quinta-feira, 21 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Apito no cemitério


As maiores emoções do homem estão ligadas ao amor. As minhas foram o nascimento dos filhos, os adeuses aos amigos e aos parentes que partiram. Vivo de amores por lugares onde construí meus sonhos: Porto dos Barreiros guarda números gravados a canivete por meu pai num mourão de fazenda: 17.01.49; Palmelo tem dois corações desenhados inocentemente numa pedra à margem do córrego Caiapó; em Goiânia decifro signos e símbolos até encontrar a senha para entrar no outro mundo. Errante, já andei pela maioria das ruas daqui. Continuam becos da minha caminhada a Vila Nova, o Bairro Popular, Campinas, Setor Sul, Universitário, Oeste, Marista e o Setor Coimbra.  Paro essa relação por aqui senão essa crônica vai ficar parecendo lista telefônica. Às vezes me confundo em minhas abstrações.

Quando isso acontece vago pela cidade até me reencontrar. Sinto a presença de Deus a minha frente.  Outro dia, quando me dei conta, estava no topo do Morro do Além. Ao lado está o cemitério, recôndito lugar de beijo de esqueletos. O celular, atrevido, tilinta. Mas, no sono eterno dos moradores do cemitério o apito nem é ouvido. Intrigante a existência dos homens. No cemitério estão os mortos que já morreram; outros que vão demorar a morrer. Ainda há os que jamais morrerão; seus feitos construíram a eternidade e serão sempre lembrados. 

Goiânia está embaixo dos meus pés. Do alto comparo a minha Goiânia a Paris, Viena, Roma, Buenos Aires, Atenas, Veneza e, inevitável, apesar das diferenças, o Rio de Janeiro. Goiânia é ainda mais bonita e misteriosa. Tem encantos que outras não têm. E é uma cidade-menina comparada às demais. Fez-se pólo de uma civilização importante ao interior do país. Por aqui muitos pioneiros e seus filhos ainda constroem a história e a cultura iniciadas por Pedro Ludovico Teixeira; continuadas por Iris Rezende.

Estou no lugar mais alto da cidade. Fico. Meus sonhos, no entanto, me lembram: “O céu é em cima; não embaixo dos pés”. Quero falar com os anjos de Deus que voam leves sobre a cidade. Elevo os meus pensamentos. Os homens, maliciosos, fazem da prece uma desculpa para ficar mais leve no fim da caminhada. Porque homem nenhum suporta o peso da carga dos pecados da espécie por muito tempo. Quando nasci um tio disse:

-Este menino deve ser forte para aguentar a vida no lombo. Muito forte!

Do alto do Morro do Além uma cadeia de nuvens ameaçadoras cresce sob o céu azul. O mundo escurece de repente. O vento sopra forte noutra direção e as nuvens, obedientes, desaparecem no ar. As emoções contrárias também se afastam humilhadas quando o amor comanda. Protegei, ó Deus, os meninos tristes de canelas finas e olhos de esperança que vagam pela cidade. Perene é o amor que resiste aos sonetos e sobrevive às tormentas das emoções. 

 Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)
quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Sal na moleira

As ruas da Vila Nova formavam torrentes de água enlameada. Nem a 5ª Avenida tinha asfalto. E olha que era a única linha de ônibus. Ou melhor, jardineiras pequenas e de teto baixo. As pessoas mais altas tinham de baixar a cabeça em reverência ao motorista-chefe da jardineira. Melhor ainda que naquela época  a altura dos brasileiros era menor do que hoje em dia. 

Em 1962, havia na Vila Nova uma praça redonda e estreita bordejada por filas de rosas e plantas ornamentais. Nas laterais, pequenas quaresmeiras faziam sombras nas manhãs de sol. Ao redor da praça, hoje chamada Tamanduá, uma série de casas simples pintadas com diversas cores, predominando a azul celeste. Na esquina da Rua 214,  o armazém do Seu Severino se distinguia do resto das casas do bairro. O prédio tinha marquise larga com a frente desenhada com cimento fino. Seu Severino era um nordestino calado e trabalhador. Abaixo da praça, descendo a 6ª Avenida morava o Juvenal, colega do Grupo Escolar Murilo Braga.

 
Pois bem, no início de abril, pela manhã, caiu uma chuva de granizo cobrindo com um branco lençol o calçamento da praça. Eram seis horas quando eu me dirigia ao meu primeiro emprego, no Moinho Goiás. Aos doze anos trabalhava como empacotador de farinha de trigo. Escondí debaixo da marquise com minha bicicleta Philips, presente do meu pai. Esperei passar o temporal. As flores vermelhas, agitadas pelo vento gelado, batiam nas outras perturbando apenas o silencio que reinava na Vila Nova naquela hora. Alguns raios de luz vindos do interior da venda escapavam pela fresta da porta.
 
Pensamentos esparsos me acompanhavam durante a espera. Num deles me lembrei do que me dissera um morador a respeito do Seu Severino, dono do armazém e pai da Gracinha.
  
-Não mexe com a filha do Severino. Homem calado, muito cuidado! Gente de pouca fala não deixa perceber suas intenções. São mais previsíveis do que os que se derramam em ameaças e dão aviso do que pretendem fazer.

 
Alarme falso. Jamais soube de um ato de valentia do Seu Severino. Depois pensei  na figura do Botinha, meu chefe da sessão de empacotamento de farinha, que deveria estar nervoso pelo meu atraso. Sabendo como ele se comportava nessa ocasiões resolvi enfrentar os últimos pingos da chuva que lavou a poeira dos galhos das árvores. Com as duas mãos no guidom empurrei a bicicleta para dar velocidade e pulei no selim com se fosse um cavalo. E pedalei firme pelas ruas esburacadas até chegar ao trabalho. Meu salário da semana vinha em dinheiro. Sem desconto porque eu não tinha carteira assinada. Com esse dinheiro fazia a farra dos meus irmãos mais novos. Dava bem para o sorvete e a raspadinha gelada na feira do domingo.

 
Raspadinha era uma barra de gelo raspada com uma espécie de enxó e misturada com essência de groselha, abacaxi ou limão. Uma delícia que deixava geladinha a barriga da gente. Também pensei: hoje é sábado. Dia de vai-e-vem na Pracinha. E de pipoca no carrinho do Seu Manoel. Talvez ela estivesse na praça, simples com seu vestido rodado, linda e tranquila. Quem sabe a Gracinha olha pra mim. Assim trabalhei  naquele dia.
  
