domingo, 30 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Tatu cego

 
Aquele homem tinha o rosto cavoucado. Suas covas, exageradamente puxadas para dentro,semelhavam as de um judeu que passara pelo holocausto nazista. Ou a buracos cavoucados na rocha por um tatu cego. A natureza, indiferente às dores do homem, não se dobra às suas angústias. Segue o seu destino de animar o planeta. Os beija-flores, indiferentes ao homem de rosto cavoucado, tilintam suas asas de cobre ao redor das flores. O trinca-ferro desrespeitoso zune o seu canto na imensidão. Mais alto, um bando de urubus espreita o que acontece lá embaixo. O urubu é capaz de sentir o cheiro da morte à distância. Nessa hora, um urubu-rei, tal qual o homem que se agrupa nos velórios, chama outros urubus para espiar a morte. O homem de rosto cavoucado, com a cabeça inclinada para trás, é o retrato do inexorável fim. Mas, Ditão, embora doente, continua vivo.
Chegara há três semanas ao garimpo de Lavrinhas, no interior de Goiás, onde se acomodou com outros garimpeiros em um tosco rancho de palha. Viajara para tentar a sorte no garimpo. E, quem sabe, realizar um sonho: colocar, na frente da boca, dois dentes de ouro. O ouro da alegria. Queria mostrar a sua prosperidade. Por que não? Lembrou, magoado, que padre José lhe fizera um demorado sermão antes da viagem. Assim mesmo, deu de ombros e se foi deixando sua mulher e um casal de filhos pequenos em Hidrolândia.
Ainda ontem começara a se sentir mal; com periódicas ondas de calor a lhe causar calafrios terríveis. A palidez da pele amarelou mais com a chegada dos suores intermitentes. Seu corpo geme de dor. Os colegas garimpeiros tentam aliviar o mal com chás e rezas. A febre vai e volta com surtos esporádicos a lhe cozinhar o fígado e o baço.
Nos gemidos do garimpeiro doente havia um tom de blasfêmia por causa do mau agouro do padre. Em outros momentos orava com fé. De modo que a blasfêmia e a oração estavam carregadas de explosões atômicas a fustigar a sua alma.
Nem os chás e rezas aliviam a doença inesperada. Está muito cansado; cochilou por um instante. Sonhou com a mulher e os filhos embaixo de um pé de jabuticaba. Acordou com o próprio grito. Ouviu através da indiscreta parede de palha trançada: “É... ele vai morrer, pegou a caladinha”. Estremeceu de angústia ao ouvir isso. Saltou da cama, cambaleando foi de um lado ao outro do rancho. Chegou à porta que estava aberta. O ar parecia parado. Estranhou o silêncio aterrador que o cercava.
Precisava acordar para tirar da cabeça aquele sonho terrível. O ronco de um garimpeiro o trouxe à realidade. Começou a perceber que não fora sonho o que ouvira. Então era verdade: estava com a terrível maleita. A opressão mental se transformou em dois blocos de pedras gigantescos a esmagar a sua esperança. Sentiu-se nu e descalço no meio de um frio pântano negro. Começara o seu purgatório. O céu desceu até a sua cabeça com pesadas nuvens de angústia. Não daria tempo de chegar ao hospital Samaritano, distante, pelo menos, vinte léguas do garimpo. Estava fraco; o ar lhe passava arranhando os pulmões.
Pôs as mãos sobre a cintura. Estendeu os polegares para frente, em atitude de submissão. Os outros dedos apertaram o baço num gesto desesperado de retirar à unha a sua dor. Sumiu na noite sem lua. Nenhum garimpeiro percebera a sua ausência. Amanheceu.
Ninguém sabia o que acontecera ao companheiro de rosto cavoucado. Reunidos, chamaram por ele. Viram um bando de urubus voando alto, bem alto. Arautos da morte.
O chão tremeu sob os pés dos homens que também começaram a ficar com seus rostos cavoucados. Talvez fosse um bando de tatus cegos a cavoucar as rochas do tempo.
 
