domingo, 9 de março de 2014 | By: Clara Dawn

Vento na gaveta

Guardo um pouco de vento dentro de uma gaveta desde o dia em Deus soprou nas minhas narinas e mandou que eu assumisse a vida. A seguir pôs sal na minha moleira para ter bom senso; juntou mais um raio de luz para clarear o caminho construído sob as pedras da existência. Depois ordenou ao anjo protetor para me levar à Sua presença no fim da jornada. Pois é, o ponto alto da missão de um anjo da guarda é levar seu protegido até Deus.
  
Significa que a alma precisa da proteção do Guardião para chegar inteira e castiça ao Juízo Final.  Aí, nesse getsêmani dos mortais, é onde a porca torce o rabo. Na ópera O Sonho de Gerontio, baseada num texto do Cardeal John Henry Newman, Elgan fala do caminho da alma desde o leito da morte até ao julgamento de Deus.  É uma passagem mística difícil de explicar na estrita linguagem das letras.
    
Os rituais da igreja católica e das sociedades iniciáticas, tipo maçonaria, são codificados no sentido de verbalizar a linguagem atemporal das experiências místicas. Transmitir a magia daquilo que a inteligência humana não consegue explicar depende do mestre e de quem aprende; não é culpa da Arte Real. Entre as artes humanas, penso que apenas a poesia e a música conseguem abrir a cortina das metáforas do espírito. A música mal elaborada, sem harmonia e letra pobre, desperta o nosso espírito de porco. Isso também é uma metáfora; vista do limbo, é claro.
    
Na literatura existem algumas obras consideradas malditas. A gente poderia falar sobre dezenas delas. Lembro-me de uma: O Morro dos Ventos Uivantes, história de amor criada por Emile Jane Brontë, que chocou a sociedade inglesa da metade do século dezenove. Essa obra prima contém romance e suspense numa história instigante. Uma poesia de Dickinson para compreender a alma da autora: “Suaves caem os sons do Éden/Em seu ouvido absorto/Ó que entardecer no céu/Quando Brontë lá chegou!”. Sombrio!
     
Mas, o vento na gaveta sopra uma pérola luminosa do Real Arco: Sobre uma lâmina de ouro acha-se esse grande, impressionante, tremendo e incompreensível Nome de Deus. Ele significa EU SOU O QUE SOU, o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim, o Primeiro e o Último, quem FOI, É e VIRÁ A SER; o Todo-Poderoso. O Sagrado e Misterioso Nome do atual, futuro, eterno, imutável e todo-suficiente Deus, que tem Sua existência, unicamente, em e de Si mesmo, e a todos os outros dá vida; de tal modo que ELE É o que ELE FOI, FOI o que É, e deve permanecer tanto O QUE FOI quanto O QUE É, de eternidade em eternidade, sendo todas as criaturas sujeitas à Sua forte vontade e poder.
     
Sigo a vida com o vento querendo sair da gaveta; o sal tempera pouco; a luz fraca persiste em desviar o foco do meu caminho. O anjo da guarda tem muito trabalho comigo; sou tão ansioso quanto o vento que sopra para o Oriente. Chegarei cansado e empoeirado à eternidade.

      
Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, Sábado, 13h30(www.raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

1 comentários:

Tejuco disse...

Parabéns! Vejo que vc realmente possui uma forma muito particular de escrever. E seus arremates cirúrgicos, ao final, fazem com que fiquemos a pensar se não seríamos gêmeos... rsrs.
Pelo menos gêmeos de pensamentos e forma de enfrentar os dilemas humanos.

Postar um comentário