Hoje não sou mais gente nova. Todos os dias Deus põe sal na minha moleira. Um chapéu na cabeça encanecida me convém para me guardar do sereno. Ou talvez uma cadeira de balanço para sossegar os meus pensamentos que se afogam nas torrentes de águas passadas.
 
Ando devagar.  Acho que vou andar por outros cantos da cidade.
 
Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Cântico a um líder


Iris Rezende é festejado como um líder carismático e moderno. Sua vida é o foco de artigos, crônicas, livros, programas de rádio e televisão, inclusive dissertações de mestrado e teses de doutorado. Somem-se a isso os discursos, homenagens e títulos que lhe foram prestados no curso da sua vida pública. Além do raro talento político sua alma está centrada na dignidade do ser humano.

Com ações que visam o bem das gerações futuras. Exagero? É só levantar os seus feitos de 53 anos de vida pública. Aliás, sua missão sempre foi servir ao próximo; exemplo do pai Filostro Machado. E isso se cumpre em cada função pública que exerce. Iris é o resumo da sabedoria dos antigos em um discurso moderno. Os sábios da  tribo Sioux,  índios do nordeste dos Estados Unidos, planejavam o futuro pensando na sétima geração. Assim faz o Iris em suas administrações. Pessoas anônimas, artistas e intelectuais se encantam com a sua capacidade de contar histórias e realizá-las. Talvez venha do céu o fogo do seu ideal que usa para iluminar o caminho do povo.

Pedro Ludovico, um sonhador como Iris, idealizou aqui um posto avançado de uma nova civilização; inaugurada com o Batismo Cultural, em 1942. Sete anos depois Iris Rezende chegava a Goiânia. Em 1965 foi eleito prefeito. Antes deles, Goiás, um dos estados mais atrasados do país, vivia de uma tradição agrária rudimentar. Mas, a‘treição’, um costume da roça conhecida como mutirão, simbolizava o jeito peculiar do povo do interior em compartilhar sua vida com a dos vizinhos. Iris implantou o sistema de mutirão  na administração pública. Joseph Campbel, mitólogo norte-americano, diz que aquilo que os homens têm em comum revela-se no mito. Coube ao Iris incorporar a cultura goiana de luta contra as adversidades e projetá-la para o futuro. Sua biografia revela um construtor  incansável.

Nem as derrotas pessoais, como a cassação do seu primeiro mandato de prefeito pela ditadura militar em 1969, lhe tiraram o ânimo. Voltou como governador em 1982 e 1990.  Depois vieram as derrotas de 1998 e 2002. Só as pessoas iluminadas acham força em Deus para superar o deboche dos contrários.

Lembro nessa crônica a lenda Tupi sobre a origem do fogo contada por Levy-Strauss, antropólogo francês, em seu livro O Cru e o Cozido: "O herói mítico finge que morreu e atrai os urubus. Estes, que eram os donos do fogo juntam-se em volta do morto e acendem uma fogueira para cozinhá-lo. O herói afugenta os urubus e toma posse do fogo entregando-o aos homens". As vitórias em 2004 e 2008 são metáforas dessa história. Numa visão antropológica a vida de Íris Rezende tem um formato mítico que se assemelha ao personagem de Strauss. E esta lenda, com versões diferentes, corre longe.

Uma das características do mito é a forma simbólica da narração dos seus feitos.  A outra é a de que a história do mito explica a realidade vivida em sua época. Mircea Eliade, historiador romeno, diz que o mito conta a história de um comportamento humano que se torna uma realidade. Iris Rezende, mais do que gestor, é a própria manifestação da cultura viva de Goiás; criou um paradigma com a cara de Goiás. Naturalmente que este padrão está fundamentado em modelos de transformação dos costumes. O exemplo de Iris produz  um novo conhecimento; modernizam as relações humanas; influenciam o comportamento individual e coletivo; alteram a ocupação do espaço do homem e leva os estudiosos a um olhar científico sobre as suas ações. Isso o coloca como autor contemporâneo da história goiana. Na visão antropológica Iris é a síntese da cultura que transforma e ensina pelo exemplo. Temos em Goiás dois mitos: Pedro Ludovico Teixeira que construiu Goiânia e Íris Rezende que a fez metrópole. Por esse lado penso que o Iris foi mais ousado; construiu quase toda a estrutura física atual, principalmente casas populares e estradas asfaltadas.            

Goiás precisa se desenvolver mais para se firmar como marco da civilização sonhada por Pedro Ludovico. E o farol do futuro aponta para Íris Rezende. Interessante observar que, com o passar do tempo, ele se moderniza. Sobretudo sua dialética que valoriza o outro sem negá-lo. Por essa causa as suas realizações são mais duradouras. E são cantadas em prosa e verso como cântico a um líder que acaricia todos os tempos. O que faz com que esta representação simbólica do mito Íris Rezende inaugure uma nova prática numa época de arrancar as raízes da descrença.

Janela dos óculos

Na semana passada eu parei a minha crônica no meio da história de Anita, mocinha de 18 anos, casada com o quarentão Luiz da TV. A jovem entregara-se ao casamento com alegria e inocência. Recebia em troca segurança e, sobretudo, muita veneração. Como eu ia dizendo na crônica anterior, tudo parecia perfeito no casarão da Rua 206, na Vila Nova. Até Luiz receber um telegrama de São Paulo com notícias da morte de Geraldo, compadre e amigo de biscates na Praça da Sé.  Quando veio para Goiânia seu amigo era pai solteiro de um menino de cinco anos. Outros seis se passaram até a morte do compadre. Lembrou-se de um compromisso feito com Geraldo de que, como padrinho, cuidaria do menino se alguma tragédia acontecesse com ele.

Como era um homem de palavra cumpriria a promessa. Foi falar com Anita que consentiu. Uma semana depois Edgar, acompanhado por um guia, chegava de trem a Estação de Goiânia. Lá estava o casal esperando. Luiz pagou o homem o que combinaram e ainda deu-lhe o suficiente para o pouso. Juntos, Luiz, Anita e Edgar embarcaram numa perua DKW Vemaguete rumo ao casarão da Vila Nova.  

Anita se dedicou, quase maternal, ao pré-adolescente de 11 anos. Ela acompanhava de perto os estudos e as tarefas do Colégio Santo Agostinho, no Bairro Popular. Lá surgiu o interesse dele em ser padre. Algum tempo depois partiu para um seminário no interior de Minas Gerais. Três anos depois desistiu da ideia e retornou à casa dos pais adotivos. Já não era um garoto, mas um belo adolescente com uma boa educação adquirida no seminário. Até falava um pouco de latim e francês.


