonia e paz; onde todos os irmãos encontrem hospitalidade, compreensão e bons exemplos; onde a fraternidade seja para a edificação mútua; onde a boa vontade e a alegria sejam uma lareira aconchegante.


Oh, Senhor Deus e Grande Arquiteto do Universo abençoa e ilumina minha loja!
Seus alicerces sejam fundados no Teu amor e as paredes e colunas, respaldadas com tijolos da Tua verdade, que é a única e real proteção. Que os mestres sejam caminhos de abertura à Tua luz e à prática de Teus ensinamentos maravilhosos.


Oh, Senhor, abençoa minha loja!
Seja ela um modelo vivo da maçonaria universal, repleta de paz, como Tu criaste, em cujo progresso devemos decididamente colaborar.


Oh, Senhor Jesus, abençoa e conduz minha Loja!


Tua amorável presença ilumine cada canto, cada símbolo e inspire nossos amados irmãos, onde quer que estejam e em tudo que fizerem afim de que possamos entoar o Teu amor em todas as nossas reuniões.


Oh, Espírito Santo do Senhor, abençoa minha loja!
Restaura-a para que ela se torne, cada vez mais, uma fonte de inspiração divina, com característica verdadeiramente Cristã.


Na maçonaria abraço a concepção filosófica teísta que define Deus como o Ser Supremo. Essa orientação vem do conceito ritualístico que escolhi; o Emulação (no Brasil rito de York), praticado pela Grande Loja Unida da Inglaterra. Da forma como acontece nas relações entre as pessoas, convivo com gente de todas as crenças: os que creem em Deus; os que não creem e os indecisos que acreditam que a vida é obra do acaso.

Então, na maçonaria, além da crença teísta, coabitam as mesmas correntes do pensamento mundano: os agnósticos dizem que Deus não existe; os deístas - uma espécie sempre em cima do muro - afirmam que o Grande Arquiteto do Universo é Deus(?). Também não aceitam nenhuma revelação divina; o que exclui Jesus Cristo. Releia este parágrafo para compreender a razão das diferenças filosóficas da maçonaria e entender como pensam os maçons a respeito de Deus.

Essa é a conclusão após estudos e pesquisas da história da maçonaria operativa, da especulativa e dos rituais em uso na maçonaria universal. Declaro-me teísta-cristão e, ao contrário dos deístas, e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó é o Grande Arquiteto do Universo.

Creio, poeta Valdivino Braz, que somente Ele é capaz de inventar essas bolas chamadas planetas e estrelas flutuando no céu eterno.  

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural (WWW.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.      
segunda-feira, 31 de março de 2014 | By: Clara Dawn

Vento surdo

Outro dia, pensando nas notícias negativas da mídia, deparo com a manchete do Dário da Manhã Os pecados da Imprensa, em que o papa Francisco pede que ela saia dos assuntos  ruins e fale sobre algo construtivo para a vida das pessoas, da família e da sociedade; noticiar violência é promover a desinformação, visto que existem  fatos positivos que poderiam ser destaque na imprensa.

Pois é. Penso num leitor imaginário que pedisse para escrever sobre temais factuais da política e da violência. Recusaria na hora falar desses assuntos. Não sou articulista; gosto de pensar que sou cronista. Ser reconhecido assim talvez seja arrogância; sou aprendiz de cronista. Mas creio em tudo que escrevo. Nessa premissa recuso falar mala de alguém. Seria o mesmo que sentar no próprio rabo e procurar defeito no outro.

Basta-me os meus; motivo das minhas preces jaculatórias e clementes. Há momentos em que o tema morte assume o controle do que escrevo, a ponto de ouvir de outros que estou a escrever negativo. A morte não parece ser interesse ao vivente; é um tabu para muitos. Gostaria de entender o fim da vida terrena com a serenidade de Chico Xavier. Mesmo ignorante visto o chapéu de cronista da finitude.

Concordo com o poeta Jorge Luiz Borges quando diz que talvez você possa escrever melhor se deixar de lado os defeitos alheios. Em nossa volta existe uma aura poética misteriosa como se fosse uma senha para desvendar o coração do universo e ser útil ao leitor. É nesse tipo de escrita na qual acredito.

Venha comigo, você vai perceber que há bondade além das mazelas do mundo. Vejo encanto nas luzes refletidas no asfalto molhado, vistas do alto do prédio de apartamentos; os faróis e lanternas acesos imitam vaga-lumes com rabos de fogo. A moça apressada anda rápido para entrar no serviço; a marmita vai na sacola. O lavador de carros madrugador que amanhece para lavar os carros na porta do Sindicato dos Taxistas. O otimismo do feirante vendedor a anunciar produtos sem agrotóxico. A caminhada terapêutica dos idosos na Praça do Avião revela uma atitude, talvez, tardia de adiar o fim.

