segunda-feira, 31 de março de 2014 | By: Clara Dawn

Vento surdo

Outro dia, pensando nas notícias negativas da mídia, deparo com a manchete do Dário da Manhã Os pecados da Imprensa, em que o papa Francisco pede que ela saia dos assuntos  ruins e fale sobre algo construtivo para a vida das pessoas, da família e da sociedade; noticiar violência é promover a desinformação, visto que existem  fatos positivos que poderiam ser destaque na imprensa.

Pois é. Penso num leitor imaginário que pedisse para escrever sobre temais factuais da política e da violência. Recusaria na hora falar desses assuntos. Não sou articulista; gosto de pensar que sou cronista. Ser reconhecido assim talvez seja arrogância; sou aprendiz de cronista. Mas creio em tudo que escrevo. Nessa premissa recuso falar mala de alguém. Seria o mesmo que sentar no próprio rabo e procurar defeito no outro.

Basta-me os meus; motivo das minhas preces jaculatórias e clementes. Há momentos em que o tema morte assume o controle do que escrevo, a ponto de ouvir de outros que estou a escrever negativo. A morte não parece ser interesse ao vivente; é um tabu para muitos. Gostaria de entender o fim da vida terrena com a serenidade de Chico Xavier. Mesmo ignorante visto o chapéu de cronista da finitude.

Concordo com o poeta Jorge Luiz Borges quando diz que talvez você possa escrever melhor se deixar de lado os defeitos alheios. Em nossa volta existe uma aura poética misteriosa como se fosse uma senha para desvendar o coração do universo e ser útil ao leitor. É nesse tipo de escrita na qual acredito.

Venha comigo, você vai perceber que há bondade além das mazelas do mundo. Vejo encanto nas luzes refletidas no asfalto molhado, vistas do alto do prédio de apartamentos; os faróis e lanternas acesos imitam vaga-lumes com rabos de fogo. A moça apressada anda rápido para entrar no serviço; a marmita vai na sacola. O lavador de carros madrugador que amanhece para lavar os carros na porta do Sindicato dos Taxistas. O otimismo do feirante vendedor a anunciar produtos sem agrotóxico. A caminhada terapêutica dos idosos na Praça do Avião revela uma atitude, talvez, tardia de adiar o fim.

Há poesia e mistério no coração das pessoas. É só descobri-los com boa vontade. Aí, bem que a manchete do jornal poderia atender ao que idealiza o papa Francisco: “As virtudes da Imprensa”. 

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes 
sexta-feira, 28 de março de 2014 | By: Clara Dawn

O lago virgem - partes I, II e III

         
Acender a chama de pescador é só falar em pescaria farta.  Foi o que fez o Beto para motivar a turma de pescadores à procura do lago virgem e cheio de peixes. A cansativa travessia da mata densa deixara todos abatidos. Nem o guia podia imaginar a dificuldade em atravessar a mata fechada. Só então um dos pescadores perguntou ao Beto como ele soube que o lago era virgem.

            -Foi um índio Karajá quem me disse.

             Dico maneou a cabeça. Mas guardou para si aquele gesto negativo. O dia começara a clarear. Os pássaros na mata anunciam que o sol, inexorável na sua viagem pelo universo, abre passagem a onipresente luz da manhã. O vento suave, fresco, resoluto, cúmplice, afasta os galhos das árvores na tarefa de ajudar o sol a transpor a mata. Nada detém o vento e o sol que brilha nas gotículas madrugadoras caídas do céu. A luz  agradece e ilumina o ventre da mata.

          Nem a música afinada dos pássaros ameniza o semblante cansado da turma. A luz forte do sol mostra as rugas velhas, agora cansadas, do arauto do lago virgem. Sua figura de aparência rude esconde a doçura de alma ingênua, quase cândida. Em Luiz Alves, portal sul da Ilha do Bananal, Beto é um pescador desacreditado. Ridicularizado até. Quando sai com uma turma de pescadores os barqueiros ribeirinhos costumam despedir-se dizendo:

            -Vai lá, pé-frio. Vai dar isca pros peixes.