Anita olhava com admiração o jovem. Logo percebeu que o interesse foi se tornando um prazer indescritível. Sentia a sua ausência; até mais que a do marido. Achou, a princípio, que era instinto maternal. Aos poucos um novo sentimento chegou puro e inalterável. Só podia ser amor. Lembrou das palavras do seu pai: “quando se tem a cabeça no lugar tontura nenhuma há de incomodar”. Mesmo assim, Anita descobriu que, pela primeira vez, amava sinceramente. Talvez para outra mulher isso fosse o fim do casamento. Mas, esta descoberta não a incomodou;  nada mudaria o rumo da sua vida.


Pensando assim redobrou os cuidados com o marido. Sem descuidar de Edgar. Era uma paixão devotada, porém, séria e casta. A Vila Nova dos anos 60 foi alegre e festeira. Nessa época comecei a enxergar pela janela dos óculos. Havia as matinês dançantes de domingo; sessões de cinema no Cine Regina; Bailes na Liga dos Amigos. Os três eram presentes na vida social da Vila Nova. Longe, no Lago das Rosas, o banho nas nascentes frias do Capim Puba.


Na semana passada, ao abrir a primeira parte desta crônica dizia ser um mero espectador da alma goianiense. Apanho, como num campo de cereal, espigas  maduras de grãos. São histórias colhidas aqui e acolá. Deixo, a propósito, para o final da minha crônica para contar o fim triste de Edgar. Ele morreu afogado no Lago das Rosas. Logo depois o local foi, para sempre,  interditado para o banho. Anita escreveu num canto do seu diário: "Por que chorar? Encho a minha taça com amargura. Fez-se uma claridade dolorosa".

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raaizestv.net

Mão-de-onze

Estranho o truco jogado naquela casa; calado e no escuro. O silêncio  trazia fantasmas para morar na escuridão. Os jogadores continuavam calados, com palavras e gestos medidos. Bem ao contrário da natureza barulhenta e alegre do truco. No centro da sala uma mesa pequena, quadrada, com quatro cadeiras ocupadas por jogadores tensos. Era possível ouvir a respiração dos jogadores enquanto manuseavam as cartas, três em cada mão.

Voltou a luz e, com ela, um pouco de entusiasmo. Mas o clima ruim continuava no ar. As paredes enfumaçadas e picumãs pendurados no teto escondiam um segredo. O jogo de truco, por tradição, é feito sem apostas. Mas, neste jogo havia um acordo sinistro.

- É meu o baralho. Dou das cartas!

Cada um examina as suas:

- Eu sou o pé. Então, você que é mão, joga  a sua carta!

Cai um ás de espada na mesa, depois um valete de ouro, um três de paus e, no pé, uma espadilha fecha a primeira mão.

-Primeira feita, Agostinha na garupa.

Começa a segunda rodada. ‘O mão’ retorna a primeira carta e um três de copas roda a mesa até fechar a segunda mão sem truco. A seguir a última rodada da queda. Estava jogo-a- jogo e onze a onze; uma das duplas chegaria aos doze pontos. Pela regra ninguém podia trucar na mão-de-onze. Nessa altura a sorte seria de quem tivesse as maiores cartas ou uma boa psicologia do jogo.


 Antes de embaralhar os jogadores se levantaram para esticar as pernas. Isoladas, as duas duplas de jogadores tratavam da estratégia final. Depois, sentaram-se.  No truco os parceiros ficam de frente; os adversários, um  à esquerda e o outro à direita. Um deles falou:

 - O mundo é chato. Todos os dias é a mesma coisa pra mim. Acordo de madrugada, levanto, bebo café, dou umas voltas, almoço, janto e vou dormir. Nada há de novo. Eu sei que existe gente que acha o contrário. Mas eles encontram motivos para pensar assim, eu não.

- Pois é. Eu também sou desse jeito. Tento não ter inveja de ninguém. Mas não consigo evitar a inveja dos que têm o que fazer. Acordar, trabalhar, ir ao cinema, ao estádio, pescar, enfim, essas coisas que tomam o tempo e levam-nos mais  mansos para a hora do juízo final. Porque dessa ninguém escapa.

Houve um silêncio entre os quatro. Entrou um ar úmido e limpo. Mas parecia que respiravam um ar que não era deles.

- O mundo está cheio de bondade. Mas, ás vezes as nossas preocupações vem nos visitar em momentos de desânimo. É como o nordestino que tem orgulho da sua terra, porém, não gosta de receber visitas no verão, quando tudo está seco.

- É... os três tem razões em pensar assim. Mas, vou lhes confessar uma coisa: estou com medo. Não quero ir agora. Concordamos com a  roleta-russa. Mas, a gente poderia rever os termos da aposta.  

Num canto da sala tinha um revólver com duas balas no tambor. Uma inesperada brisa gelada entrou pela janela, fez tremer os jogadores, e foi expulsa por uma luz sobrenatural que invadiu a sala e aqueceu o ambiente. Um deles quis resistir á proposta. Outro, ligeiro,  retirou as balas da arma e o escondeu da tentação. Todos concordaram com um sorriso aliviado. Novas cartas foram distribuídas.                

 Agora, sim, o truco parecia jogo de truco. Um dos jogadores subiu na mesa:

-Truco, papudo!

Outro se levantou e, aos berros, retrucou:

- Toma seis, ladrão dos meus tentos!

 Não mais importava quem ganharia a mão-de-onze. A luz traz ânimo para tirar os fantasmas da solidão que mora no escuro da  alma do homem.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural na Fonte TV (www.raizestv.net)

Debrum Azul


- A mãe pediu pro senhor mandar um litro leite e dois quilos de arroz. Quando meu pai chegar da viagem ele vem pagar o senhor. 

- Primeiro quero receber o atrasado. A caderneta está cheia de fiado.

- Meu pai vai pagar o senhor. Eu juro que vai! Ele é honesto.

Olhando para a rua, em solene desprezo, o dono da venda é incisivo:

- Não!

A resposta dói na alma da menina que veste singela chita estampada com florzinhas do campo. Chocada com a resposta escora no portal do armazém. O dono da venda lhe envia um olhar de pouco caso. Aturdida, fixa os olhos na calçada. Treme descontroladamente. Não é de frio; está calor. Talvez seja fome ou medo. Seu corpo, indeciso parece levitar. Dos olhinhos castanhos surge um filete de lágrima salgando a pele ressecada pelo frio seco no serrado em agosto. Seu rosto arde como pimenta malagueta.