Há poesia e mistério no coração das pessoas. É só descobri-los com boa vontade. Aí, bem que a manchete do jornal poderia atender ao que idealiza o papa Francisco: “As virtudes da Imprensa”. 

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes 
sexta-feira, 28 de março de 2014 | By: Clara Dawn

O lago virgem - partes I, II e III

         
Acender a chama de pescador é só falar em pescaria farta.  Foi o que fez o Beto para motivar a turma de pescadores à procura do lago virgem e cheio de peixes. A cansativa travessia da mata densa deixara todos abatidos. Nem o guia podia imaginar a dificuldade em atravessar a mata fechada. Só então um dos pescadores perguntou ao Beto como ele soube que o lago era virgem.

            -Foi um índio Karajá quem me disse.

             Dico maneou a cabeça. Mas guardou para si aquele gesto negativo. O dia começara a clarear. Os pássaros na mata anunciam que o sol, inexorável na sua viagem pelo universo, abre passagem a onipresente luz da manhã. O vento suave, fresco, resoluto, cúmplice, afasta os galhos das árvores na tarefa de ajudar o sol a transpor a mata. Nada detém o vento e o sol que brilha nas gotículas madrugadoras caídas do céu. A luz  agradece e ilumina o ventre da mata.

          Nem a música afinada dos pássaros ameniza o semblante cansado da turma. A luz forte do sol mostra as rugas velhas, agora cansadas, do arauto do lago virgem. Sua figura de aparência rude esconde a doçura de alma ingênua, quase cândida. Em Luiz Alves, portal sul da Ilha do Bananal, Beto é um pescador desacreditado. Ridicularizado até. Quando sai com uma turma de pescadores os barqueiros ribeirinhos costumam despedir-se dizendo:

            -Vai lá, pé-frio. Vai dar isca pros peixes.

          Talvez venha da necessidade de mostrar o contrário que Beto se esforça tanto para uma boa pescaria. O cortejo rasteja cansado sobre as folhas secas. Ouve-se, ao longe, o som de um motor de popa que aumenta até parar.  Distingue-se vozes e o característico barulho de algo caindo na água. Viram depois que era uma “poita”, espécie de âncora feita de virabrequim de motor velho.

          Beto, eufórico, anuncia:

         -Chegamos. É o lago.

          Entre os pescadores há alívio pela chegada. Mas também decepção em perceber pescadores no lago tido como virgem. Chegaram à margem do lago. Apressaram os passos e depararam com uma turma de pescadores esparramada pela lagoa do tamanho de um campo de futebol.

          - Por onde vocês vieram?

          - Pelo meio da mata quebrando galhos para passar a canoa e a traia.

          - Não precisava disso. A lagoa é boca franca. A gente chegou aqui com o motor ligado, nem precisou de remo. Vocês só precisavam descer mais uns dois quilômetros e entrar no canal que traz ao lago. É fácil chegar até aqui!

           Toda a turma olhou para o Beto que se escondeu atrás de uma árvore de casca grossa. Nenhuma palavra foi dita; nem Beto disse nada. Talvez pensasse na sua atual fama de pé-frio. Àquela hora a fome era tanta que todos sentaram para esperar a comida. Osvaldinho, o cozinheiro, resolveu montar a trempe para cozinhar. Jogou óleo na panela. Adicionou tempero e deixou dourar. Enquanto isso ele  desceu ao lago. De cócoras lavou o arroz e a carne seca, sacudindo-a para que as larvas da varejeira desgrudassem da manta de carne. O cheiro de arroz refogado invadiu o ambiente silvestre.

              Havia em Beto algo que lhe dava a certeza de que a sua sorte iria mudar. Transpareceu entusiasmo suficiente para motivar a turma. Essa era a sua obrigação de guia de pesca. Mesmo que nenhum daqueles pescadores tivesse pescado um só peixe Beto confiava na sua sorte que o ajudara, no passado, a fisgar peixes grandes. Existe uma porta misteriosa que dá passagem ao pescador de sorte. Uma magia que percorre a vara de pesca e busca, no fundo das águas, o peixe desejado.

             O ânimo voltou a acender a alma aventureira do grupo de pescadores acontecendo fatos que vou narrar no próximo sábado.

Pirarucu, o rei do lago

      Beto idealizara essa pescaria para reconquistar a sua fama de bom pescador; perdida depois do literal jejum de peixes. Ganhara muito dinheiro pescando e trabalhando de guia de pesca. Porém, gastou tudo com a mulherada da zona de São Miguel. Talvez por isso morasse sem mulher nem filhos num rancho de palha à beira do rio. Beto conhecera bem as estações das águas, as espécies de peixes, os bichos da região, as fases da lua, as aves coloridas que, aos bandos, empoleirava-se nas árvores espetadas no terreno arenoso do Rio Araguaia. Mas, aprendera que para um bom pescador a sorte é mais importante do que a experiência.

