domingo, 9 de junho de 2013 | By: Doracino Naves

0 morto da Praça Cívica

Há um corpo morto na Praça Cívica. Quem ousou morrer na Praça Cívica às seis horas da manhã?  Não sei quem foi. Mas, um homem morto está lá, estirado no anel interno, bem perto do coreto. Traja roupas brancas manchadas de sangue. Ao lado há um carro da polícia com as luzes piscando, talvez à espera do camburão gelado do IML. A maioria dos carros e pedestres que passam é indiferente ao morto, cujo espírito sobe ao céu escoltado pelas luzes coloridas da viatura da PM. Acho uma ignomínia alguém morrer aqui; onde já foi palco de festas, shows e inflamados comícios.  O das Diretas Já plantou as sementes de eleições livres no Brasil.
                 
Nessa praça não é lugar de morrer; nem tristeza cabe neste lugar. Afinal, seus anéis guardam a alma festiva dos primórdios de Goiânia. Outra razão muito importante para celebrar a Praça Cívica: aqui mora o mestre dos mestres Bariani Ortêncio. Só que o morto nem se importou com isso, quis morrer aqui. Foi pura ousadia cair morto na Praça Cívica. Petulante! Pensando, melhor: Coitado! Será infeliz quem morre? Há controvérsia. Pois é. Penso que o morto desprezou os perigos da noite com ideias de aventuras. Porém, a escuridão não poupa os incautos.
                   
Até os que se julgam mais fortes e lutam contra a finitude morrem como ovelhas no final da noite. Aí eu me lembro do escritor francês  Alfhonse Daudet que escreveu A Cabra do Sr. Séquiem. Branquinha fora confinada num estábulo, mas fugiu para as montanhas geladas através de uma janela. A montanha inteira fez-lhe festa; ela se sentiu feliz com a liberdade.
                   
Logo o vento esfriou a noite. A montanha se tornou violenta. De repente ouviu o urro de um lobo. Entre as folhagens apareceram os olhos famintos do lobo sentado nos quartos trazeiros. Não havia estrelas no céu. Valente, lutou a noite todo com o lobo. Pela manhã ele a devorou. Talvez o morto da Praça Cívica tivesse pensado que venceria os terrores da noite. Ou, quem sabe, ficara iludido com os acenos frívolos das coisas mundanas e se distraiu.
                     
Uma certeza: morrera para cumprir o destino do homem de um dia qualquer ir para o além. A vida é fugaz. Chegou o camburão do IML para recolher o corpo. Sinto a alma pesada com essa visão. Movimento-me com a lentidão massiva de um continente se deslocando no milenário vaivém da terra. Saio pensando na missão de um cronista. Escrever não é uma mera ambição. Talvez seja uma forma de ficar sozinho para contar o cotidiano. C’est la vie...

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista -Goiânia - Goiás em junho de 2013).
                             

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes, na Fonte TV e Canal Metrópole. Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 2 de junho de 2013 | By: Doracino Naves

Metasonho

Quase noite. O lusco-fusco deita preguiçosamente sobre o capim jaraguá que começa a dar sinais de seca. Vem a noite escura e densa cobrindo com seu véu o caminho sinuoso que leva à cidade de Goiás. Quica, neta de escravos que continua escrava, apesar dos tempos novos, fecha a janela de madeira deixando de fora seres notívagos que vagam pelos currais e taperas mal assombrados. Não conhece nenhum lugar além da casa grande onde nascera e vive para o trabalho. Festas só na fazenda, assim mesmo para servir os convidados.
   
Aprendera com sua mãe, também escrava, apesar de liberta, a ser servil com seus patrões aos quais, por tradição dos escravos antigos, deve demonstrar gratidão e subserviência total. Os filhos do patrão foram estudar muito longe. Rio...Rio de Janeiro. É isso. Um dia, Maria de Lourdes, a filha mais nova, chegou à fazenda barriguda de neném. Depois de alguns meses foi embora deixando um menino aos cuidados da avó. Na verdade quem zela da criança é Quica. Balança suavemente o berço. Sussurra uma canção de ninar: “Boi, boi...boi da cara preta, pega esse menino...” Seu canto sai triste. Está macambúzia com a lembrança dos pais; cochila junto com o menino.

