segunda-feira, 30 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Piracanjuba, Caminho da Sorte

Dez horas de sábado, numa fila da lotérica de Piracanjuba - terra de Leo Lynce e Ney Teles de Paula – ouço as conversas animadas das pessoas simples do interior.  Não tenho o costume de espichar os ouvidos para ouvir o que o outro fala. Mas é impossível ficar alheio ao que acontece numa fila. Nessa minha fila todos se cumprimentam e o papo rola solto. Quem sai diz “até logo” e os que ficam, “Vai com Deus”!. Lembro-me de um soneto de Pablo Neruda que fala assim: Amigo, leva contigo o que queiras, e se assim desejares, dou minha alma inteira, com suas brancas avenidas e suas canções.
                
As filas do mundo devem ser alegres e solidárias como é a fila de Piracanjuba; pleno como são os versos de Lynce. Então compreendi que as filas são lugares próprios para aproximar as pessoas e fazer novas amizades. Essa fila popular me ajuda a fugir dos labirintos da alma, presa no formalismo da vida moderna da grande cidade. Quando um cronista se vê numa situação assim pensa no sentido de extrair lições do viver cotidiano das pessoas. Nesse apreender a imaginação bate asas e voa alto. É o que faço agora.
                  
Retenho na mente tantas maravilhas quanto é possível à minha percepção. Com elas arquiteto a estrutura das histórias que narro aqui; conheço bem meus limites literários. Dédalo, pai do sonhador Ícaro, fez dois pares de asas e deu um ao filho. A intenção das asas era escapar do Labirinto de Creta, de onde nem  Minotauro conseguira. Advertiu, porém, que não deveria voar muito alto, pois as asas seriam ser derretidas pelo calor do sol.
                 
Sempre penso nisso quando vejo o que escrevi perto da primorosa criatividade de Rubem Braga; derrete-se como se fossem as asas de Ícaro próximas à luz. Para amenizar a abissal diferença encontro em Willian Falkner - prêmio Nobel de Literatura de 1949, ano em que nasci - um suave e estimulante consolo. Ele diz sobre a sua obra: Todos nós fracassamos na tentativa de alcançar nosso sonho de perfeição. Por isso, nos avalio de acordo com o nosso esplêndido fracasso ao tentar fazer o impossível. Falkner reconheceu que fracassara ao escrever poesia e contos. E, fracassando nisso, começou a escrever romances. Para chegar à perfeição continuou a escrever alguns dos mais importantes romances da literatura americana. Em cada um deles explodiu a sua capacidade criativa. Mesmo diante do sucesso dos seus livros estava convencido de que se reescrevesse toda a sua obra faria ainda melhor.
                  
Por acreditar que o fracasso pode estimular a dar um passo  adiante é que tento todas as semanas o desafio saudável de aprimorar o que escrevo. Sou um artista determinado a ser melhor do que eu mesmo. Os grandes escritores são deidades que observo e me inspiro. Leio a todos pelo deleite da leitura e com o objetivo de aprender.
                    
Continuo na fila da lotérica até chegar a minha vez de ser atendido. Confortável no convívio com  aquelas almas ingênuas e arrebatadoras decido ficar ali mais um tempo. Alguém conta um bom causo. Todos rimos. 
                   
É engraçado, amigo. O texto é de Neruda. Que importa! Ninguém sabe entregar em mãos o que se esconde por dentro, mas te darei minha alma, ânfora de mel suave, e tudo te darei...Menos aquela lembrança...
                  
Onze horas. Saio da lotérica Caminho da Sorte com as expressões, palavras e sentimentos das pessoas bem marcados na memória.

                 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 23 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

A casa de postigos verdes

Amada Clara, quando eu tiver de morrer, pensai de mim alguma coisa assim: que as crônicas e tudo o mais que escrevi foram inspirados nos teus beijos e, perdoai-me por ser tão humano, nas sombrias ondas do mundo a gargalhar na amplidão da alma. Que há, na lonjura do infinito, algum lugar que será sempre o Vale de Quimeras, idealizado em teu romance. Encontramos, um no outro, a segurança que não morre: nas conversas animadas de todas as manhãs; nas risadas livres a caçoar das nossas manias; nos cochichos ao pé do ouvido, no observar dos pássaros – nuvens que voam – sob o céu límpido da primavera. Ou na alegria do reencontro, no sono e no abandono do individuo para erguer o outro.