          Talvez venha da necessidade de mostrar o contrário que Beto se esforça tanto para uma boa pescaria. O cortejo rasteja cansado sobre as folhas secas. Ouve-se, ao longe, o som de um motor de popa que aumenta até parar.  Distingue-se vozes e o característico barulho de algo caindo na água. Viram depois que era uma “poita”, espécie de âncora feita de virabrequim de motor velho.

          Beto, eufórico, anuncia:

         -Chegamos. É o lago.

          Entre os pescadores há alívio pela chegada. Mas também decepção em perceber pescadores no lago tido como virgem. Chegaram à margem do lago. Apressaram os passos e depararam com uma turma de pescadores esparramada pela lagoa do tamanho de um campo de futebol.

          - Por onde vocês vieram?

          - Pelo meio da mata quebrando galhos para passar a canoa e a traia.

          - Não precisava disso. A lagoa é boca franca. A gente chegou aqui com o motor ligado, nem precisou de remo. Vocês só precisavam descer mais uns dois quilômetros e entrar no canal que traz ao lago. É fácil chegar até aqui!

           Toda a turma olhou para o Beto que se escondeu atrás de uma árvore de casca grossa. Nenhuma palavra foi dita; nem Beto disse nada. Talvez pensasse na sua atual fama de pé-frio. Àquela hora a fome era tanta que todos sentaram para esperar a comida. Osvaldinho, o cozinheiro, resolveu montar a trempe para cozinhar. Jogou óleo na panela. Adicionou tempero e deixou dourar. Enquanto isso ele  desceu ao lago. De cócoras lavou o arroz e a carne seca, sacudindo-a para que as larvas da varejeira desgrudassem da manta de carne. O cheiro de arroz refogado invadiu o ambiente silvestre.

              Havia em Beto algo que lhe dava a certeza de que a sua sorte iria mudar. Transpareceu entusiasmo suficiente para motivar a turma. Essa era a sua obrigação de guia de pesca. Mesmo que nenhum daqueles pescadores tivesse pescado um só peixe Beto confiava na sua sorte que o ajudara, no passado, a fisgar peixes grandes. Existe uma porta misteriosa que dá passagem ao pescador de sorte. Uma magia que percorre a vara de pesca e busca, no fundo das águas, o peixe desejado.

             O ânimo voltou a acender a alma aventureira do grupo de pescadores acontecendo fatos que vou narrar no próximo sábado.

Pirarucu, o rei do lago

      Beto idealizara essa pescaria para reconquistar a sua fama de bom pescador; perdida depois do literal jejum de peixes. Ganhara muito dinheiro pescando e trabalhando de guia de pesca. Porém, gastou tudo com a mulherada da zona de São Miguel. Talvez por isso morasse sem mulher nem filhos num rancho de palha à beira do rio. Beto conhecera bem as estações das águas, as espécies de peixes, os bichos da região, as fases da lua, as aves coloridas que, aos bandos, empoleirava-se nas árvores espetadas no terreno arenoso do Rio Araguaia. Mas, aprendera que para um bom pescador a sorte é mais importante do que a experiência.

       Na crônica anterior contei sobre os pescadores que se encontravam no lago virgem. Pois bem, desanimados com a escassez de peixes, foram embora no mesmo dia. Ficou a turma de Beto, cuja obsessão era pegar um peixe grande. Que a sua sorte não o abandonasse nesse momento de provação!

        Utilizaria de toda a sua experiência para favorecê-la. Estava atento ao movimento da água. Cau uma frutinha vermelha conhecida por “mata-fome”. O tucunaré pulou engolindo-a antes de cair na água. Uma onda grande, suave, diáfana, se formou nas profundezas do lago envolvendo o tucunaré. O pescador, intrigado, fixou o espelho da água procurando o insólito.

