terça-feira, 8 de setembro de 2015 | By: Clara Dawn

Poeira da estrada nas árvores

   
A paisagem da minha alma de noite é a mesma de dia; basta virar do avesso.  Se eu morrer amanhã, seu doutor, com o espírito virado, ou não, chego rapidinho ao céu. Este intertexto com Fernando Pessoa e Zé Kéti foi proposital. Talvez seja um jeito de afastar de mim o enfastio de setembro no cerrado. O drama do cerrado é antigo. Mas nenhuma árvore desiste; espera, resignada, que a chuva caia logo na terra seca. Eu também não desisto até que chova.

    Enquanto isso o carro de bois levanta o pó da estrada. O canto fino, chorado, repercute longe, como se fosse o zumbido de mosca-varejeira no silêncio do sertão.  Ao passar pela grota do córrego o carro de bois engrossa a voz ao som de um baixão. O refluxo dos bois de guia faz a junta do cabeçalho refluxar; o carro quase para. Cresci ouvindo o carro de bois carregado de milho e a boiada atravessando as ruas da cidade num cortejo lento até passar em volta do cemitério.

      Houve época em que desejei ser enterrado em Porto dos Barreiros, sertão de Minas Gerais, onde nasci. Mas, quá! meu Porto dos Barreiros está inundado por uma represa insensível que apagou as trilhas tatuadas na terra vermelha. Mesmo assim dedico esta crônica ao verme que primeiro roer minhas carnes mortas. Ora bolas, fiz mais uma travessura com o texto original de Machado de Assis. Na verdade, o mundo é uma intertextualidade gritante desde as eras ancestrais. Homero escreveu Ilíada e Odisséia com as fagulhas do que estava escrito nos céus.

      Olho para cima, chover que é bom, necas! E a secura do ar confunde minhas ideias. O sol na moleira transforma o que é natural em sobrenatural.  Vejo-me rodeado por almas penadas, daquelas que habitam as ruínas do meu tempo.  Milhares delas estão sem rumo por causa do sol aceso no céu sem nuvem. Algumas se escondem numa tapera à beira da estrada, outras no descampado cutucam um tamanduá bandeira que corre com passos trôpegos. Na mata fechada Saci sopra seu cachimbo. Um assovio vindo da copa de uma paineira avisa os animais sobre o perigo iminente de uma onça faminta. Um copo de água fresca do pote afasta minha cabeça do delírio.

        As obras literárias clássicas foram escritas sob o domínio do drama ilusório; sofrimento, medo e aflição é o prato principal de uma obra literária; o ambiente, a sobremesa.    

        Antes da chuva, o pó da estrada se assenta nas árvores qual picumã grudado nas folhas. Talvez nem sejam árvores; pedaço de poeira em forma de desenho assimétrico é o que vejo. 
        Ou então é um fantasma na estrada a reter a poeira dos espíritos que passam pelo universo, de dia ou de noite.  

        Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raízesjornalismocultural.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00.