quarta-feira, 28 de setembro de 2011 | By: Doracino Naves

Karolline Naves Jacob

Foi um anjo luminoso que passou pela minha vida e deixou marcas de luzes em meu ser. Seu nome, Karolline, soa como o de uma princesa que viveu para derramar bondade por onde passou. Foram 21 anos, dez meses e sete dias. Amei minha filha intensamente. Na minha memória, entre tantas lembranças, ficou a imagem do seu sorriso espontâneo; meigo, arrebatador e  iluminado.

Entre viagens a outras cidades, hospitais e clìnicas, em busca  de tratamento ao seu mal, passaram-se poucos meses. O nome do câncer agressivo que a levou desse mundo é Glioblastoma Multiforme. Ela deixou uma filha, Ana Clara, com três anos de vida. E muita saudade no meu coraçao e no de seus irmaos, parentes e amigos. Há cerca de três meses comentei com ela e meus filhos Marcus, Márcia e Soraya que me sentia cansado e planejava viajar por uns dias, já que há mais de vinte anos nao tirava férias do trabalho. Todos me animaram, incluive ela. Lembro-me da última palavra que me disse no hospital:

- Papai, eu te amo.

Voltei-me a ela emocionado e respondì:

-Eu também te amo, minha filha.
          
Tenho pelos meus filhos mais do que amor. Guardo respeito e afeto por eles. Com ela aprendi a importância do seu amor incondicional. Sei jeitinho especial cintilava uma luz intensa que afetava a todos em sua volta. No seu leito de sofrimento jamais ouvi uma palavra ou senti um gesto de revolta pelo seu estado de saúde. A tudo ela agredecia. Se eu levava uma fruta ou providenciava alguma coisa para aliviar a sua dor ela se desmanchava em agradecimentos. Foi uma crente que amou seu semelhante e, sobretudo, a Deus com uma fé consistente que, mesmo no leito cruel, louvava o Senhor de uma forma pura, ingênua e agradecida.
Recebí a notìcia da sua morte no dia 20 de setembro, dois dias depois de chegar em Santiago, no Chile. Neste dia acordei incomodado. Nada me animava. Havia sonhado com ela subindo ao céu com um diadema de flores enfeitando os seus cabelos negros. Ela me sorriu como se dissesse: "Estou indo". Às 8h30 liguei para o Hospital Vila Nova. Minha ligaçao foi transferida para a UTI. De lá me inforrmaram que o seu estado era grave e que as suas batidas cardíacas estavam irregulares.
No período da tarde recebí a notícia da sua morte. Tentei antecipar o meu voo. Em vao. Só seria possível no outro dia e, assim mesmo, com previsao de chegada em Goiânia na noite do dia seguinte.Vesti negro e saí sem destino pelas ruas frias de Santiago.Parecia que as pessoas se movimentavam em silenciosa câmera lenta. Todas as moças tinham no rosto o desenho do sorriso de Karoll. O vento, suave, soprava raios multicoloridos que se dirigiam aos céus. No meu coraçao havia uma inexplicável sensaçao de paz.
Karoll, minha filha querida, você foi um anjo que veio ao mundo e, indelével, invadiu a minha alma com o amor do seu doce viver. Segura na mao de Deus e vai.

Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raìzes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).
quarta-feira, 14 de setembro de 2011 | By: Doracino Naves

Caçador de Jatobá

Fevereiro é um mês pequeno. Neste ano então ele chegou rachando mamona de tão quente. E como faz calor, até os tatus se escondem na sombra fresca da terra. O vento que sopra da Vila Nova passa pelo Bosque do Mutirama e refrigera um lado do Bairro Popular. O vento sudoeste, soprado pelo Bosque dos Buritis e Lago das Rosas refresca o outro lado. O Bairro Popular tem sorte por estar nesse lado de Goiânia.

É, Bernardo Élis, o veranico de janeiro agora é em fevereiro. Capricho do clima desta era de fogo no planeta. No meio do antigo Bosque do Botafogo tem um córrego. Hoje corre em seu leito uma água gosmenta do esgoto injetado em suas veias. Ontem, que saudade, a água bestava enrolada nas curvas da mata e, no abrir da copa das árvores, o sol dourado brilhava nas “pedrinhas de estilingue” depositadas por Deus no fundo da água rasa.

Nessa época a gente atirava pedras para derrubar os bagos do jatobá que caía escorregando no capim até a beira do córrego. Dentro da fava tem farinha que, molhada pela saliva, gruda nos dentes igual dentadura de boxeador. Comer jatobá é coisa de menino peralta; é ruim demais. Perto da pinguela um pé de guapeva paria galhos retos com forquilhas fortes; cortadas a canivete para fazer estilingue.