      Enquanto observava, filosofou em silêncio. “A poesia da água é a metapoesia da morte. A água é um elemento efêmero, traiçoeiro, que revela o fim”. Permaneceu calado quase vinte minutos. Sabia que “aquele” peixe viria à tona para respirar. Nada desviou a sua atenção. Nem o barulho da turma que se ajeitava para pescar. Um rebojo agitou as águas. O monstro submergiu impávido. Apareceu a cabeça do gigante. O resto do corpo deslizou sobre as águas.

    -Meu Deus, é um Pirarucu muito grande. Deve ser o pai de todos!

     Calculou mais de três metros; uns 200 quilos de peso. Mesmo impressionado resolvera nada dizer aos outros. Temia ser ridicularizado se dissesse o que vira. À tarde, a sua turma, decepcionada, decidira voltar ao acampamento. Beto, ao contrário, ficara para cumprir seu plano. Atlas, piloto do barco, tentou dissuadi-lo. Inútil.

       - Então, vamos deixar comida pra você. Fica a lona para montar uma barraca. Ah, tem uma canoa no outro lado do lago. Depois da pescaria deixe-a no porto de Luiz Alves.  

        Essa pescaria exigiria uma estratégia especial. Acendeu uma fogueira para que o fogo, que ardia no inferno e brilhava no céu, lhe devolvesse a sorte. Jogou a lona em cima das varas em forma de jirau prendendo as pontas com pesados galhos. Dormiu coberto com trapos sujos de um estandarte conspurcado pela má fase. No interior da barraca improvisada fizeram-se trevas, mas apontavam o caminho da luz.            

      O dia chegara à garupa da esperança. O vento leste remexera as folhas caídas na madrugada de espera. Uma zonzeira estranha invadira seu corpo. Levantou-se num impulso, caminhou firme rumo ao lago. Agradeceu a Deus, o Criador, pela maior conquista humana: a verticalidade.

       Examinou o lago à procura do peixe-rei. Esperto, ele não apareceu aos olhos do pescador. Talvez boiasse debaixo dos galhos arqueados sobre o lago.  Uma neblina rala se desprendeu das águas mornas, aquecidas pelo verão. Pássaros alegres romperam o silêncio sepulcral do ermo. Assim, vigilante, passou o dia. Anoitecera sem que Beto jogasse o anzol na água. Respeitou a vontade do peixe, o rei do lago.

         No dia seguinte, bem cedo, estava pronto para a batalha. Tudo fora calculado: aonde jogaria o anzol, quanta de linha poderia dispor para o caso de ele embravecer; isso era certo. O segredo para pescar peixe grande era não deixar a linha tesa por muito tempo. 

         Arremessou a isca disfarçada no anzol tipo gancho de açougue. Talvez a maior dificuldade, além de fisgá-lo, seria evitar ser devorado pelas piranhas vermelhas e candirus banguelas.

        Três horas depois a linha, tecida com fios de seda, foi esticada para dentro do lago. Depois afrouxa a linha, leve, que flutua sobre a água morna. Parecia que o peixe desconfiara da armadilha. Beto, experiente, ficou quieto. Conteve a respiração, permaneceu inerte. Seu suspense saltou sobre a  superfície tal qual pedrinha n’água.  

          O pirarucu engoliu a isca devagar. De repente um coice abissal. A linha deslizou acelerada como sarilho de cisterna queimando as mãos de Beto. Ele deu um tranco contrário cravando o anzol no bucho do peixe. Miríades de olhos ocultos observavam a luta de titãs. Fisgado, o peixe arrastou Beto com os calcanhares esquiando na terra. Bendita força da gravidade. Os pés tocaram a água. Entrou no lago até a cintura, mas suas mãos, sangrando, não desgrudaram da linha. Pensou: “Se a gravidade é um fardo que prende a alma, pegar este peixe será minha honra no  voo da superação”.

