sábado, 28 de janeiro de 2012 | By: Doracino Naves

O morro dos palhaços mudos

Noite pavorosa no Morro do Aranha naquele mês de agosto. Milhares – talvez milhões – de muriçocas infernizavam a vida dos moradores numa noite orquestrada por cantoras aladas. A pele ardia como se fosse esfregada com urtiga seca. Uma tapa seca no ar tentava matar a muriçoca atrevida que sobrevoava o corpo sonolento. Os barracos eram pobres – muito pobres - feitos de madeiras retiradas das demolições. Uma boa parte dos casebres eram cercados e cobertos de lona preta. A elite da favela morava em casebres construídos de tijolos chapiscados de cimento. Mas, comparados aos outros lugares do Morro, era um luxo.

Naquela comunidade quase tudo era compartilhado. O fungado do casal afoito em noite de febre hirta, a tosse da velha tuberculosa ou o choro da criança na madrugada; tudo era comum naquela favela de nome estranho. Gambiarras de luz e água ligavam fios e canos numa bizarra improvisação. O esgoto escorrendo a céu aberto, fedia.
Num canto do Setor Norte Ferroviário, na rota dos trilhos da estrada-de-ferro, tinha uma favela chamada Morro do Aranha. Hoje é a Avenida Leste Oeste. Gil do Pagode era uma espécie de fundador e gestor do Morro do Aranha.  Para morar ali todos dependiam da sua vontade.

No alto da favela, num local aonde não chegava água nem luz, morava uma família de surdos-mudos que trabalhavam como palhaços nos sinaleiros da Avenida Independência. Só uma menina – Aninha –ouvia e falava normalmente. As roupas e os calçados foram doados pelos vizinhos. Aninha ganhara sandálias plásticas de cor rosa que nunca saiam dos seus pés. Nem se importava com as roupas, só com aquele par de sandálias. 

Em baixo do Morro, um cano de concreto descia ao córrego Capim Puba. Ela surfava nas águas fétidas do esgoto até o córrego que já vinha poluído do Setor Aeroporto. Talvez o esquibunda de Aninha fosse uma tentativa de escapar daquele lugar terrível que não era um lar ideal; sem amor, afeto ou fantasias.  Quando voltava ao seu barraco, subia numa goiabeira que nascera, por acaso, no alto do morro e - em cima da árvore - sinalizava aos irmãos o que se passava na vizinhança.

O corpo de Aninha vivia rajado de sujeira. Sua barriga e rosto estavam tatuados de terra e suor. Os fundilhos da sua calcinha viviam sujos e encardidos pelas descidas no cano de esgoto. Poucos moradores tinham empregos fixos. Morar no Moro do Aranha significava isolamento e descriminação. Mas, as noites da família de Aninha eram animadas e alegres. Seus pais – surdos e mudos – sempre traziam alguma comida e doce. E os ensaios se constituíam em momentos de alegria pelo reencontro do dia.

Nesse universo a linguagem era a mímica. Aninha fez-se uma espécie de porta-voz da família junto aos moradores do Morro do Aranha. Contava, com brilho nos olhos, a possibilidade de a família se mudar para uma casa de verdade. Tudo era sonho na cabeça daquela menina como corpo tatuado de esperança. Enquanto as noites passavam ao som das muriçocas vindas do mato do Córrego Capim Puba, Aninha preenchia o seu tempo deslizando pelos labirintos da favela. Ela nunca fizera bem ou mal às pessoas, pelo fato de que não sabia o que era o bem e o mal. Sua única vontade seria sair daquele lugar; ter uma boneca igual à da menina que morava numa casa de tijolos com telhas de barro e uma varanda pequena, lá embaixo, numa rua asfaltada do Setor Norte Ferroviário.
Tempos depois um prefeito transferiu os moradores do Morro do Aranha para um lugar chamado Goiânia Viva. Aninha e a sua família de palhaços mudos sumiram. Nunca mais tive notícias deles. A moralidade desta história é esta mesma: Goiânia mudou, a realidade da cidade – na época com menos 1 milhão de habitantes - foi transformada em uma metrópole desvairada. Mas, a alma de Goiânia e os sonhos das aninhas da vida continuam movendo a vida das pessoas.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012 | By: Doracino Naves

Eu estou com medo

Desde a aurora do homem que a terra é um zoológico biruta. No filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço -  o diretor Stanley Kubrick, mestre de Spielberg, alinha interpretações diversas na intrépida viagem da nave Discovery, controlada pelo mega computador HAL 9000. Uma delas é a de que existe um mundo inteiramente novo lá fora. E a realidade mais confortadora: o universo é dirigido por Deus, o Criador de todas as coisas. No amanhecer de um dia da pré-história, o grupo de macacos, surpreso, percebe o monólito cravado na pedra alinhado com o sol e a lua.