Num ipê amarelo os ninhos de guacho balançavam ao vento. Uma rajada mais forte ameaçou derrubar os ninhos. Um guacho com uma mancha vermelha no peito, igual coração, vigiava o seu ninho construído com ramos secos. Seco  estava o úmido e único beijo roubado da Gracinha, no Cine Santa Maria. Debaixo do pé de guapeva uma menina de pernas magras passou rumo à lavanderia pública.

No fim do dia, num sábado calorento como neste fevereiro, lá vem o Janjão de roupa nova. Ia ao cinema ver “E Deus criou a mulher”, com a  Birgitte Bardot. Filme proibido para menores, como nós, caçadores de jatobá. Brigitte e Roger Vadim... Homem de sorte o Vadim. E de uma visão impressionante! Seus olhos descobriram, literalmente, as mais belas deusas do cinema.  Brigitte, Catherine Deneuve e Jane Fonda. Só este feito o faz merecedor de Premio Nobel. Não sei em que área. Talvez de descobridor de deusas. Este é a minha opinião de cinemeiro.

Bem que ele merecia pelo menos um “oscarzinho”. Um amigo me perguntou o tema dos filmes da Brigitte.

- O filme é sobre o quê?

Ô perguntinha difícil de responder! Penso que a tarefa mais difícil de quem faz cinema é a de redator de sinopse. Nenhuma história é de um assunto só. Como esta crônica que vai enrolando e passando de uma conversa para outra sem que o autor se dê conta de que o seu espaço já era...

A alma, de saudade, estala como mamona no asfalto quente de fevereiro. 

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural , na Fonte TV (www.raizestv.net)

Inefável Solidão

Pensei noutro dia: se morasse em Porto Príncipe poderia encontrar a minha casa amassada pelo terremoto. Com essa possibilidade fui mais fundo no meu devaneio: numa cidade destruída é impossível planejar a vida, ir à feira, ao cinema, andar à toa, assoviar despreocupado. Tudo isso é improvável. O impacto de um desastre desfaz os sonhos. Mas o choque das emoções desperta palavras. E elas flamam da alma soltando faíscas. A sensação que a gente tem, quando se escreve com emoção, é a de que esgotamos o verbo na última palavra. Bate desespero como se nunca mais fôssemos capazes de escrever coisa alguma. Prostramo-nos inertes como abelhas que perde o ferrão ao defender o seu território.

Goiânia é uma grande colméia humana. Cada pessoa tem uma função e vem ao mundo para realizar a sua tarefa. No seio da imensa cidade nasce uma solidão plasmada em nossos olhos cansados. O vento balança bandeiras e árvores; arrasta papéis e pode até arrancar o telhado das casas. Mas não leva o cheiro da cidade e nem o cheiro do próprio vento. Também não leva as coisas mais leves como o pensamento. Nem o som do violão que meu pai tocava se desfez com o vento. Dizem que na arte o filho acaba puxando aos pais, eu não. Nunca aprendi a tocar violão ou o cavaquinho que ele me deu de presente quando recebeu o primeiro salário de fiscal de rendas do estado. Só imitei dele a voz de barítono; porém, desafinada. Nem no banheiro consigo me ouvir. Sou uma tragédia cantando. Dançando, então, pareço o Maguila no balé. Só solto a minha voz no coro da multidão da igreja e os meus ouvidos se escondem no som do grande coral. Sempre atravesso a música. É aí que percebo olhares enviesados e testas franzidas de reprovação. Outros negaceiam. Uma velhinha sentada à frente me sorri com cumplicidade. Senti conforto naquele gesto; ela é uma cristã de verdade!

Assim devem ser as pessoas nas grandes cidades. Somos cidades ambulantes; as emoções são casas que precisam de asseio e luz. E, claro, cuidados para acolher as almas solitárias que se esgotam na folia. Estamos no carnaval de 2010. É o maior período de ócio no Brasil. O carnaval é uma invenção da burguesia medieval que considerava o trabalho uma indignidade.  E intercalou os festivais com os momentos de oração e trabalho para dignificar a vida. Outros povos, como os chineses, fazem poesia e se dedicam à natureza nos folguedos; os gregos folgados filosofam na Atenas ensolarada. 