         A linha retesada entoou uma canção de vitória. O peixe gigantesco, atônito, saltou acima da superfície. Tentou se livrar do anzol. Mas, estava inapelavelmente fisgado. Os cabelos brancos e a pele enrugada do pescador balançaram numa imagem ambígua, misteriosa.

      

O fim da pescaria no lago virgem


         Com o pirarucu fisgado Beto lembrou a solidão do seu rancho na beira Rio Araguaia; sua luta pela sobrevivência, seus sonhos, seus pensamentos a respeito da vida miserável que o acompanhava desde criança. Mas, tinha saudade dos tempos em que a pesca abundante atraía amigos e admiradores. Fora um rei da pesca; a má sorte lhe tirara a coroa. Talvez a pesca desse peixe grande lhe trouxesse a sua reputação de volta.

         Aquele peixe enorme, o maior que vira em sua longa história de pescador, não se entregaria facilmente, pois o seu instinto era sobreviver. Num puxão brusco, que quase lhe tirou a linha das mãos, o peixe foi ao fundo do lago; depois arrancou em sentido oposto. Beto soltou a linha e o deixou viajar pelo lago. Deu-lhe, talvez, a última sensação de liberdade. Embora disposto a levá-lo ao porto de Luiz Alves, Beto o respeitava; fez-lhe todos os gostos até que a sorte apontasse o vencedor. Cada gesto dos dois parecia pensado e medido. Enquanto isso Beto permitiu que o pirarucu saísse para respirar a brisa fresca soprada por baixo das coivaras.

        O sol começava a se mostrar acima das árvores altas que cercavam o lago. Beto grudou as mãos na linha de fio de seda e a recolheu apressadamente; o peixe lutou fazendo força contrária. Suavemente seus braços, ainda musculosos pela lida, puxaram uns cinco metros de linha. O peixe forçou para escapar do anzol. Beto permitiu a linha correr novamente e a recolheu. Assim foi, até que o pirarucu, sentindo o estertor da morte, reunisse suas forças e, desesperado, saltou fora da água tentando se livrar do anzol.

       O pescador segurou a linha com firmeza sabendo que, quando descesse, o peixe  mergulharia até ao fundo. Suas feridas nas mãos doeram, mas não descuidou da linha. A dor da humilhação anestesiara sua dor, aumentando suas forças. O peixe grande, enorme como jamais pescara, dava sinais de que logo se entregaria. Exausto, mostrou a cara olhando respeitosamente o pescador. Soltou um ronco e se prostrou rendido. Suas escamas, nas cores prata e vermelha, brilharam á luz do sol.  

          Beto finalmente vencera o rei do lago. Cravou o arpão no peixe com o respeito que aquele gigante merecia. Foi um golpe de misericórdia. Era muito grande para colocá-lo dentro do barco. O jeito seria amarrá-lo atrás para levá-lo seguro ao porto. Temia de que as piranhas, ao sentirem o cheiro de sangue, atacassem o peixe. Outro perigo, os candirus, seriam capazes de, mesmo sem dentes, devorar a carne do peixe em minutos, deixando só a carcaça.  

          Desceu da canoa e, através da vazante estreita, pôs a corda no ombro arrastando o peixe até a foz do rio. Cravou os remos na alma do rio em catarse de suas dores. Singrou as águas determinado. Olhou para trás orgulhoso da sua conquista. Queria chegar ao porto de Luiz Alves. Àquela hora seus amigos pescadores estariam chegando.