       Na crônica anterior contei sobre os pescadores que se encontravam no lago virgem. Pois bem, desanimados com a escassez de peixes, foram embora no mesmo dia. Ficou a turma de Beto, cuja obsessão era pegar um peixe grande. Que a sua sorte não o abandonasse nesse momento de provação!

        Utilizaria de toda a sua experiência para favorecê-la. Estava atento ao movimento da água. Cau uma frutinha vermelha conhecida por “mata-fome”. O tucunaré pulou engolindo-a antes de cair na água. Uma onda grande, suave, diáfana, se formou nas profundezas do lago envolvendo o tucunaré. O pescador, intrigado, fixou o espelho da água procurando o insólito.

      Enquanto observava, filosofou em silêncio. “A poesia da água é a metapoesia da morte. A água é um elemento efêmero, traiçoeiro, que revela o fim”. Permaneceu calado quase vinte minutos. Sabia que “aquele” peixe viria à tona para respirar. Nada desviou a sua atenção. Nem o barulho da turma que se ajeitava para pescar. Um rebojo agitou as águas. O monstro submergiu impávido. Apareceu a cabeça do gigante. O resto do corpo deslizou sobre as águas.

    -Meu Deus, é um Pirarucu muito grande. Deve ser o pai de todos!

     Calculou mais de três metros; uns 200 quilos de peso. Mesmo impressionado resolvera nada dizer aos outros. Temia ser ridicularizado se dissesse o que vira. À tarde, a sua turma, decepcionada, decidira voltar ao acampamento. Beto, ao contrário, ficara para cumprir seu plano. Atlas, piloto do barco, tentou dissuadi-lo. Inútil.

       - Então, vamos deixar comida pra você. Fica a lona para montar uma barraca. Ah, tem uma canoa no outro lado do lago. Depois da pescaria deixe-a no porto de Luiz Alves.  

        Essa pescaria exigiria uma estratégia especial. Acendeu uma fogueira para que o fogo, que ardia no inferno e brilhava no céu, lhe devolvesse a sorte. Jogou a lona em cima das varas em forma de jirau prendendo as pontas com pesados galhos. Dormiu coberto com trapos sujos de um estandarte conspurcado pela má fase. No interior da barraca improvisada fizeram-se trevas, mas apontavam o caminho da luz.            

      O dia chegara à garupa da esperança. O vento leste remexera as folhas caídas na madrugada de espera. Uma zonzeira estranha invadira seu corpo. Levantou-se num impulso, caminhou firme rumo ao lago. Agradeceu a Deus, o Criador, pela maior conquista humana: a verticalidade.

       Examinou o lago à procura do peixe-rei. Esperto, ele não apareceu aos olhos do pescador. Talvez boiasse debaixo dos galhos arqueados sobre o lago.  Uma neblina rala se desprendeu das águas mornas, aquecidas pelo verão. Pássaros alegres romperam o silêncio sepulcral do ermo. Assim, vigilante, passou o dia. Anoitecera sem que Beto jogasse o anzol na água. Respeitou a vontade do peixe, o rei do lago.

         No dia seguinte, bem cedo, estava pronto para a batalha. Tudo fora calculado: aonde jogaria o anzol, quanta de linha poderia dispor para o caso de ele embravecer; isso era certo. O segredo para pescar peixe grande era não deixar a linha tesa por muito tempo. 

         Arremessou a isca disfarçada no anzol tipo gancho de açougue. Talvez a maior dificuldade, além de fisgá-lo, seria evitar ser devorado pelas piranhas vermelhas e candirus banguelas.

        Três horas depois a linha, tecida com fios de seda, foi esticada para dentro do lago. Depois afrouxa a linha, leve, que flutua sobre a água morna. Parecia que o peixe desconfiara da armadilha. Beto, experiente, ficou quieto. Conteve a respiração, permaneceu inerte. Seu suspense saltou sobre a  superfície tal qual pedrinha n’água.  

          O pirarucu engoliu a isca devagar. De repente um coice abissal. A linha deslizou acelerada como sarilho de cisterna queimando as mãos de Beto. Ele deu um tranco contrário cravando o anzol no bucho do peixe. Miríades de olhos ocultos observavam a luta de titãs. Fisgado, o peixe arrastou Beto com os calcanhares esquiando na terra. Bendita força da gravidade. Os pés tocaram a água. Entrou no lago até a cintura, mas suas mãos, sangrando, não desgrudaram da linha. Pensou: “Se a gravidade é um fardo que prende a alma, pegar este peixe será minha honra no  voo da superação”.