Com a ponta do polegar ela tira a lágrima do rosto. A Rua 63, espichada para a Avenida Oeste, é o caminho da sua casa. Sai correndo em ziguezague para driblar a vergonha diante negativa do dono da venda. O corpo franzino vai envolvido numa renascentista aura dourada. A alma dos fregueses, em silêncio, é solidária. Todos se calam; nem o dono da venda ousa justificar. Para disfarçar o mal estar ele mexe o arroz da tulha com uma concha de lata. Lá fora os flamboyants do Bairro Popular soltam flores vermelhas e amarelas.

Nunca soube do destino da garota. Também não voltei à venda. Mas a imagem continua registrada na minha memória. Escrevo esta crônica com emoção. Ainda vejo o olhar assustado da menina. Tão assustado como os olhos de uma rolinha surpreendida pelo grasnido do gavião sobre o descampado.

Alguém me adverte de que página de jornal não é lugar para lamúria. Mas a cabeça da gente é entupida por lembranças. Muitas delas, infelizmente, são surdos lamentos que mordem com dentes de ferro a nossa alma; para o resto da vida. Volto, depois de muitos anos, à esquina onde jaz o armazém.

Subindo pela Rua 74, indo para o Mercado, tem um prédio com fachada em debrum azul. Um tapume de neon de uma farmácia cobre a eira e a beira; dos contornos do luminoso faíscam luzes douradas desenhando cintilantes florzinhas vermelhas e amarelas. O arremate do desenho forma um copo-de-leite.

Lá vem um gari com seu vassourão juntando o lixo da calçada. Não recolhe nenhuma flor de flamboyant. Elas sumiram do Bairro Popular.


Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

A pipa azul


Aquele menino magricela, talvez uns 12 anos, espera no início da faixa de pedestres segurando a linha de uma pipa azul com rabiola esvoaçante; a mão direita segura o cabresto de três linhas. Aos seus pés um cachorro vira-latas sentado observa atento os movimentos do menino. Eu estava parado no sinal vermelho no lusco-fusco de um tarde quente no Setor Pedro Ludovico. A tarde vai. Ele passa sobre a zebra pintada no asfalto. O cachorro, fiel, o acompanha. O menino atravessa sem perceber nada à sua volta: carros, a bicicleta do pedreiro cansado da lida, a moto que invade a faixa, o pedestre apressado na volta pra casa depois do trabalho. Nem o saracoteio requebrado da mulata ele viu. Atravessaram a avenida com os olhos no céu pintado com o azul da pipa raia.

Nada era mais importante a ele do que a raia flutuando de um lado para o outro querendo voar. Soltou alguns centímetros da linha presa no cabresto. Ela voou baixo, pouco acima da sua cabeça. O menino, a raia e o cachorro pedrês sumiram atrás dos prédios. Não me lembro de ver um menino tão feliz com o seu brinquedo. Seus olhos alegres ainda estão na minha imaginação. O brilho dos três ficou na rua, preso nas pessoas que assistiram a passagem meteórica do trio.

Por um instante as pessoas ficam encantadas. O mundo para nessa hora. Aquela passagem, perfeita, limpa de toda mácula, se foi sem os pecados da espécie acumulados em gerações reencarnadas.  Uma egrégora radiante invadiu a alma daquele pedaço de mundo. Assim, voltamos todos para casa depois de um dia de trabalho. A alma navega forrada com o brilho de milhões de vaga-lumes.

Antes de retomar a primeira marcha do carro pensei nas mulheres que, à essa hora,  esperam seus maridos; nas mães que esperam o filho chegar do trabalho. E nos dias de hoje, quando a vida é banalizada pela violência, a espera é cruciante.  Vejo uma pequena luz acesa no alto de um edifício no alto do Setor Serrinha. Talvez seja da amada a espera do esposo. Ou de alguém que acende uma luz no entardecer das emoções para ligar o túnel invisível na travessia de noites insones.

Passa um ônibus lotado de gente; difícil saber quem chegava ou ia. O ônibus parou no ponto onde outras pessoas esperavam. Abre as portas e por elas escapam pessoas apressadas. Outras se espremeram para entrar. O trânsito se arrasta lento. Os carros param em fila com as lanternas traseiras já acesas. Uma mulher passa entre os carros. Sequer olha para eles, mas segura firme sua filha pelo braço: “Corra, o ônibus tá no ponto”.

Ainda penso na alegria do menino magricela e sua pipa azul com a rabiola esvoaçante. Ao atravessar a avenida povoada de gente e carros, os três deixaram um rastro de emoção em que as coisas simples do cotidiano da cidade encabrestam a linhas invisíveis das emoções que se ligam no tempo.

Com essa imagem vou para casa igual ao menino que depois de chupar a manga madura fica com o caroço na mão sem saber o que fazer. A pipa é leve. Vou embora sem pressa.  Ainda é cedo.

Doracino Naves é jornalista.
(Texto publicado originalmente em 14/07/2011 e republicado em 04/10/2014 no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás)

Glória a ti, Neguinho

Madrugada fria de junho em Goiânia. Mês de céu estrelado.O céu mostra um diadema brilhante a enfeitar os sentimentos matinais. O cheiro de café coado impregna o ar puro da manhã com prenúncio de inverno. Contar estrelas faz a gente se integrar ao universo de Deus. O ar sopra rente a terra, mexe com a água morna do lago formando uma neblina seca, quase transparente. Em forma de incenso a fumaça sobe às estrelas plasmando gotículas brilhantes no firmamento. De madrugada o céu ainda mostra constelações cintilantes como se fossem fogos em festa de São João. O céu de estrelas cobre o planeta. Só é visto quando o céu está limpo. A estrela d’alva, última a abandonar a madrugada, fica pendurada num cordão invisível para anunciar o novo dia. Os galos não cantam mais nas cidades grandes. Foram substituídos pelo despertador do celular com sons metálicos esquisitos. Sorte que no meu toca Wonderful World.
 
Goiânia se espreguiça, pausada e dolorida, com as dores passadas. Abre os braços e se espicha para trás, para a esquerda, para a direita. Isso serve para acordar o corpo. Cada qual, no seu canto, começa a agir para vencer mais um dia. O motorista do ônibus ajeita o seu “colchinile” no banco. Os pontos de ônibus se enchem de pessoas escondidas no lusco-fusco da madrugada. O vizinho  liga o motor do carro, o rádio toca música sertaneja de viola; de manhã não é hora de ouvir sertanejo com guitarra elétrica. O pai apressado veste o uniforme no menino ainda na cama. O pedreiro ajeita  o prumo na sacola; seu nível está abaixo dos patrões. A travessa de pão sai do forno; enquanto o filho do padeiro, num bairro distante do  centro, se aquece com um cobertor sapeca-negrinho. A cidade é despertada pelo barulho de motores e de gente num burburinho uníssono. Como num parque de diversão elétrico tudo começa a se mover nos seus  limites. Os cachorros, sonolentos, se escondem num canto da casa.  Triste sina a dos cães que têm de latir a noite para espantar os  espíritos desocupados.