           Desesperou-se ante a visão de um bando de piranhas vindo em direção do peixe. Ela sentiram o cheiro do pirarucu machucado. Rápidas, retiravam nacos da carne, num banquete macabro. Com o facão de folha comprida e afiada matou várias piranhas; porém, o facão revelara-se ineficiente para vencer as outras. Chegando à rasura, largou os remos e combateu-as ferozmente com o que tinha dentro do barco. Percebeu que seria inútil lutar contra milhares de piranhas assassinas. Ante a demora pelo socorro dos amigos que o ajudariam a tirar o peixe da água pulou no rio. Segundos depois uma onda vermelha, de sangue, envolveu o barco descendo mansamente o Rio Araguaia até se diluir nas águas borbulhando como se cozinhassem os corpos do Peixe e de Beto. Em poucos minutos as águas rasas se acalmaram. Um bando de curicacas sobrevoou o barco em grunhidos sinistros.

       O esqueleto do pirarucu permaneceu amarrado ao barco, uma visão estranha, mas resgatara definitivamente a imagem do velho pescador. O esqueleto de Beto ficara, para sempre, sepultado nas areias do rio igual poita de um barco de sonhos apontado para o céu.


(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 30/04/2011)
domingo, 9 de março de 2014 | By: Clara Dawn

Vento na gaveta

Guardo um pouco de vento dentro de uma gaveta desde o dia em Deus soprou nas minhas narinas e mandou que eu assumisse a vida. A seguir pôs sal na minha moleira para ter bom senso; juntou mais um raio de luz para clarear o caminho construído sob as pedras da existência. Depois ordenou ao anjo protetor para me levar à Sua presença no fim da jornada. Pois é, o ponto alto da missão de um anjo da guarda é levar seu protegido até Deus.
  
Significa que a alma precisa da proteção do Guardião para chegar inteira e castiça ao Juízo Final.  Aí, nesse getsêmani dos mortais, é onde a porca torce o rabo. Na ópera O Sonho de Gerontio, baseada num texto do Cardeal John Henry Newman, Elgan fala do caminho da alma desde o leito da morte até ao julgamento de Deus.  É uma passagem mística difícil de explicar na estrita linguagem das letras.
    
Os rituais da igreja católica e das sociedades iniciáticas, tipo maçonaria, são codificados no sentido de verbalizar a linguagem atemporal das experiências místicas. Transmitir a magia daquilo que a inteligência humana não consegue explicar depende do mestre e de quem aprende; não é culpa da Arte Real. Entre as artes humanas, penso que apenas a poesia e a música conseguem abrir a cortina das metáforas do espírito. A música mal elaborada, sem harmonia e letra pobre, desperta o nosso espírito de porco. Isso também é uma metáfora; vista do limbo, é claro.
    
Na literatura existem algumas obras consideradas malditas. A gente poderia falar sobre dezenas delas. Lembro-me de uma: O Morro dos Ventos Uivantes, história de amor criada por Emile Jane Brontë, que chocou a sociedade inglesa da metade do século dezenove. Essa obra prima contém romance e suspense numa história instigante. Uma poesia de Dickinson para compreender a alma da autora: “Suaves caem os sons do Éden/Em seu ouvido absorto/Ó que entardecer no céu/Quando Brontë lá chegou!”. Sombrio!
     
Mas, o vento na gaveta sopra uma pérola luminosa do Real Arco: Sobre uma lâmina de ouro acha-se esse grande, impressionante, tremendo e incompreensível Nome de Deus. Ele significa EU SOU O QUE SOU, o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim, o Primeiro e o Último, quem FOI, É e VIRÁ A SER; o Todo-Poderoso. O Sagrado e Misterioso Nome do atual, futuro, eterno, imutável e todo-suficiente Deus, que tem Sua existência, unicamente, em e de Si mesmo, e a todos os outros dá vida; de tal modo que ELE É o que ELE FOI, FOI o que É, e deve permanecer tanto O QUE FOI quanto O QUE É, de eternidade em eternidade, sendo todas as criaturas sujeitas à Sua forte vontade e poder.
     