Construímos em nossas vidas uma casa em que o tempo ou as circunstâncias não derruba. Ganhamos, no jeito do viver, a paz inabalável onde a guerra do ego não pode. Mas a morte é um êmulo inelutável, um moinho que não pode parar. Por isso, quando eu tiver de morrer, pense mim com indulgência de amada.

Soai, clarins, soais por nós! Qual o pulsar frenético no eterno espírito da esperança; irmã da fé. Deste-me flores para amar-vos cada dia mais, caminhos para andar e rios de águas quentes com as bênçãos do sol. Movo-as no sentido de ficar sempre sob a luz benfazeja a despertar as sementes que criam novas possibilidades. Esse mesmo sol que aquece o barro é o mesmo que fora retirado de uma estrela perdida no universo. Pois é, despertastes meu sono letárgico e o sol do amor quebrou o encanto de quem não acreditava nessa forma poética de ver o mundo. Deus renova a minha fé para percorrer a estrada que me leva ao reencontro da amada.

Quero asas de borboleta para voar alto. Soai, clarins, soais por nós! Não permitas que o calor do sol derreta minhas asas de Ícaro. Que sejam eternas para voejarem acima de tudo. Contrario Alberto Caeiro: eu tenho que ter esperança e asas. Aqui viajo com Fernando pessoa: se tirar minhas asas fico perdido e largado no fundo de um barranco. Olho para a minha velhice e vejo rugas e cabelos brancos. Aí vem o caráter de Rubem Braga a lembrar a minha mineirice: olho essa cara feia e triste de gente do interior. Nas minhas crônicas já conversei sobre cidade, pescaria, lembranças. Eu fui criado na roça; sou caipira com orgulho. Prefiro o tom ameno da concórdia.

Não gosto de escrever sobre política nem falar mal dos outros. Este espaço no jornal é sagrado. Por esse motivo, a exemplo do chinês que coloca o resto de pão no lugar mais alto da casa, bendigo, na minha escrita, o dom de escrever. A utopia deve ser vista pelas frestas de uma casa de postigos verdes.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 21 de junho de 2014)

segunda-feira, 16 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Outra de Simão Sem Caráter

 Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 14/062014
Pensei em escolher o personagem mais idiota das minhas crônicas. O título, fácil, fácil, é de Simão Sem Caráter. Ele nasceu assim; sem noção de nada e nenhuma personalidade. Houve um tempo em que morou numa casa adornada com belíssimo jardim que ele tratava com esmero. As flores mais coloridas ele ganhara dos amigos; alguns que moravam muito longe. Sua ocupação principal era cuidar do jardim. Isso ele fazia muito bem. Logo o seu jardim se tornou motivo de incontidos elogios.
      
Um dia, o velho Xaxado, famoso bêbado da Vila Nova, amanheceu estirado entre as flores do Éden de Simão. Na noite anterior Xaxado seguia um grupo de Folia, mas se perdeu e dormiu sob a lua cheia de seis de janeiro, dia de Santo Reis. Alguns vizinhos o encontrou entre os canteiros e o cobriu de pétalas coloridas com uma ridícula coroa de flores na cabeça. Ao ver aquela figura exótica imaginou que um santo havia baixado em seu terreiro. Sonhara com um anjo coberto de flores à sua porta. E o levou para dentro de casa.
     
Deu-lhe uma bola de almôndega e um copo de vinho Sangue de Boi. Mais um copo de vinho...mais outro. Logo a verve cachacista do bêbado acordou. Aduziu que poderia, na qualidade de anjo caído do céu, atender a um desejo de seu benfeitor.
     
Vamos, Simão, capricha.
      
Então, lá vai. Presta atenção no meu pedido.
      
Pensou, pensou – coisa que não era comum em Simão Sem Caráter – que desejava ter o dom revelado no seu nome: aquele que ouve. Seu desejo seria ouvir os anjos que imaginara em vôos festivos sobre o jardim. Desejava ouvi-los tocar harpa e falar com eles. Seria a glória perfeita ouvir os sons harmoniosos dos anjos. Com apenas um pedido Simão Sem Caráter poderia fazer milhares de outros; seria íntimo dos anjos. Mas, a egrégora formada pelos vizinhos faria justiça ao apelido dado a Simão. Xaxado se divertiu com a burrice do outro. Uma vez sem caráter, sem caráter pela eternidade. Nem é necessário um mago para atender a um pedido assim.   
         