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia - Goiás em 29 de setembro de 2012)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 23 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Chuva das flores



É sobre as águas que este ano nunca chegam que chamo. Vem, chuva, acompanhada pelo vento fraco para não arrancar o teto das casas humildes. E ao ventar desapeie das árvores as folhas secas, carentes de água, a rangerem na minha madrugada. O vento, qual fantasma que nunca dorme, rola as folhas em movimentos circulares pelo asfalto. Peço que dentro dos redemoinhos saiam anjos a zelar o sono da minha amada. Que a chuva temporã calem as folhas derramadas no asfalto. Dorme, amor.
 
Água, vem, cubra com sua roupa translúcida as assanhadas árvores peladas das ruas de Goiânia. Elas se despiram das folhas, na voluptuosa passagem antes da primavera; na gestação das eras. E o vento sul traz nuvens, poeira, bafos de calor salpicados de tímida umidade. O canto da cigarra ecoa forte no ar pedindo chuva. Outras, trepadas nos galhos nus, formam uma orquestra desafinada. Os trovões anunciam a chegada da chuva das flores. Das de manga, caju, pequi, araticum, bacupari.
 
Nesses tempos inseguros, a precisão das chuvas rompe as barreiras da imprudência do homem que constrói prédios e asfalto impedindo a terra de respirar. Lá vem a chuva das flores como se fosse um mar desorientado a molhar nossa alma seca de amor ao próximo. Diz a cultura popular que a chuva das flores traz fartura; amacia o pasto do nosso bife; molha as entranhas do ovo nosso de cada dia; dá água às frutas. Mas, arranjo do tempo, derruba as flores do ipê. A sorte é que, murchas, elas adubam a terra para confirmar o florir do ano que vem.
 
Vem, chuva, vem! Bate os seus pingos nas janelas dos apartamentos. Lava a cara de pau dos políticos e tire o pó do espírito de porco. Chuva chega mais perto, tira o zinabre do tempo para que o nosso olhar vá mais longe sem as partículas impuras do ar. Vento uive à vontade por entre as frestas das janelas semiabertas. Seque os beijos dados sem amor.
 
Venha logo, chuva das flores, traga o ronco das antigas trovoadas com os relâmpagos a vazar, com suas luzes, as cortinas do quarto. Molhe a mangueira do quintal. Mas, peço ao vento e chuva das flores, venham calmos como se fosse uma tropa de cavalos mansos cavalgados por homens sem pressa.
 
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural(www.raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Carta de náufrago

 Agora que o mormaço de setembro zumbe nos ouvidos, misturando a linguagem da seca e do calor brabo, o olhar se volta para o alto em busca das nuvens que o vento levou para outros céus.  O amarelo do sol, sugado pelos ipês floridos, tinge esse cenário de quarenta graus. Sou o centro das minhas coisas; não o meio do mundo, mas o ponto dentro do círculo das emoções entrincheiradas nas frestas da alma. Há sempre uma fina cortina a trespassar o passado. As vibrações delirantes do tempo seco me faz imaginar coisas: uma bailarina dança indiferente à corte do cisne.
 
Nas ondas flamejantes do sol cáustico o balé renascentista serpenteia dentro da minha realidade. A espera da chuva para o mês que vem enche de esperança o lavrador da terra. Debruçado à margem seca ele vê o Meia Ponte perdido no seu leito esponjoso. Os barrancos secos clamam por chuva. Muito se perdeu nesse rio de águas inconstantes e lambuzadas: juras de amor; cartas jogadas em seu leito como se fossem mensagens de náufrago; mentiras e verdades faladas nas horas incertas; os discursos idealistas de Haroldo Gurgel, Alfredo Nasser, Pedro Ludovico e as inflamadas falações no palanque das Diretas Já; os gritos de gol do Tigre da Vila ainda ecoam nos remansos do rio.                  
 