Sigo a vida com o vento querendo sair da gaveta; o sal tempera pouco; a luz fraca persiste em desviar o foco do meu caminho. O anjo da guarda tem muito trabalho comigo; sou tão ansioso quanto o vento que sopra para o Oriente. Chegarei cansado e empoeirado à eternidade.

      
Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, Sábado, 13h30(www.raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
quarta-feira, 5 de março de 2014 | By: Clara Dawn

Eu e o outro; a matemática difícil


Noutro dia estava a pensar na importância da matemática para o homem. Aprendemos a contar de um a dez graças a Leonardo de Pisa - Fibonacci - argelino que viveu no século doze. Ele publicou Liber Abbaci, feito à mão, o primeiro best-seller da história. Por meio do Livro do Cálculo, o mundo aprendeu as quatro operações. Mal completamos oito séculos da invenção do sistema numérico e já lidamos com a ciência quântica.

Houve um tempo na terra tempo em que o homem só lidava com quantidades bem próximas do seu dia a dia. O um e o dois são os números mais antigos. O número três representava uma quantidade enorme para quem não sabia contar.  Na pobreza mental do homem das cavernas o raciocínio foi simples: caçar um animal era mais fácil do que três; um é pouco, dois é bom, três é muito estressante. O melhor, depois da caça, era o ócio do paraíso com os olhos voltados para o céu. Aí os poetas aprenderam a contar mais de duas estrelas no céu. 

Por falar em poetas me lembro de que o soneto - criado no século treze - usa a matemática como fundamento para a composição dos versos. Tem quatro estrofes; as duas primeiras apresentam quatro versos; as outras duas são compostas por três. Essas são as regras básicas da composição de um soneto, suficientes para amalucar qualquer poeta iniciante. Júlio Verne usou a matemática para escrever seus livros sobre ficção científica. Depois foram usados pela Nasa para elaborar  complicadas equações que levaram o homem à lua e ao espaço sideral. Todos os grandes inventores, inclusive Bill Gattes, da Microsoft, e Steve Jobs, da Apple, utilizam cálculos matemáticos em seus inventos.

Então, as grandes invenções, inclusive o edifício das grandes catedrais na idade média, foram calculadas cuidadosamente usando arranjos matemáticos.  Por mais que homem invente coisas novas, elas são insignificantes diante da abissal perfeição e  harmonia do universo. As criações terrenas não resolveram a solidão do homem que, a cada dia, se afasta mais do próximo. Em nosso pequeno mundo só aprendemos a contar até o número 1: Eu. Diante dessa pobreza de sentimento, o número 2 - eu e o outro - é um arranjo muito complicado para o egoísmo do homem.

 Muitos utilizam sofisticados equipamentos eletrônicos pensando que podem substituir a presença das pessoas em sua vida. Nas grandes cidades, por exemplo, a maioria nem se visita. Antigamente as pessoas viajavam léguas e léguas para ver uma pessoa querida. As viagens demoravam meses em estradas ruins; mais pareciam uma aventura. A alegria do reencontro apagavam as dificuldades. As novas tecnologias estão sendo aperfeiçoadas para atender as funções da modernidade. A roda, considerada a maior das invenções, precisa de novos cálculos para eliminar os atritos comuns da sua função de rodar livre. Existe um plano minucioso para chegarmos à perfeição em tudo, até na alma. 

O Deus misericordioso dá talento ao homem para criar, descobrir ou revelar algo necessário à vida. Mas, nenhum homem é completo e nenhuma invenção humana está acabada.
Só a matemática do Criador dos mundos é infalível; precede ao Big Bang planejado por Ele. As máquinas, inclusive a criação artística e literária, é, ao meu ver, completamente inspirada no espírito do Altíssimo. E, na memória do céu estão arquivadas as fotos da missão do homem.  

Vejo o meu retrato: um menino pobre de Porto Barreiros que chegou a Goiânia num caminhão de mudança; nem deveria ter pensado em descer.
        
 (Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia -Goiás em 01 de março de 2014).
             
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, Sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.