quarta-feira, 27 de janeiro de 2016 | By: Clara Dawn

Confissões de um Sub-70 acerca do Novo Acordo Ortográfico


Chego ao sub-70 com vontade em entrar para o time dos velhos.  Minha energia se renova quando tenho que aprender algo. Por dever de ofício volto às aulas de português. O Acordo Ortográfico agora é para valer, dizem os especialistas. As dúvidas começam assim: com hífen, sem hífen; o trema que foi embora com olhinhos de abandonado; o acento da ideia que voou nas asas de Ícaro. Mas o meu computador, esse chato de galocha, insiste em corrigir as palavras que digito neste teclado burro. A teimosa feiura da tecla tira o traço vertical que se escorava nas costas de Sauipe. Meus leitores mais atentos, em sinal de respeito à língua portuguesa, leem este texto sem chapéu.

Dá fome quando tenho que falar sobre um assunto assim. Levanto-me para esquentar o pão, arqui-inimigo da dieta, no micro-ondas pré-histórico. Minutos depois sai do forno um mísero minissanduíche, para não contrariar Clara - escritora, mulher do meu coração e dona de casa. Pois sim, o pão é composto de carboidratos que, no organismo, se transformam em doce.  Em nossa casa, o café da manhã contém pouco açúcar; sem o tradicional pé de moleque que Vó Sinhá me acostumara na infância. Por adorar doce ela me chamava de Doçarino. O dia a dia não para de despejar mais outros aos muitos que já passei na terra do meu amado Deus. E esse dia, após outro e mais outros,desce sem paraquedas até se derreter na terra.

Pelo andar da carruagem enferrujada do corpo os anos depois dos cinquenta somam um ano no calendário e encrespa cinco no pele enrugada como se fosse  jenipapo maduro na gaveta. Resumo dessa matemática terrível: passa um e envelheço mais de cinco anos. Não há remédio que dê jeito nisso. O míssil antiaéreo do tempo é incapaz de deter a queda inevitável do corpo que cai desde a idade bacana dos trinta.  Outro dia disse ao meu neto que no passado fui jovem. Ele riu, talvez a duvidar deste jeitão vai célere aos setenta.   

 Creio que a vida é uma bola de fogo com a esmagadora força da gravidade; arqui-inimiga da velhice. E o homem que nem pirulito enrolado no palito viaja em circum-navegação eterna para escapar do inferno das tentações que vêm pela boca. O anjo do Senhor, que nos guarda dia e noite, convida cada um de nós à morada celestial e ali despetala a flor do bem-me-quer orvalhada com água-de-coco tirada de uma palmeira super-resistente do Céu. Pois é, essa regra do hífen é cruciante, mas sei que a água do coco refresca meu corpo extenuado pela corrida no Parque Areião. 

Ninguém é perfeito, por isso o ser humano é o anteprojeto da admirável perfeição de Deus. Meu voo de estreia no Céu, caso seja merecedor do paraíso, aguçam os sentidos e os olhos do espírito veem a Luz Eterna a brilhar na sequência dos séculos.    

Caso o corpo do espírito (parece estranho, mas uso a liberdade poética) tenha pelo, na certeza se encrespará com o impacto multicolorido do Cosmo, de onde brota a energia vital do planeta.  Ninguém chega à velhice impunemente. Penso que a minha cruz seja, na chatice da eras, falar da reminiscência chata e enfadonha em que as lembranças fazem companhia à solidão.

Escrevo com os dedos a digitar a leveza do alfabeto na minha impressão de hoje. Mas inseri algumas palavras mudadas pelo Acordo; talvez sejam reeditadas. Por isso a formiga-cabeçuda corta o raminho do espontâneo e do ingênuo. Mantenho-me fiel às regras escritas pelos mandachuvas da língua portuguesa. Para quem escreve, a língua pátria deve ser autossuficiente e mandona. Obedeço todas as regras. Por isso chego ao time dos sexagenários com os olhos de sub-70. Então, que outros anos calmos venham até chegar ao limite extremo das horas.

(Publicado originalmente com o título "Cartografia das horas" no jornal Diário da Manhã - DM Revista em janeiro de 2016)


                                                                                   Doracino Naves, jornalista.