Os fantasmas se livram das correntes e se escondem com medo da luz que vem rompendo a madrugada. A missa das seis vai começar  na Igreja Matriz de Campinas. Os evangélicos celebrarão o culto dos empresários nos Templos da Fonte da Vida. Mesmo sob o sol, a paz não será completa. O “gata-parir” expulsará os fracos para fora do ônibus.  Filas quilométricas de carros serpentearão pela cidade como se dirigissem ao matadouro. Buzinas, xingatório, cara feia, gestos obscenos. Motos que não respeitam o sinal vermelho. Ainda é madrugada em Goiânia. Uma parte da cidade dorme.

Menos o balconista Neguinho que, às seis horas, já está na lanchonete Biscoito Pereira, na Praça Tamandaré. Levanta cedo para a santa rotina do dia que anima os seus fregueses. Uma lição de alegria e otimismo é boa para começar o dia. Basta ir uma vez ao Biscoito Pereira para que ele saiba o nome e o gosto do freguês. Ele fala sorrindo. Um sorriso franco, amigo, acolhedor.

  -Bom dia, Dr. Marcus. Vou preparar o que o senhor gosta.
 
  Imediatamente serve o habitual.

  - O seu pão-de-queijo e o bolo de fubá.  Agora vai sair o  seu café-com-leite.

Uma sessão de malabarismos acompanha a preparação da bebida que sai quente, espumante, doce. Assim, ele atende a todos. Uma verdadeira aula de atendimento com bom humor. Interessante observar que na Praça Tamandaré o lavador de carros, o engraxate, o barbeiro e o vigia de carros atendem com a mesma gentileza. Será por influência  do Neguinho?

Talvez sim. Glória a ti, Neguinho. Glória ao fogo do teu coração. A madrugada de Goiânia termina com a chegada do sol. O dia poderá ser longo. Depende do humor de hoje. A noite certamente voltará com os seus fantasmas arrastando correntes negras na alma das pessoas. As guitarras estridentes vão gemer nas profundezas dos porões.  Outras madrugadas amanhecerão nos meus olhos.

Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).

Teclas de Deus


Ela já esteve nos braços do Marlon Brando, sentiu as baforadas da piteira de Tenesse Williams, astro da literatura, dos palcos e do cinema. Nélson Rodrigues deixou suas digitais no corpo da discreta musa. Porém, num triscar de dedos, desanda a falar até eles se cansarem de tocar as suas partes secretas. Clarice Lispector foi sua amiga íntima. Despois de um encontro das duas, sussurrou desiludida: “Eu escrevo sem esperança de que o que escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada...”. Millôr Fernandes confessou, sem pudor, depois de tanger suas curvas debochadas: “Escrevo porque escrevo, se me pagassem eu só falava”.
                      
Essa falastrona passou noites na companhia de poetas, jornalistas e escritores. Certa feita dormiu em cima de um telhado, na Praça São Pedro, com um repórter do Time-Life; esperavam o anúncio do novo papa. Submissa, aceita ficar em qualquer lugar no mundo, mas quando é provocada grita; até fala palavrão. Também louva a Deus para na difícil tarefa de interpretar o pensamento do homem.
                    
Despudorada ou santa vê o seu fim chegando com a brisa do novo milênio. Veio ao mundo depois do pincel, da pena e do lápis. Seus neurônios passaram a vida dando saltos na frente de homens e mulheres; em profunda e sincera comunhão de sentimentos e opiniões. Atraente, de curvas sinuosas, ainda chama a atenção dos seus amantes mais fiéis que não a abandona por nenhum computador de mesa, laptop ou IPad.  Só os perfeccionistas arriscam trabalhar com ela. Se alguém errar terá de se humilhar e, indiscutível, confessar o erro já marcado numa imaculável folha de papel. Estou falando da máquina de escrever que chegou ao fim de sua ventura na terra; a última fábrica foi fechada, ano passado, na índia.
                   
É melancólico ver o fim da linha de um objeto tão obediente e submisso. Suas teclas tocam a fita rubro-negra ao impulso dos dedos; a alavanca se move de um lado ao outro na incansável busca do texto preciso; ora hesitante, ora com a certeza majestosa dos deuses. O som metálico das teclas vararam milhões de noites em busca do texto ideal. Das grandes invenções do homem, a máquina de escrever é a que mais fielmente traduziu seus sonhos e desejos; nas peças de teatro, roteiros de cinema, literatura, cartas de amor, letras de música e hinos, recados mal criados, relatórios técnicos, fórmulas de invenções que mudaram o rumo das coisas.               
                   
Desbancada das editorias dos jornais a máquina de escrever se transforma, sem dó nem piedade, em peça de museu. Menos nas prisões dos Estados Unidos onde é proibido usar o computador. Lá, numa população de mais de dois milhões de detentos a máquina de escrever ainda é útil. Porque a máquina de escrever só tem uma função: escrever. Assim, o presidiário não é tentado a usar a internet ou responder e-mails.
                
Há um sentimento voyeurista, à Alfred Hitchcock em sua Janela Indiscreta,  ao abrir a caixa de uma máquina de escrever portátil. Curvas, ponto g, o requebrado rítmico das teclas que, ao serem tocadas, revelam a palavra secreta guardada no coração. A mobilidade dessa máquina itinerante impressionou o mundo de guerra e paz; foi a janela indiscreta de jornalistas e escritores para contar as atrocidades do front.
              
Tenho a esperança de que o que escrevo ajude a decifrar a alma dos objetos. Quando for ao encontro da eternidade serei guiado pelas teclas de Deus que escreve o nosso destino num imenso e infalível livro.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2013).
           
Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).

