segunda-feira, 21 de julho de 2014 | By: Clara Dawn

Sem poesia o mundo é preto e branco

Tem duas coisas que o escritor deve zelar. Uma é escrever só o que acredita. A outra é assumir a idade que tem, nem mais jovem, nem mais velho do que realmente é. O que eu devo escrever na minha idade?, e jamais o que eu, com sessenta e cinco anos, escreveria com dezoito.
                  
Quando o leitor percebe que a gente não é autêntico o que escreve perde o interesse. No meu caso nunca havia pensado em escrever crônica; nem outros gêneros literários. Minha primeira profissão foi contador. Comecei com dezesseis anos em Hidrolândia, interior goiano. Nesse trabalho criei rotinas para dar conta do serviço.
                
Naquela época existiam dois métodos de escrita contábil: à mão, escrito direto no livro Diário ou feito na máquina de escrever pelo sistema de ficha tríplice em que ficava pronto o Diário, o Razão e o livro Caixa. Depois os lançamentos datilografados eram impressos num caderno de capa dura com folhas em branco e enviado à Junta Comercial para registro. Quando fiz a opção pelo segundo método imaginava o final do Balanço do exercício.
                 
Descobri mais tarde que essa imagem platônica de como o trabalho ficaria no fim foi uma escolha pelo caminho moral. A minha obrigação era encontrar o meio mais fácil de arranjar os fatos na contabilidade. Então, hoje sei disso, ao construir esse universo que era habitado somente por mim, aprendia a escrever histórias.  Mas a decisão definitiva, que me pareceu fortuita na ocasião, foi o desafio do Batista Custódio que me convidou a escrever no Diário da Manhã. “Você sabe escrever?”. Respondi que era jornalista. A resposta veio fulminante: “Não perguntei se você é jornalista, perguntei se quer escrever no jornal.” Disse que nunca havia pensado sobre isso. Aí veio o desafio: “Por que não?”.
                 
Foi assim que decidi começar. Em perspectiva, penso que esse caminho estava sendo preparado desde quando começara a idealizar o meu mundo. A primeira leitura, que me fez sonhar, foi a coleção completa de Júlio Verne. Fiquei fascinado com as possibilidades das viagens inventadas pelo autor.
                   
Hoje a leitura que mais gosto é a poesia. Estou certo de que o poeta é o guardião da língua. Sem a poesia que encanta, a vida é o inferno. Somente a poesia - seja na literatura, na música, ou nas artes de um modo geral - é capaz de colorir nossa passagem pela terra. Noutro dia, numa crônica de Gabriel Nascente, - que escreveu o livro de poesia Biografia das Cinzas, premiado este ano pela Academia Brasileira de Letras - a respeito da morte de Ivan Junqueira, o poetinha, criado no Bairro Popular, foi genial: “Levar poeta para o cemitério é a mesma coisa que enterrar passarinho vivo”. É uma metáfora primorosa. 
                     
O poeta cumpre o destino de guardião de qualquer idioma: zelar pela sacralidade da língua é o seu dever maior. Ele é o exemplo do correto uso das palavras numa época em que a língua materna é conspurcada e imprecisa. Na minha idade acredito que essas coisas são importantes.

                    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.com, PUC TV, sábado, 13h30. Escreve aos sábados no DMRevista.