Pensando assim caminho pelas ruas desertas do centro de Goiânia. Já andei por todos os caminhos desta cidade. Goiânia é uma bela cidade. Mas, penso nos homens e meninos que vagam pelas ruas com suas casas mergulhadas em inefável solidão. Uma quaresmeira deixa cair flores temporãs sobre a minha cabeça.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Papel de Balinha



Goiânia nasceu assim: luminosa, bela, culta, definitiva. São várias cidades numa só. Abro as cortinas dos meus olhos para ver a cidade escondida pelos prédios e a pressa insana das pessoas em suas tarefas cotidianas. Quem a vê e fecha os olhos à sua alma é como se ela – a cidade - deixasse de existir. Ficam só a luz, o calor e as imagens.  Depois de abrir os olhos a cidade volta, atraindo a nossa atenção. Assim é o mundo das imagens, irresistível.

O que é a essência de Goiânia? O que vemos ou o que imaginamos ver?  Sei lá é o que sei. Peço misericórdia pelo que não sei. Não digo de outras pessoas que, lá no íntimo, se julgam suficientes ao mundo. Falo de mim, insignificante, que o universo vê apenas como um pontinho a mais na imensidão do cosmo. Uma coisa me conforta na minha insignificância: Goiânia é parte de um todo indispensável para a composição poética do mundo. Eu, igual a você, leitor, somos parte de uma cidade que foi batizada pelo sol de um movimento cultural iniciado por Pedro Ludovico, em 5 de julho de 1942.

Talvez tenha sido neste dia que Deus sacudiu o seu cobertor de estrelas e elas caíram céu abaixo em matizes variegadas; no estilo Art-Decor ou na fantasia de seus artistas ou, ainda, na esperança da sua gente que voa com asas de borboletas sobre a cidade. Percebo isso ao andar com olhos atentos de girassol. Quando a gente olha assim, para a direita, à esquerda, atrás, percebe coisas que antes não via. Sinto-me renascido a cada saída e entrada na alma da cidade.

Nessa manhã de sexta-feira o ar frio sacode meus cabelos e abana o espaço. Ao passar pela Leste-Oeste, no Setor Norte Ferroviário, lembro-me da última favela de Goiânia: o Morro do Aranha. Suas casas ficavam penduradas no aterro do antigo leito da  estrada de ferro.

Lá também morava um catador de lixo por apelido Baixinho. Assim todos o chamavam. Viera de Ituiutaba, em Minas Gerais. Tinha uma mulher doente que mal dava conta da lida da casa; morava com eles um casal de filhos. O menor, magricela e alegre, andava pendurado na carrocinha, misturado ao lixo. Seu pai, às vezes, parava num bar do Bairro Popular, tomava uma pinga e seguia em frente. Essa era a sua rotina diária.

Na chuva cobria com plástico os papéis e o menino quase sempre vestido só com um calção surrado. Nem a dificuldade deixava o Baixinho de mau humor. Tinha um jeito amigo de olhar: enxergava as pessoas, reparava as ruas, os jardins e as flores nas janelas das casas do Bairro Popular. Preso pela cidade, mas livre para andar pelas calçadas e becos do bairro de onde tirava o sustento da família.

Dona Joana, moradora do bairro, com ar maternal, advertia:

-Baixinho, vista uma camisa nesse menino. Ele pode pegar uma pneumonia vestido assim.

-Liga não, dona Joana, ele é forte.

O filho do Baixinho tinha uma mania: colecionar papéis de balinha que ele, cuidadosamente, retirava do lixo. Desamassava-os e os guardava entre as folhas dum livrão achado no lixo.

Numa dessas viagens deu-lhe sono como em qualquer outra criança. Já era noite. Chovia. A chuva chegou gelada, caiu nas grades da carrocinha e escorreu embaixo dos papéis. Seu pai, arrastando a carrocinha pelas ruas do bairro, tinha um objetivo: alcançar o Bar do Moisés, na Rua 74.

Baixinho para a carrocinha no bar, pede uma pinga, duas... a terceira para espantar o frio. Lá fora, a carrocinha espera, sem pressa. Um freguês do bar entra apressado, fechando o guarda-chuva molhado.

- Êta, chuva! É uma frente fria que vem vindo do sul.

- Oi, Baixinho, cadê o menino?

-Vixe, “esqueci ele” na carrocinha.

Todos saíram para buscar o menino que colecionava papéis de balinha. Reviraram os papéis encharcados. A chuva derramava forte, enegrecendo o caminho até ao menino. No meio do lixo um corpo frio, magricela, sem camisa. Com um papel de balinha da Xuxa na mão. Baixinho se ajoelhou no piso da carrocinha e segurou o corpo inerte do filho. Chorou. Suas lágrimas, salgadas, se misturaram às da chuva.

Uma luz acende na janela, no alto de um edifício.

Goiânia é assim, paradoxal como em todas as metrópoles, guardam sonhos, luz, vida e morte. Definitivos.

Esta crônica acaba em silêncio. 

Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).