Vi esse filme umas dez vezes. Uma delas foi à passagem de 2001, quando a Rede Globo o exibiu na madrugada do novo milênio. Sou um bobão da roça que demora a entender as coisas. Preciso de muitas explicações para começar a entender o que se passa à minha volta.  Só depois da terceira vez entendi algumas das sutilezas filosóficas do autor do livro A Space Odyssey, Arthur C. Clarck, magistralmente roteirizadas por Kubrick. A desativação do HAL marcou por uma frase inserida propositadamente pelo diretor: “I'm afraid”, "eu estou com medo".

Há dois momentos simbólicos do uso de ferramentas que flutuam no espaço: o osso, usado pelo macaco para matar o seu inimigo, e a caneta flutuando no interior da nave. Tudo isso se passa numa escala evolutiva jamais vista no cinema: as trevas representadas pelo macaco sádico e a luz representada pela criança estrelar com o brilho da iluminação no olhar; da inépcia à sabedoria num tempo estimado em quatro milhões de anos. Mas, também pode simbolizar que a palavra é melhor forma de diálogo.
O filme predatou em mais de um ano a viagem do homem à lua e, agora, faz elo na corrente da descoberta do Bóson de Higgs, conhecido como a Partícula de Deus, fundamental para entender a construção do universo. Interpreto assim: eu sou a partícula de Deus. O espírito do homem é o elemento principal de todo esse arranjo universal que assusta os cientistas e seduz os filósofos, os pensadores e os escritores atentos. Tudo no universo se passa numa simetria de dar medo: um olhar perturbador de infância e velhice: inocência e sabedoria a flutuar no universo. Depois a possibilidade da revelação do elo perdido pelo homem.

Quanto mais os cientistas estudam mais se aproximam de Deus. Porque tudo provém Dele. E nós, seres humanos, somos instrumentos para a evolução do cosmo. Cada um de nós tem um papel importante na vida do outro. O código para o futuro harmonioso é viver bem com o próximo. O espírito é a Partícula de Deus que está imbricada na densidade da matéria.  

Aos agnósticos uma verdade insofismável: todas as coisas do mundo estão na Bíblia, inclusive as grandes descobertas. Há uma cumplicidade arrebatadora do filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço e a hipótese da Partícula de Deus. A ciência ainda a considera uma possibilidade, entretanto, minha fé aponta à certeza de que eu sou essa insignificante parte do Todo Poderoso Deus; a síntese da teoria do Modelo Padrão. 
A história do homem é o reflexo dos piores e mais cruciantes problemas enfrentados pela raça humana ao longo da sua história. O romancista argentino Manuel Puig escreveu que as vozes dos suas personagens estão cheias de pistas escondidas. E completou: “E gosto de ouvi-las”.

Talvez essa seja a ferramenta mais importante do cronista: ouvir e perceber o que a cidade tem a lhe dizer. Goiânia, antes de ser cosmopolita, é universal na sua forma telúrica de contar os passos na direção do futuro. A cidade é um marco simbólico do espírito ousado de Pedro Ludovico; talvez ela represente uma civilização a flutuar no espaço em busca da sua identidade. A aurora do goainiense viaja em uma metrópole – a nave - agitada como se fosse um zoológico biruta. Mas, existe aqui um mundo de histórias escondido na sua alma afetuosa e doce.
sábado, 14 de janeiro de 2012 | By: Doracino Naves

Cantando na chuva

Do primeiro guarda-chuva ninguém esquece. Com a chuvarada de janeiro comprei o meu primeiro guarda-chuva. Com ele rodopiando acima da minha cabeça descobri que a tristeza com as chuvas demoradas era porque eu ainda não tinha um guarda-chuva. Hoje, circulo feliz pelas ruas de Goiânia com o meu guarda-chuva. Ele me protege da chuva e me faz sentir importante.