Simão Sem Caráter foi ficando cada vez mais sem personalidade. E nada de ouvir anjos. Percebeu a burrada que fizera com aquele pedido. Dias depois, o bêbado Xaxado, em busca de bebida e mais uma pelota de almôndega, pôs na cabeça uma coroa de flores murchas - mais ridícula do que a primeira - e apareceu na porta de Simão.  Depois de beber e comer ouviu de Simão para desfazer o pedido. Xaxado o instruiu a se banhar no Rio Meia Ponte, para que o desejo fosse revogado. Simão seguiu à risca as instruções de Xaxado e voltou ao seu estado latente.
           
A passagem de Simão pelo Rio Meia Ponte não deixou nenhuma marca; nem poderia com aquela natureza delével. Continuou, como sempre fora, idiota e sem caráter. Tempos depois Simão foi convidado a ser júri de um concurso de música para um torneio de futebol. Foram inscritas músicas bem elaboradas e outras nem tanto. Simão nunca entendeu de música e nem de nada. Da forma como era idiota e sem caráter, para ser honesto, declarou vencedor uma música sertanejo universitário. E essa música rodou antes de todas as partidas. Os anjos ficaram furiosos com essa escolha.
        
E deu-lhe, para sempre, ouvidos moucos, próprios de quem não sabe ouvir uma boa música.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 14 de junho de 2014)
segunda-feira, 2 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

Néctar dourado

 Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 31/05//2014
 Escrever é retirar o pensamento da clausura. A palavra, como se fosse deus grego, pode ficar invisível ou desaparecer sem aviso. O verbo vai e vem feito uma brisa a conduzir afetuosas opiniões. Às vezes o texto se impõe por intermédio de uma personagem ou aparece num raio luminoso que põe a sua marca no processo criativo. Noutras foge como se fosse icor, o néctar dourado que flui das artérias da alma.
  
                 Atena! Oh, sábia deusa Atena! A graça divina do pensamento flui no verbo e na invenção das artes, da mesma forma em que concedestes a Diomedes o poder de enxergar os deuses invisíveis da mitologia grega. Concedas aos artistas a ousadia do jovem rei de Argos que rasgou o delicado vestido de Afrodite com sua lança; fez Apolo sair da nuvem de poeira e expulsou Ares à mansão de cristal do Monte Olimpo. Na cultura de todos povos, Afrodite representa a beleza literária. Apolo, a inspiração artística. Ares, símbolo do medo, brande a sua acha gigantesca na luta contra as invenções do espírito do homem.

                  Leva-nos, Atena, ao alto do Monte Pérgamo, onde Apolo colocou Eneias - filho da deusa Afrodite e do mortal Anquises - para formar a descendência romana e a linguagem latina. É deste lugar, sábia Atena, de onde vêm as gotas de ouro da inspiração que cai no registro da Flor do Lácio. A língua portuguesa imprime com sangue latino a verve de Camões, precursor da poesia expressa em nosso idioma. O autor de Os Lusíadas inicia nessa epopeia o grande desafio que estabelece a mais forte influência da literatura brasileira.

                  A língua portuguesa tem regras lógicas, inclusive a crase. Fique sossegado: crase não é tão feia quanto se imagina.  Basta entender o conceito do que é a crase. Para começo de conversa, não existe crase antes de palavra masculina. Apolo não andava a cavalo. Percebe? Não tem crase. Há uma exceção quando se usa moda ou maneira. O herói do desenho usa o martelo à Ares. Aí tem crase.

                   Também não se usa a crase antes de nome de cidade. Exceção quando se atribui uma qualidade à cidade: Vou a Grécia não tem crase. Mas, se eu disser: vou à Grécia de Platão tem crase. O uso da crase tem outras regras práticas. Essa crônica está ficando chata. Devo encerrá-la.

                   A palavra saiu sem dizer aonde ia. Os personagens dessa história partiram envolvidos num raio luminoso rumo a uma montanha bem alta. E o pensamento ficou preso na impossibilidade de escrever mais. 


Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 31/05//2014.