         A linha retesada entoou uma canção de vitória. O peixe gigantesco, atônito, saltou acima da superfície. Tentou se livrar do anzol. Mas, estava inapelavelmente fisgado. Os cabelos brancos e a pele enrugada do pescador balançaram numa imagem ambígua, misteriosa.

      

O fim da pescaria no lago virgem


         Com o pirarucu fisgado Beto lembrou a solidão do seu rancho na beira Rio Araguaia; sua luta pela sobrevivência, seus sonhos, seus pensamentos a respeito da vida miserável que o acompanhava desde criança. Mas, tinha saudade dos tempos em que a pesca abundante atraía amigos e admiradores. Fora um rei da pesca; a má sorte lhe tirara a coroa. Talvez a pesca desse peixe grande lhe trouxesse a sua reputação de volta.

         Aquele peixe enorme, o maior que vira em sua longa história de pescador, não se entregaria facilmente, pois o seu instinto era sobreviver. Num puxão brusco, que quase lhe tirou a linha das mãos, o peixe foi ao fundo do lago; depois arrancou em sentido oposto. Beto soltou a linha e o deixou viajar pelo lago. Deu-lhe, talvez, a última sensação de liberdade. Embora disposto a levá-lo ao porto de Luiz Alves, Beto o respeitava; fez-lhe todos os gostos até que a sorte apontasse o vencedor. Cada gesto dos dois parecia pensado e medido. Enquanto isso Beto permitiu que o pirarucu saísse para respirar a brisa fresca soprada por baixo das coivaras.

        O sol começava a se mostrar acima das árvores altas que cercavam o lago. Beto grudou as mãos na linha de fio de seda e a recolheu apressadamente; o peixe lutou fazendo força contrária. Suavemente seus braços, ainda musculosos pela lida, puxaram uns cinco metros de linha. O peixe forçou para escapar do anzol. Beto permitiu a linha correr novamente e a recolheu. Assim foi, até que o pirarucu, sentindo o estertor da morte, reunisse suas forças e, desesperado, saltou fora da água tentando se livrar do anzol.

       O pescador segurou a linha com firmeza sabendo que, quando descesse, o peixe  mergulharia até ao fundo. Suas feridas nas mãos doeram, mas não descuidou da linha. A dor da humilhação anestesiara sua dor, aumentando suas forças. O peixe grande, enorme como jamais pescara, dava sinais de que logo se entregaria. Exausto, mostrou a cara olhando respeitosamente o pescador. Soltou um ronco e se prostrou rendido. Suas escamas, nas cores prata e vermelha, brilharam á luz do sol.  

          Beto finalmente vencera o rei do lago. Cravou o arpão no peixe com o respeito que aquele gigante merecia. Foi um golpe de misericórdia. Era muito grande para colocá-lo dentro do barco. O jeito seria amarrá-lo atrás para levá-lo seguro ao porto. Temia de que as piranhas, ao sentirem o cheiro de sangue, atacassem o peixe. Outro perigo, os candirus, seriam capazes de, mesmo sem dentes, devorar a carne do peixe em minutos, deixando só a carcaça.  

          Desceu da canoa e, através da vazante estreita, pôs a corda no ombro arrastando o peixe até a foz do rio. Cravou os remos na alma do rio em catarse de suas dores. Singrou as águas determinado. Olhou para trás orgulhoso da sua conquista. Queria chegar ao porto de Luiz Alves. Àquela hora seus amigos pescadores estariam chegando.

           Desesperou-se ante a visão de um bando de piranhas vindo em direção do peixe. Ela sentiram o cheiro do pirarucu machucado. Rápidas, retiravam nacos da carne, num banquete macabro. Com o facão de folha comprida e afiada matou várias piranhas; porém, o facão revelara-se ineficiente para vencer as outras. Chegando à rasura, largou os remos e combateu-as ferozmente com o que tinha dentro do barco. Percebeu que seria inútil lutar contra milhares de piranhas assassinas. Ante a demora pelo socorro dos amigos que o ajudariam a tirar o peixe da água pulou no rio. Segundos depois uma onda vermelha, de sangue, envolveu o barco descendo mansamente o Rio Araguaia até se diluir nas águas borbulhando como se cozinhassem os corpos do Peixe e de Beto. Em poucos minutos as águas rasas se acalmaram. Um bando de curicacas sobrevoou o barco em grunhidos sinistros.

       O esqueleto do pirarucu permaneceu amarrado ao barco, uma visão estranha, mas resgatara definitivamente a imagem do velho pescador. O esqueleto de Beto ficara, para sempre, sepultado nas areias do rio igual poita de um barco de sonhos apontado para o céu.


(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 30/04/2011)