Os primeiros pingos sempre choviam nos meus óculos de míope desembestado. Por uma lógica desesperadora o primeiro pingo invariavelmente cai nos óculos do míope ou na cabeça do careca; a lei da probalidade é um mistério. Mas, as ruas de Goiânia, alagadas com as chuvas, choram de saudade do sol. Suas lágrimas correm ao mar. Volto o meu pensamento ao guarda-chuva novo.

Este guarda-chuva é vistoso como nenhum outro de Goiânia; haste de metal que, num leve toque, abre um morcegão a proteger os meus óculos dos pingos renitentes. O meu guarda-chuva tem cobertura de seda com desenhos ondulados lembrando o calçadão de Copacabana. Mas, com vista na tradição secular, a sua imagem me vem acompanhada de um chapéu de feltro e um terno com casaco contra a molhança. Nos pés, as galochas de borracha do começo do século passado. Andar com um guarda-chuva me recorda o modelo luxuoso de Nova York, Paris ou Lisboa, visto no cinema. Um companheiro imprescindível da elegância aristocrática e cosmopolita dos séculos passados. Ou, na versão tupiniquim, um luxo são-paulino ou curitibano. A chuva delirante de janeiro cai a cântaros.
Sonho com o veranico a iluminar o tempo cinzento. Mas, pelas previsões do tempo este ano o veranico vai atrasar. Talvez em fevereiro - quem sabe até o carnaval - quando o mundo cristão entra numa quarentena de dar dó. Em Goiás a quarentena só termina com a luz das tochas dos Farricocos. O clima de chuva deste janeiro me faz sentir, em Goiânia, como se estivesse na Europa. E o guarda-chuva é o meu abrigo nas sombras do dia chuvoso. Vou cantando na chuva os versos de Jorge Benjor: “Chove chuva, chove sem parar...Pois eu vou fazer uma prece/ Prá Deus, nosso Senhor...”
Cantando assim, também me dá vontade de dançar com o meu guarda-chuva. O problema é que tenho a coluna dura para essas coisas. Não sou nenhum Gene Kelly, do filme Dançando na Chuva, que marcou época no cinema. Com a leveza de um atleta, atravesso a Praça Tamandaré rumo à engraxataria do Gilmar. Não me lembro de me sentir tão por cima com o meu guarda-chuva de figuras onduladas no teto. Discretamente, levanto o braço para aumentar a minha altura.
São seis horas e meia. O engraxate Gilmar me recebe com alegria. Fecho o guarda-chuva e o deixo de fora da porta. Fico de olho nele. O meu celular, aquele chato que me acordou as cinco manhã, ficou obsoleto nesse dia de chuvas intensas. Deixei-o em casa. O Guarda-chuva silencioso e amigo tomou o seu lugar nos meus cuidados.
-Tem chovido, heim!
- Pois é, Gilmar. Há muito que não chove tanto.
Ele responde com tristeza no olhar:
- Quando eu ainda era criança, em Palmeiras de Goiás, choveu uns 20 dias sem parar. A lenha para acender o fogão ficou encharcada. Não tinha lenha seca nem para cozinhar. O gás de cozinha ainda não era conhecido na cidade. O jeito foi queimar os sabugos de milho guardados no paiol. Ficou impossível trabalhar na roça. Com cinco filhos para alimentar a situação ficou difícil.
Contei uma história curta de uma das minhas histórias:
Antigamente, no final da Avenida Goiás – onde hoje é um Banco – tinha um depósito de lenha. Em Goiânia, nessa época, só os ricos utilizam o gás na cozinha. Aí, quando a chuva invernava o horizonte, algumas famílias da Vila Nova e Setor Pedro Ludovico, então os bairros mais pobres, passavam fome.
Pois, é. Antigamente era assim.
Saio da engraxataria da Praça Tamandaré, abro o meu guarda-chuva e, serelepe, deixo que o vento faça o movimento rodopiando os desenhos em forma das ondas do mar. Percebo que o guarda-chuva é uma das maiores invenções do homem. O governo deveria distribuir mais guarda-chuvas à população. Posso não entender de guerras. Mas, hoje, entendo a importância dos guarda-chuvas.
terça-feira, 10 de janeiro de 2012 | By: Doracino Naves