Mais sol menos espelhos

Fiz uma descontraída caminhada sob o sol do Setor Sul no começo dessa primavera. Primeiro fui visitar a biblioteca de um amigo na Rua 92-A. Ao passar pelas ruas senti umas fisgadas de alerta nesses tempos em que  violência explícita toca a nossa alama.Tornamo-nos mais sensíveis ao  sofrimento dos outros. Talvez um dia o homem, com o coração aliviado de suas culpas herdadda do paraíso, veja o próximo com generosidade. Segui com o coração cheio de afeto. Sorrindo cumprimentei a todos que passavam. A maioria foi receptiva. Poucos demonstraram indiferença. Mas, alguns acharam meu jeito pra lá de anormal.
Um homem de bigode, cara fechada, passou por mim. Em resposta ao meu cumprimento, sussurrou entre os seus dentes de ouro:    
- Sujeito esquisito.
A mocinha que ia ao colégio, desconfiada, vendo o meu sorriso de bom-dia mudou de calçada:
-Atrevido!
Mais a frente, na Rua 104, encontro Ivo, de cabelos brancos azulados como o algodão de Santa Helena. Tinha uma bengala com uma cabeça de cachorro torneada no alto. Respondeu ao meu gesto com atenção. Perguntou se eu tinha visto uma cachorrinha branca, da raça poodle.
-O nome dela é Fofucha.
Gastou preciosos minutos falando da sua vida; tem três filhos e, hoje, seus netos são adolescentes. Contou que se aposentara como professor da Universidade Federal de Goiás onde foi um dos fundadores do curso de jornalismo.
- É, colega, na minha idade o tempo escoa com uma lentidão excruciante.
Enxerguei a luz daquele dia com outros olhos. A emoção de sentir as pessoas me acompanhou, colada à pele. Continuei andando pelas calçadas desniveladas do Setor Sul.
Num banco da viela escondida do Projeto Cura encontrei uma mulher lendo a Bíblia debaixo de uma quaresmeira sem flores. Assim que começamos a conversar percebi que estava diante de alguém especial. Dona Luzia, esse é o seu nome, foi contando como aprendera a ler a Bíblia.  
-Sabe, moço, eu só sei ler a Bíblia. Nunca fui á escola. Um dia senti uma dor no peito. Estava só no meu quarto de empregada doméstica. Tive a sensação de morte. Num impulso abri a Bíblia. Consegui decifrar um versículo. Chorei muito de emoção e espanto. Recebi um milagre de Deus; pelo alívio da dor e por conseguir ler pela primeira vez.  Juntei uma palavra à outra e me vi atravessando páginas como se nadasse no rio Vermelho da minha infância em Aruanã.
Despedi-me emocionado com a história de Dona Luzia. Dei alguns passos e já estava diante da casa do amigo. O sol do Setor Sul ilumina todos os cantos. O Setor Sul, espichado atrás do Palácio das Esmeraldas, é onde o sol se mostra por inteiro. Deveria se chamar Setor Sol.
A caminhada me deu ânimo. Fez-me ver no outro a sua grandeza universal e única. Toquei a campainha. Encontrei meu amigo receptivo. Estava certo de que teríamos uma boa conversa. Sonho com um mundo com mais sol do que espelhos.  
Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados.
quarta-feira, 6 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Amanhecer nos olhos

Procuro meus óculos que se perderam dos meus olhos. Sem eles não vejo além do meu nariz; apalpo letras e palavras escondidas nas pisaduras feitas pelo trote da minha alma. Não sei onde deixei os meus óculos de míope. Será que alguém os guardou como seus? Aviso que eles foram ajustados com lentes para quem enxerga de perto. Nelas estão as minhas digitais que aparecem quando expostas ao sol; impressas com a fisionomia dos meus dedos. Tenho um jeito próprio à maioria da minha geração: o de confiar cegamente no outro.

Pois sou assim. Já tive decepções com esse meu jeito babaca de ver a vida. Mas quem ousa tirar a luz de um capricorniano que nasceu em janeiro, depois do solstício de verão? Por isso quero meus óculos de volta. Procuro por eles em todos os cantos. Não estão em nenhuma gaveta dos armários de casa ou da mesa de trabalho de onde dedilho esta crônica. Também não estão no carro. Já tirei até os tapetes onde eles poderiam se esconder de mim. Talvez cansados da rotina de ver o meu rosto enrugando como jenipapo maduro a espera de um título do Vila Nova.

Quando usei óculos pela primeira vez fui ver um jogo de futebol no estádio Olímpico. Era um jogo do Vila. Foi emocionante distinguir, da arquibancada, a bola branca rolando e a camisa vermelha do meu time. Antes, como num jogo de sombras, as figuras se mexiam sem definição. Eu imaginava que a minha fraca visão era por culpa do sol. Tolice minha culpar o sol pela escuridão.

De noite em casa Deus me pôs na rede para descansar; olhei para o céu. Vi o clarão da lua cheia com jeito de quarto-crescente por causa da visão fraca. Não consegui contar nenhuma estrela. Conformei-me, afinal, não sou fiscal de estrelas. Voltei meu olhar para o livro que lia há duas semanas. De perto eu vejo bem. Li até tarde da noite. Deixei o livro de lado e cochilei. O cachorro vira-lata latiu. Acordei ainda na rede e fui pra cama esperando o dia amanhecer nos meus olhos.

No outro dia levantei cedo. Na varanda, antes do café, chupo um pedaço de melancia. Enterro uma semente no canteiro de onze-horas. Ao recolher a mão percebo uma haste de metal entre os ramos; depois tateio outra haste. Lembro-me de que já havia sentido aquelas hastes entre os dedos. Eram meus óculos. Lá estavam com ar de abandonados e infelizes, como todos os óculos desamparados pelos olhos. É apenas um par de óculos, mas têm no corpo as impressões da vida.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www. raizestv.net)

Lago de nuvens

Sou um mero espectador da alma goianiense. Apanho pela cidade o sentimento humano que nem o tumulto da pressa da metrópole antecipada pelo tempo é capaz de abafar. Nessa fria manhã de abril o termômetro da PUC-Goiás, no alto do Setor Universitário, marca 12°. Embaixo, a neblina cobre o Córrego Botafogo e, forma, neste início de outono, um lago de nuvens. No meio da névoa, a copa de um pé de cajá-manga aparece como uma ilha virtual. Goiânia é uma cidade digna; contemplo-a com paixão. Ando distraído.

Assim, volto no tempo.  Esmiúço casos que me marcam. Vem, no meio das brumas, como as folhas do pé de cajá-manga, a história de Anita, moça nova e bela, casada apressadamente com o Ademar que a estuprou numa noite escura, quando voltava do Instituto de Educação onde era normalista. A história da mocinha não convenceu o delegado machista e a ordem foi casar na polícia. Esse era o costume da época a quem “pulava o corguinho”. O casamento durou só uma semana. O danado do Ademar sumiu do mapa, pois não gostava de trabalhar, quanto mais para sustentar mulher. Apesar de abandonada, isso foi melhor para ela.

