terça-feira, 10 de janeiro de 2012 | By: Doracino Naves

Concerto de estetas

O Setor dos Funcionários nasceu livre. Na P-16 o vai-e-vem das mulheres da vida acendia luzes vermelhas. O vento balançava os vestidos rodados das donzelas. Também havia soluços de saudade. Oh, pobres moças que, na loucura do amor, foram expulsas de casa pelos pais. A lei era essa: o repúdio a quem perdesse a virgindade antes do casamento. Mil luas cheias já cruzaram os céus de Goiânia. Os pioneiros, fatigados, se escoravam nos barrancos dos sonhos. O córrego Capim Puba, enturvecido com o tempo, corria gosmento na pressa de chegar ao rio. Goiânia crescia e ganhava músculos. Seu ventre paria novos bairros. Espremido na terra erma do cerrado nasceu o Setor dos Funcionários. A Estação Rodoviária, na beira do Capim Puba, era a porta de entrada. 

O Setor dos Funcionários ganhava fama.Mais pelas putas que moravam na P-16 do que pelo salário dos funcionários que erguiam nova capital. A luz vermelha das casas da P-16 dançava sinfonias tristes. O sol avermelhado pela poeira tocava cornetas no coração das palavras. O convite das damas chegava atracado ao fogo do amor. Na entrada, numa sala de alma vazia, na penumbra dos sonhos, o pedido das donzelas trazia no verbo o convite e a senha à alcova: Bem, paga uma Cuba Libre! O operário, que dera duro na repartição, imaginava: “É melhor morrer de Cuba do que de tédio”. A vida das mulheres do bordel tinha a cor vermelha; que tanto poderia ser a da paixão quanto da vergonha dos pais frente aos conceitos de uma sociedade hipócrita e cruel. Como resposta ao clamor do conservadorismo exagerado o jeito era expulsar de casa a filha que fazia amor antes do casamento. O destino inexorável: a prostituição. Mas, nada era inocente no prostíbulo. Se aquele lugar era o refúgio das mulheres que perdiam o controle da paixão também era daquelas que queriam a liberdade plena e absoluta de viver atazanando a vida dos marmanjos vaidosos e incautos. 

A Boate Monalisa recebia homens solitários em sábados estrelados. Os óculos dos funcionários enxergavam, impávidos, a carícia de liberdade. A manhã fria de junho, depois da farra da noite anterior, amanhecera lerda na P-16. No meio da poeira vermelha uma mulher jovem vai rumo à casa mais famosa do bairro: a casa de Edil, dono da putaria mais famosa de Goiânia. Edil já esperava pela moça vinda de Peixe, no norte de Goiás. Até enviara a Rodoviária um funcionário para recebê-la. Seu pai, homem rude e mau, lhe entregava a moça. Enquanto caminhava lentamente, tendo na mão uma mala com pouca roupa, pensava na mãe que lhe aconselhara a se manter pura até o casamento. Confiara na palavra melosa do Joaquim, filho do fazendeiro vizinho que fugira às suas responsabilidades. 

O seu destino agora seria morar numa “Pensão” longe dos seus pais e amigos de infância. Cléa, este era o seu nome, foi recebida amavelmente por Edil. O delicado dono da casa se surpreendeu com a beleza da moça. Quase menina, 16 anos. Mas, já com o corpo delineado, curvilíneo, olhos amendoados, cabelos castanhos claros, dentes alvos, boca carnuda, seios fartos. Cléo tinha pernas longas e torneadas. Pensou animado: “É a mulher mais bonita da minha casa. Ela vai render muito dinheiro". Incumbiu Gena, a prostituta mais experiente, a lhe dar as primeiras aulas. Enquanto isso Edil anunciava por toda cidade a pérola de mulher que tinha encontrado e que ela estaria, em breve, livre ao desfrute dos machos. Só que o preço, pela preciosidade da jóia, seria mais caro. Os mulherengos da cidade se prepararam com avidez para conhecer Cléa, a Princesa do Norte. Depois de alguns dias de “aulas” Gena a vestiu como a uma princesa para a sua noite de estreia. Houve um grande alvoroço na sala. 

A expectativa se nutria no deleite dos párias. Assustada com seu jeito de menina, Cléa entrou no salão. Fez-se na sala um ar de concerto de estetas; todos aprovaram o que viam. Edil, diante dos homens ansiosos, decidiu fazer um leilão da primeira noite de Cléa. Chicão, metido com política, deu lance alto. Deocleciano, comerciante de material de construção, arrematou com sua voz de trovão de rua. Chicão, inconformado, sacou seu revólver taurus e deu tiro a esmo. Um corpo, no meio da turba caiu suavemente no piso lustroso que refletiu o candelabro de centenas de luzes que desciam do teto. Um filete vermelho, de sangue, desceu lentamente da testa de Cléa, escorrendo pela face alva. Suas mãos, em prece, pareciam pedir perdão ao mundo. A vida não lhe dera o gozo pleno ao lado do amado; dera-lhe a tumba numa cidade empoeirada e viciada. Os homens, perplexos, lamberam as mãos da doidice.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em 10 de janeiro de 2012)

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