Concerto de estetas

O Setor dos Funcionários nasceu livre. Na P-16 o vai-e-vem das mulheres da vida acendia luzes vermelhas. O vento balançava os vestidos rodados das donzelas. Também havia soluços de saudade. Oh, pobres moças que, na loucura do amor, foram expulsas de casa pelos pais. A lei era essa: o repúdio a quem perdesse a virgindade antes do casamento. Mil luas cheias já cruzaram os céus de Goiânia. Os pioneiros, fatigados, se escoravam nos barrancos dos sonhos. O córrego Capim Puba, enturvecido com o tempo, corria gosmento na pressa de chegar ao rio. Goiânia crescia e ganhava músculos. Seu ventre paria novos bairros. Espremido na terra erma do cerrado nasceu o Setor dos Funcionários. A Estação Rodoviária, na beira do Capim Puba, era a porta de entrada. 

O Setor dos Funcionários ganhava fama.Mais pelas putas que moravam na P-16 do que pelo salário dos funcionários que erguiam nova capital. A luz vermelha das casas da P-16 dançava sinfonias tristes. O sol avermelhado pela poeira tocava cornetas no coração das palavras. O convite das damas chegava atracado ao fogo do amor. Na entrada, numa sala de alma vazia, na penumbra dos sonhos, o pedido das donzelas trazia no verbo o convite e a senha à alcova: Bem, paga uma Cuba Libre! O operário, que dera duro na repartição, imaginava: “É melhor morrer de Cuba do que de tédio”. A vida das mulheres do bordel tinha a cor vermelha; que tanto poderia ser a da paixão quanto da vergonha dos pais frente aos conceitos de uma sociedade hipócrita e cruel. Como resposta ao clamor do conservadorismo exagerado o jeito era expulsar de casa a filha que fazia amor antes do casamento. O destino inexorável: a prostituição. Mas, nada era inocente no prostíbulo. Se aquele lugar era o refúgio das mulheres que perdiam o controle da paixão também era daquelas que queriam a liberdade plena e absoluta de viver atazanando a vida dos marmanjos vaidosos e incautos. 

A Boate Monalisa recebia homens solitários em sábados estrelados. Os óculos dos funcionários enxergavam, impávidos, a carícia de liberdade. A manhã fria de junho, depois da farra da noite anterior, amanhecera lerda na P-16. No meio da poeira vermelha uma mulher jovem vai rumo à casa mais famosa do bairro: a casa de Edil, dono da putaria mais famosa de Goiânia. Edil já esperava pela moça vinda de Peixe, no norte de Goiás. Até enviara a Rodoviária um funcionário para recebê-la. Seu pai, homem rude e mau, lhe entregava a moça. Enquanto caminhava lentamente, tendo na mão uma mala com pouca roupa, pensava na mãe que lhe aconselhara a se manter pura até o casamento. Confiara na palavra melosa do Joaquim, filho do fazendeiro vizinho que fugira às suas responsabilidades. 

O seu destino agora seria morar numa “Pensão” longe dos seus pais e amigos de infância. Cléa, este era o seu nome, foi recebida amavelmente por Edil. O delicado dono da casa se surpreendeu com a beleza da moça. Quase menina, 16 anos. Mas, já com o corpo delineado, curvilíneo, olhos amendoados, cabelos castanhos claros, dentes alvos, boca carnuda, seios fartos. Cléo tinha pernas longas e torneadas. Pensou animado: “É a mulher mais bonita da minha casa. Ela vai render muito dinheiro". Incumbiu Gena, a prostituta mais experiente, a lhe dar as primeiras aulas. Enquanto isso Edil anunciava por toda cidade a pérola de mulher que tinha encontrado e que ela estaria, em breve, livre ao desfrute dos machos. Só que o preço, pela preciosidade da jóia, seria mais caro. Os mulherengos da cidade se prepararam com avidez para conhecer Cléa, a Princesa do Norte. Depois de alguns dias de “aulas” Gena a vestiu como a uma princesa para a sua noite de estreia. Houve um grande alvoroço na sala. 