Carregava na alma o trauma do abuso sexual perpetrado pelo Ademar e a humilhação a que foi exposta pelo delegado. Anita, serena de caráter, vivia reclusa na casa dos pais. Deixara de estudar com medo das ruas escuras da Vila Nova dos anos 60. Nem saía à porta da rua. Até aparecer o Luiz, quarentão consertador de televisão que ficou rico com sua oficina; novidade no começo da televisão no Brasil. O ofício foi ensinado, por correspondência, pelo Instituto Universal.

Quase analfabeto, fizera só o primário em São Paulo. Mas, vivia bem com o seu negócio. Mesmo ao saber do passado doloroso da moça, apaixonou-se por ela. Com a desculpa de ver a televisão do seu pai, chamou-a para conversar. E, decidido, pediu-a  em casamento. Anita, franca e honesta, respondeu:

- Nunca experimentei o amor. Tive o infortúnio de me casar na polícia e perdi o interesse pelos homens. Talvez porque sempre me vi cercada de pessoas semelhantes ao bandido do Ademar. Como me fez essa proposta, que me honra, aceito o seu pedido. Entretanto, preciso  lhe dizer que não o amo, mas, como ensinou meu pai, não lhe faltarei com o respeito. Sou-lhe grata e a minha vontade será fazê-lo feliz.

Depois dessa confissão o amor de Luiz se juntou a um novo sentimento; a admiração pelo caráter firme de Anita. Muito jovem, mas equilibrada. Em seis meses  já estavam casados. Foram morar num sobrado amplo e confortável da Rua 206. No andar térreo instalou a sua Oficina de Consertos de TV. Anita era a mulher mais feliz das mulheres. Estava casada e esse fato a livrara do prostíbulo da Avenida Bahia. Luiz, por sua vez, com a segurança de uma família, prosperava a olhos vistos. Logo comprou outras casas na Vila. Agradecia a Deus pela decisão de se casar com uma mulher tão dedicada como a Anita. Estava realizado; tinha dinheiro, uma mulher dedicada e uma bela casa.

Raramente saía de casa. Quando ia voltava correndo para o trabalho e aos braços da sua amada. E ela se sentia no céu com as amabilidades do marido. E tudo parecia perfeito no solar da Rua 206...   

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. (www.raízestv.net)

Setor Sol

Hoje fiz uma descontraída caminhada sob o sol do Setor Sul. Fui visitar a biblioteca de um amigo. Ao passar pelas ruas senti umas fisgadas de alerta. Comecei a olhar o outro com boa vontade. Resolvi fazer um teste: sorri e cumprimentei a todos que passaram por mim. Pensei: “um dia, quando o homem for mais cristão, enxergará o próximo com amor”.  A maioria foi receptiva. Poucos foram indiferentes ao meu jeito amigável. Um cara de bigodão passou por mim. Em resposta ao meu cumprimento, sussurrou entre os seus dentes de ouro:
      
- Sujeito esquisito.

Uma mocinha que ia ao colégio, desconfiada, vendo o meu sorriso de bom-dia mudou de calçada:

-Atrevido!

Mais a frente, na Rua 104, encontro Ivo, de cabelos brancos azulados como o algodão de Santa Helena. Tinha uma bengala com uma cabeça de cachorro torneada no alto. Respondeu ao meu gesto com atenção. Perguntou se eu tinha visto uma cachorrinha poodle branca. O nome dela é Fofucha. Gastou preciosos minutos falando da sua vida; tinha filhos e netos adolescentes. Contou que se aposentara como professor da Universidade Federal de Goiás onde foi um dos fundadores do curso de jornalismo.

- É, meu filho, na minha idade o tempo escoa com uma lentidão excruciante.

Vi a luz do dia com outros olhos. A emoção de sentir as pessoas vai comigo, colada à minha pele. O vento me sopra: “fale sobre isso na sua crônica”.  Tomei nota  e continuei andando pelas calçadas desniveladas do Setor Sul.

Num banco da viela escondida do Projeto Cura encontrei uma mulher lendo a Bíblia. Assim que começamos a conversar percebi que estava diante de alguém especial. Dona Luzia, esse é o seu nome, foi contando como aprendeu a ler a Bíblia.

-Sabe, moço, eu só sei ler a Bíblia. Não sei ler mais nada por que nunca fui á escola. Um dia senti uma dor no peito. Estava só no meu quarto de empregada doméstica. Tive a sensação de morte. Num impulso abri a Bíblia e decifrei um versículo. Chorei muito de emoção e espanto. Recebi um milagre de Deus. Juntei uma palavra à outra e me vi atravessando páginas como se nadasse no rio Vermelho da minha Aruanã.

Despedi-me emocionado com a história de Dona Luzia. Dei alguns passos e já estava diante da casa do amigo. O sol do Setor Sul ilumina todos os cantos. O Setor Sul, espichado atrás do Palácio das Esmeraldas,  é onde o sol se mostra por inteiro. Deveria se chamar Setor Sol. Sonho com  um mundo com mais sol que espelhos.

A caminhada me deu ânimo. Fez-me ver no outro a sua grandeza universal e única. Toquei a campainha. Encontrei o amigo que procurava. Estava certo de que teríamos um bom bate-papo.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na fonte TV (www.raizestv.net)

No caminho da festa tem uma cisterna

Atropelo o tempo montado na pressa dos dias globalizados. Depois que me engracei com o jornalismo não tenho tempo para as coisas que gosto de fazer. Por exemplo, uma boa pescaria com os amigos de outrora. Continuo um idealista incurável. Por isso apresento o melhor da minha alma nas inquietações dos outros. Trago o universo dentro de mim; vivo e sofro com o coletivo. Hoje, sem descuidar das cogitações do meu espírito preocupado, o centro das minhas atenções, junto com a família, é a cultura e o jornalismo. Adeus maçonaria!

            Creio em utopias, inclusive num grande projeto de Deus: o homem. O bom sujeito, como a mangaba, só dá frutos a certas alturas. Dizem também que a folha da mangaba  é afrodisíaca. Luiz Baiano, um andarilho que empreguei como caseiro numa pequena chácara na Vargem Bonita posava de conquistador. Sua paixão, além da cervejinha, era a Gercí.  Por causa dela arrastava as asas de galo.

             Patrão, o cangote branquinho dela é branquinho.

             Ela era a mulher do dono da venda na beira da estrada. Luiz passava mais tempo lá do que na chácara. O mato crescia, o cachorro latia e ele nada fazia. Assim passava o tempo. Por causa da sua lerdeza resolvi endurecer. Para vencer na vida tinha que trabalhar mais.

             Patrão, sou um homem do mundo. Já vivi em muitos lugares desse Brasil gigante. Não vou ficar preso aqui por muito tempo, por isso não vou polir as minhas grades. Quero me libertar da prisão da rotina dos lugares. Um dia vou embora com Gercí, aquela do cangotinho branco.

