segunda-feira, 15 de setembro de 2014 | By: Clara Dawn

Flor de ipê que voa

O que mais tememos é o novo. Aquilo que nos faz sair dos nossos hábitos. Eu odiaria morar em São Petersburgo; Dostoiévski, não. Crime e Castigo é ambientado nessa cidade fria, cinza e perturbada pela culpa de Raskólnikov. E se eu morasse no Rio de Janeiro? Detesto água salgada. Tom Jobim, notívago inveterado, amava o Rio. Ou amava as garotas da praia? Ambas as coisas, penso.
           
Morar em Petersburgo ou no Rio de Janeiro é uma novidade que me assusta; nem o frio cinzento da cidade de Ródia, nem o sol escancarado na areia quente de Ipanema. Contento-me com o tempo abafado seco de Goiânia nesse prenúncio de primavera. Estou a me acostumar com a ideia de, num dia qualquer, morar em Piracanjuba. Lá sou amigo do Mazai e da Fadinha que - na chegada - me esperam na porteira e - na saída - vão até ao mata-burro do Sítio Vale de Quimeras. Quando estão com fome dizem, psiu! Quando vou embora, tchau.
             
Parafuso, um vira-lata tão querido quanto o falecido Loló de Gabriel Nascente, viajou direto para o céu. Antes desse fatídico dia, durante a sua curta existência de sofrimento, Parafuso fora coroado por mim o Rei do Vale. A coroa foi passada a Mazai, um pastor alemão negro e brincalhão que chegou depois. Noutra dia eu sonhei que os cachorros falavam. Do jeito que as coisas vão os cachorros logo vão falar. Nesse dia direi a Mazai para calar seus latidos nas minhas madrugadas. Declamar versos de Fernando Pessoa é melhor. E o pássaro-preto, faça chuva ou sol, cantiga alto no cajueiro em flor.  
            
Lá também moram araras-azuis, canário amarelinho igual ao Piu-Piu e um casal de pirarucus - chamados Boni e Clyde - festeiros das manhãs ensolaradas. Ah, tem um Martim Pescador bem atentado. Noutro dia um canário amarelo voou baixo sob a luz do sol. Disse à Clara: “Eu vi uma flor de ipê amarelo voando”.  Nesta crônica escolhi falar de amenidades. Concordo que o cronista deve refletir a alegria do mundo. Tom Jobim pensa que “a arte tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta”.
            
Então, viva Bernardo Elis, J.J. Veiga, Dona Belkiss, Carlos Brandão, Siron Franco e Marcos Fayad. Pois é. O que é honesto é simples e direto; a desonestidade, ao contrário, é falsa e dissimulada. Por falar em simplicidade me lembro da pintora Djanira. Ela foi uma artista brasileira famosa que pintou a gente simples das ruas, dos campos e do mar. No fim da sua vida renunciou a tudo, internou-se num convento de freiras e passou a se chamar Teresa do Amor Divino. É dela um poema chamado Viagem. É assim: Eu vi nas cores do marfim/um elefante selvagem/que viera das índias/oferecendo-me caminhos/onde poderia/perigosamente/fechar meus olhos/ e partir, partir.../Mas era pecado/e viajei no pecado/Ao infinito viajei/ e perdi-me no tempo/ que era pecado.
             
Comecei falando de medo do novo e me perdi nessas abstrações da escrita. Mudei o rumo da prosa. Também pudera. Escrever uma nova crônica já não me apavora, nem angustia. É só refletir o que está na alma.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 13h30.

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