Uma luz oscilante de lamparina não decide se fica acesa ou se apaga com o vento fraco que entra através das frestas do telhado antigo. Acorda sobressaltada com o choro do menino. Já faz uma semana que ele chora quase sem parar. Seu umbigo crescera até estufar. Quica está para morrer de tanto sono. Mas o choro quase aos gritos não lhe dá sossego hora nenhuma. Sente o cheiro do mato misturado com as fezes do gado. O canto monótono de um curiango ecoa na noite. Ou seria voz de assombração? Está confusa pela falta de um sono longo e reparador. A mente tonta de sono vacila com pensamentos disformes.
      
 Mas, não descuida do menino. Procura fazê-lo dormir, quem sabe assim ela poderia dormir um pouco. Tem de ser disfarçado, pois se os patrões a pegam dormindo, talvez leve uma surra. Tem medo da patroa velha, gorda e má. Com sono sua cabeça fabrica sonhos alucinantes e terríveis. A avó do menino, com cara de fantasma, aparece com uma lamparina na mão. Na outra, uma caneca de chá feito com o sumo do assa-peixe branco. Pode ser bronquite. A velha dá o remédio e volta ao seu quarto com suas vestes brancas fantasmagóricas que balançam até desaparecer no corredor longo e madeiroso do casarão secular. Tóc-tóc-tóc, o tamanco martela os ouvidos de Quica. O sono irresistível distorce sons e a sua imaginação voa alucinada.
          
Sonha com bezerros negros caindo no rio pedregoso que desce das serras em volta da cidade. A correnteza arrasta os bezerros água abaixo. Depois sonha dormindo um sonho longo e profundo; o metasonho pouco ameniza sua vontade de dormir. Volta o choro berrado do menino e a desperta bruscamente. Pela primeira vez sente raiva daquela criança. 
        
Sai o sol. Os animais e os pássaros fazem festa no milharal. Tudo parece alegre; menos Quica. Dormir é a sua maior obsessão; ficaria até sem comer para dormir um sono pesado e sem preocupações. Distraída nem percebe que o menino chora. Sonha abandonada numa estrada sem fim perseguida por enormes caititus. Sobe num cupinzeiro alto, quando sente um empurrão forte. Era o patrão que a despertara com um soco nas costas. Vê a cara do patrão enfurecido gritando aos berros para olhar o menino. O garoto chora desesperado; parece manha. Sua ojeriza pelo patrão aumenta e tudo que cerca aquela casa tem um tom escuro de revolta. Ninguém a deixa dormir.
          
Sua patroa ordena: - vá, agora! lave a roupa que está no batedouro e depois varre a casa, inclusive a varanda e o quintal. No fim da tarefa o menino volta a chorar. Antes de a velha ficar nervosa, corre ao quarto para cuidar do menino.
         
Diabos! Esse menino nunca dorme; chora noite e dia sem parar. Nisso, ouve o tropel de cavalos apressados chegando à porta da sala. Era o peão a dizer que o médico chegava para ver o menino doente. Um Fordinho 29 ronca sobre o mata-burro. Enfim chega o médico novo e disposto. Entra na casa com suas botas rangedeiras de couro e vai logo ao quarto do menino. Após o exame decide levá-lo ao hospital, distante quatro léguas da fazenda.
             
 - Quem vai comigo para fazer-lhe companhia?
           
Quica receou que fosse ela a escolhida. Ponderou, em silêncio, que a patroa velha e doente não suportaria cuidar das tarefas pesadas da casa. Para sua sorte a patroa se prontificou em ir com o neto, talvez pensando em rever as comadres da cidade. A empregada se sentiu no céu.  Sem ter de cuidar do menino poderia dormir na sua cama de colchão feito de capim, ou quem sabe, à sombra da mangueira mais sombrosa do quintal. Coou o café de despedida. Saíram o três ao som estridente da buzina do  Fordinho  que berrava pelo caminho.
                 
Então, Quica se sentiu a mais feliz das escravas. Podia, agora, dormir e sonhar livremente.

                    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raizes Jornalismo Cultural, na Fonte TV e Canal Metrópole (raizestv.net). Escreve ao sábados no DMRevista.