Os fantasmas ressuscitados nos peixes beliscam o lixo flutuante que, certamente, no seu destino de dejeto, há de encontrar um porto antes do oceano. Talvez acompanhado pelos habitantes das trevas e do caos: ratos, baratas e aranhas.
            
 Muito se perdeu nas curvas deste rio. Os quatro ventos, incontroláveis, sopram as águas de quem mora em Goiânia. E os ventos, nesse sentido, simbolizam o redemoinho da vida que corre inexorável como as águas do meu rio. A cidade cresce estendendo os seus braços em todas as direções. Ainda vai crescer muito. Tem um poema de Gilberto Mendonça Teles que diz assim: “Certamente os braços continuarão crescendo. O tato se tornará mais sensível. E os dentes crescerão tanto que a boca ficará sempre aberta, um túnel”.
         
 Já que falei de Gilberto, aqui vai outro poema, bem ao gosto de quem se dedica a escrever: “Eu caminho seguro entre palavras e páginas desertas. Nas retinas: sonhos de coisas claras e a lição de outras coisas que invento para o só testemunho de minha construção imaginária de pedra sobre pedra e cimento e silêncio”.
            
Pois é. Melhor ficar calado diante da eloquência dos versos de Mendonça Teles.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em  15 de setembro de 2012)
       
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreve aos sábado no DMRevista.




sábado, 8 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Céu risonho




 Não há nenhuma nuvem acima dos prédios do centro de Goiânia. O céu está limpo nessa madrugada. É mês de setembro, cinco horas da manhã. O barulho das turbinas do avião subindo invade o meu sono. Depois que ele passa  ouço o canto demorado de um galo. Custo a acreditar nos meus ouvidos porque não mais existem galos por aqui que a falta de quintais não deixa. Esfrego os olhos para acordar. Na sacada, espremido na pequenez do lugar, entre o varal de roupas e a parede baixa, aparece Simão, o Sem Caráter. Seu corpo etéreo balança com o vento chiando entre as peças de roupas e o lençol branco estendido no espectro da madrugada. Dá um calafrio, rápido talvez provocado pelo ar fresco que sopra a pedir mais zelo desse escriba a Simão.
         
De vez em quando ele volta da sua recôndita morada para me seduzir a escrever coisas do seu agrado. Pergunta-me se escutei o canto do galo. Faço-me de desentendido. Ele recomeça a sua conversa mole. Simão é sempre assim: antes de eu responder ele emenda as suas pataquadas. Comprara o galo numa loja de aves da Avenida Castelo Branco, em Campinas. O nome do galo é Conrado. Jura que é um galo cantor; canta dois minutos sem parar. É grande, bonito; todo branco,  bico fino, afiadíssimo. E para me agradar diz que a cauda dele é toda vermelha, da cor do Vila Nova.
           
Havia um tom de ironia em suas palavras; imagino que se refere à posição rabeira do meu time fora de série. Simão garante que comprara o galo também para alertar aos moradores do Centro que o dia deveria ser de vigília quanto às hipocrisias e injustiças. E completou esperançoso: - Ele vai fazer nossos vizinhos se lembrarem da vida rural. O galo canta alto para avisar às galinhas que o chefe está vivo e no comando do terreiro. Simão se tornara uma galófilo irritante.
          
Percebendo minha impaciência a ouvir essa história de galo musical, Simão desapareceu entre os prédios da Rua 20. Um cheiro suave de rosas foi se diluindo na fluídica manhã.           
           
Comemoro a presença de Simão quando começo a escrever. Acho que a entrada dos personagens numa criação artística deve ser celebrada discreta e humildemente, pois é o começo de alguma coisa. O agradecimento deve ser guardado para a saída, quando o texto termina.
             
A crônica poética me ajuda a pensar na realidade desvinculada do presente irônico dos tempos de hoje. Uma foto, por exemplo, mostra uma inocência irônica, passiva e ilusória. A ficção permite que os personagens se materializem diante de nós como nossos contemporâneos; sem as amarras do texto macarrônico.  
             