A expectativa se nutria no deleite dos párias. Assustada com seu jeito de menina, Cléa entrou no salão. Fez-se na sala um ar de concerto de estetas; todos aprovaram o que viam. Edil, diante dos homens ansiosos, decidiu fazer um leilão da primeira noite de Cléa. Chicão, metido com política, deu lance alto. Deocleciano, comerciante de material de construção, arrematou com sua voz de trovão de rua. Chicão, inconformado, sacou seu revólver taurus e deu tiro a esmo. Um corpo, no meio da turba caiu suavemente no piso lustroso que refletiu o candelabro de centenas de luzes que desciam do teto. Um filete vermelho, de sangue, desceu lentamente da testa de Cléa, escorrendo pela face alva. Suas mãos, em prece, pareciam pedir perdão ao mundo. A vida não lhe dera o gozo pleno ao lado do amado; dera-lhe a tumba numa cidade empoeirada e viciada. Os homens, perplexos, lamberam as mãos da doidice.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em 10 de janeiro de 2012)

Leões de Essa


Somos uma imitação tosca do Deus Todo Poderoso. Sem a energia cósmica do espírito talvez fôssemos apenas um monte de carne e ossos. Creio que toda a inspiração provém do Espírito Santo. Assim prevalece nas artes e na religião. Na criação artística o dom de Deus se manifesta nas filigranas de cada composição. Os fios de ouro da expressão poética da vida estão ligados nos céus. O mundo seria um paraíso eterno se o homem compreendesse a sua pequenez diante da exuberância do Universo criado por Ele. E seguisse as leis naturais de autoproteção.
Vejo na cor azul o berçário limítrofe entre a matéria e o espírito. Nessa região nascem as estrelas do conhecimento. O talento do artista ou do escritor revela os dons da Divindade. Se as estrelas jovens não têm muita energia, com o tempo da conexão com o universo criado por Deus elas se enchem de energia tornando-as tão densas quanto à gravidade das estrelas mais antigas. Então, a acuidade do artista é capaz de fazer a luz curvar.
Noutros a inspiração chega no nascer, mas com a experiência das vidas passadas por Cristo. Iguais à estrela bebê da Constelação de Orion. Por falar nessa constelação, diz a lenda que um caçador cuja vaidade era tão grande que irritou a deusa Ártemis.  Como castigo enviou o caçador para o céu se transformando na Constelação de Órion. Pois é, a vaidade distancia o homem da sua origem divina. Solitário, ele se perde no espaço da sua presunção tola. E se contorce nas influências exteriores formando figuras distorcidas a navegar pelo cosmo como a Galáxia Gancho de Carne.
Penso que a autossuficiência torna o homem tão vaidoso que ele se transforma num átomo perdido nas brumas do tempo. E se acha o esplendor solitário de uma estrela três milhões de vezes mais brilhante que o sol. Imagino que a vaidade não seja boa companheira do homem. Principalmente para quem precisa da visão espiritual para criar. Talvez seja essa percepção que faz a insofismável diferença no conceito artístico.
A retórica artística ou a palavra do pregador diligente, quando gerada no espírito, produz frutos. Quando somos meros repetidores de coisas – sem o toque do Espírito Santo –  somos sementes jogadas na terra seca.  Mesmo que a árvore cresça ela será distorcida. E a obra pode revelar a sua visão pessoal e não, necessariamente, a do espírito. Lembro aqui uma visita ao Museu de Aleijadinho, em Ouro Preto.
Aleijadinho e Mestre Ataíde, seu contemporâneo, são as grandes figuras da arte barroca brasileira. Aleijadinho, então, pode ser comparado a Michelangelo, artista italiano do renascimento. Fiquei abobado diante da beleza artística de Aleijadinho. Percorri as galerias do museu vendo as obras exposta quando me deparei com as figuras bizarras dos Leões de Essa. Fiquei tão surpreso que imaginei que as figuras eram de outro artista. Os Leões de Essa, esculpidos em madeira, têm cara de macaco, patas de gavião, orelhas de porco e em nada lembram um leão.
Nem a juba ele tem. São quatro peças que servem de suportes para os caixões dos mortos. A explicação veio rápida pelo Mestre Totó, um guia turístico que me ensinou quase tudo sobre Ouro Preto.
- Na época de Aleijadinho não havia nenhuma imagem de Leão. Então, um velho escravo lhe disse como era um leão. E a transmissão oral foi feita com as lembranças antigas da África associadas à realidade da região de Ouro Preto. E Aleijadinho reproduziu o que a mente humana inventou.  
Os Leões de Essa feitos por Aleijadinho não têm a mesma força espiritual da sua sublime criação, imortalizada nas igrejas de Ouro Preto, Congonhas, São João Del Rey e outras cidades da região. Sem a força criativa de Deus somos toscos como os Leões de Essa.