Desperto dessa passagem com a garganta seca provocada pela baixa umidade. O canto do galo ecoou mais uma vez. Soa como se fosse o toque de trombeta sobre a cidade adormecida.  Vigiai, ora, pois! Conheço pouco da grande corrente do misticismo judaico, mas essa conversa de galo está chegando ao fim sem nuvem, mas com o céu risonho de um azul translúcido.
            
                
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraízes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 3 de setembro de 2012 | By: Doracino Naves

Agulha de cego

                 Um cego e o seu indispensável guia esgueiram-se por entre os carros parados num sinal da Alameda das Rosas. O da frente vai com a mão entendida; bate no chão a bengala puída. O cego põe a mão no ombro esquerdo do outro e o segue confiante. Assim, vão de carro em carro; o cego, de expressão serena, recolhe as ofertas e as deposita num embornal encardido pendurado no seu pescoço. O guia, resignado com aquela missão, escolhe o carro a abordar. Solidários, um põe a sua esperança no outro e dessa forma enfrentam o sol forte do meio dia.
             
Do lado direito da rua o motorista de uma reluzente camionete, parada na lerdeza da tarde que se inicia, abre o vidro elétrico e olha a dupla com desdém. Lembrei-me de Lúji, personagem de Dostoiévski, que, na sua verve egoísta, disse que se rasgasse o seu casaco e ofertasse a sua metade ao próximo, ficariam, os dois, seminus. Dissera, no alto de seu egoismo, que o ser humano precisa triunfar da quimera e do devaneio para amar a si mesmo por inteiro. Ou seja, amar a si mesmo é jamais dividir o que tem com o outro; ambos poderiam ficar sem nada.  Eu, do time dos bobos de galocha - mas se me deixar influenciar pelo personagem de Crime e Castigo,  oferto as moedas sobre o console. Na verdade, confesso, queria ver a expressão deles ao receber uma quantia pequena. Percebi que eles, impassíveis no seu universo de dores, ficaram agradecidos com as migalhas. Afinal, o mundo é um hospício cheio de personagens com cicatrizes como se fossem tatuadas pela dor.
             
Os personagens, na maioria, são pessoas comuns retiradas do seu sossego pela mente inquieta do escritor. A recompensa - e o desafio - é mostrar que qualquer pessoa pode compartilhar a sua história com um grande público. Somos um turbilhão de vidas interiores ardendo em paixões furiosas de um modo ou de outro. Talvez sejamos como as folhas da lixeira agrupadas no ápice dos ramos. A lixeira, uma das árvores mais disseminadas do cerrado, cujas folhas também são usadas para arear panela de roceiro, tanífera, tem gosto de remédio. Embora de aparência áspera e simples, na cultura popular dos garimpeiros, a lixeira indica os veios de ouro no caminho das gerais. Assim, as cicatrizes do sofrer, podem levar a um coração purificado.
             
Essa crônica surge com uma história ainda presa na alma; um espírito escondido no texto. Paul Auster, ficcionista americano, autor de Cidade de Vidro, diz que “o passado é sempre apresentado como outra encarnação do presente”.
         
Observo a cena de olho na reação das pessoas e na aparência sofrida da dupla de mendicantes. Sou, enquanto humano e falho, parte da dupla de pedintes e também faço parte da vida dos que estão dentro dos carros parados; prontos a engatar a primeira marcha e sair atropelando sonhos. Saio devagar com o cheiro da gasolina queimada cuspindo fuligens no ar.
       
 Meus ouvidos se enchem na imaginação do som da folha de uma lixeira, guiada pelo vento, raspando na telha de barro quente pelo sol com os acordes da música eterna do salmista.
       
O guia de cego sobe à calçada e me olha. O outro percebe-me em seu espírito.


Doracino Naves, jornalista;diretor e apresentador do programa Raízes Joranalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraizes.net). Escreva aos sábados no jornal Diário da Manhã - DMRevista.