             Fiz cara de zangado. Ele nem ligou para a o que lhe falei. Continuou seu blá-blá-blá...

            Sabe, patrão, a minha meta na vida é não vencer. Se eu vencer me realizo. Se isso acontecer, paro de andar. Gosto de caminhar solto pela vida. Não sei onde será o ponto final da minha história. Os lugares para mim são estações para alcançar outras paragens.

            Calei-me diante dessa maneira de pensar. Mais tarde, depois do seu banho com cheiro de Leite de Rosas, me pediu dez reais para ir à festa de São João na venda do Pato Rouco, do outro lado do córrego Sapé. Isso foi numa sexta-feira à noite. No domingo, ao pôr do sol, ele não tinha voltado. Esperei até dar sono. Dormi preocupado. Na segunda-feira, pela manhã, quando já saía  para trabalhar ele apareceu sujo e arranhado. Nada de grave.

             Patrão, o senhor nem imagina o que me aconteceu. No caminho da venda tinha um buraco de cisterna seca. Caí nele e lá fiquei sem jeito de sair porque era muito fundo. Já estava pertinho da festa. O pior foi ouvir a as risadas de Gercí e não vê-la; enterrado vivo num buraco qualquer. Deu fome, senti frio e fiquei apavorado pensando que não seria encontrado vivo. Para o senhor não duvidar de mim olha aqui os dez reais que me deu. Agora de manhã Zé do Leite ouviu os meus gritos e jogou uma corda. Foi assim que consegui sair daquele lugar.

           Havia inocência na voz em Luiz Baiano; alma quase pura. Isso me comoveu  a ponto de aceitar o seu modo de vida.
          O matagal continuaria a crescer sem ele capinar. A melhor saída seria arrumar outra pessoa para fazer o serviço e deixá-lo livre para cortejar a sua amada. Voltei mais cedo nesse dia.

           Luiz! Ô, Luiz Baiano! Cadê você? 

           Bati à porta do quarto. Silêncio. Um calango apressado estala as folhas secas da guapeva do quintal.  No alto, a sabiá tagarela.    

            O vizinho, fofoqueiro, dá a notícia:

            Luiz Baiano fugiu com a dona Gercí. Deixou o marido e os filhos. Foram embora na sua carroça.

          Nem liguei para a carroça e o cavalo pangaré. No íntimo desejei que fossem felizes.  Luiz continuou sua aventura pelo mundo; destino penoso e lerdo.
          Alguma coisa misteriosa e distante - transcendental - o chama.    


           Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.            

Deixa eu te falar...


No meio da tarde, sol quente de sexta-feira, procuro pôr em pé esta crônica. No intervalo da leitura de um poema de Pio Vargas, a quem Edival Lourenço  diz que “chamou para si as cólicas do mundo”, recebo um e-mail trazendo citações do Goianês. Veio sem o nome do autor; se aparecer o dono dou o crédito. Por via das dúvidas acrescentei alguns termos. Vamos lá, de A-Z.


Anêim! – Ah, não! virou Ah, nêim! É usado em sentido de desagrado.

Arvre– Árvore. 

Bão? Tudo bem? Outra forma usada: Bããão?

Barriga-verde – No Sul é catarinense. Aqui é novato, cru, inexperiente.

Caçar – Procurar. Goiano não procura, caça. Exemplo: Estive caçando você o dia inteiro. Vou caçar ‘os trem’ pra você.

Calçada – Lugar onde passa carro e se colocam mesas de bares e restaurantes.

Chega dói – Chega a doer. Variações: chega machuca, chega arranha.

Chega doeu – Passado de chega dói.

Coca-média – refrigerante de 290 ml, ou seja, o menor da família. 

Corgo – Córrego. Pronuncia-se córrr-go.            

Coró - Mandruvá

Custoso – Teimoso. Exemplo: Esse moleque é custoso demais da conta.

Dar rata – Gafe.

De sal – Salgado. Exemplo: Pamonha de sal.

De doce – Se ‘de sal’ é salgado, então ‘de açúcar’ é doce, certo? Errado. Em Goiás coisas doces são ‘de doce’.

Demais da conta – Gosto muito. Exemplo: gosto disso demais da conta.

Deixa eu te falar – Introdução goiana para um assunto sério. Exemplo: Ô, deixa eu te falar. Depois vem um ritual. E aí, bão mesmo?  E o Goiás, heim? Perdeu! Tem base? É por isso que eu torço pro Vila. Lembra aquele negócio que eu te pedí...

Disco – Salgado frito.

Encabulado – Impressionado. Exemplo: Estou encabulado porque você não percebeu que o Vila é melhor do que o Goiás.

Fi – Filho. Substitui o 'tchê' gaúcho ou o “meu” paulista. Exemplos: Esse é o melhor, fi! Nossinhora, fí! Bão demais da conta!

Final de tarde – Happy Hour aportuguesado.

Galinhada – Galinha cozida no meio do arroz. Não usar este termo no norte do país. Lá, galinhada é outra coisa.

Mais – Substituto goiano para conjunção ‘E’. Exemplo: eu mais o Leonardo Rizzo torcemos pro Vila.

No Goiás – Em Goiás. Variação: na Goiânia.

Num dô conta  - Não consigo, não sei, não quero, não gosto. Exemplos: Num dô conta de imprimir esse imêi. Nun dô conta de ouvir música sertaneja.

Ou quá? Algo como o que? Também pode ser Quá! Você vai ao Goiânia Ouro ou quá?

Pé rachado – Goiano legítimo. Algo como carioca da gema.

Piqui. Pequi. Fruto usado na culinária goiana.

Pit-Dog – Filho bastardo de lanchonete. Mas, o sanduíche é bom demais da conta, sô!

Queijim – Rotatória.

Quando é fé – De repente ou até que... Exemplo: Estava no consultório do dentista ‘ quando é fé’ sai um meninin chorando de lá.

Tá boa? Goianês para tudo Tudo bem?

Tem base? Essa expressão é tão goiana quanto a do ‘pé rachado’. Exemplo, o Atlético tá na semifinal da Copa do Brasil, tem base? Significado: Pode uma coisa dessas?

Trem – Pode ser qualquer coisa, inclusive o trem. “Te amo, trem!”. Ôôô, trem bão!

Uai – palavra sem sentido, como o ‘tchê’ gaúcho ou o ‘vixe’ nordestino. Exemplo: Você vai á festa hoje? Resposta: Uai, vou!

Vende-se – Vende-se o quê? Pode ser qualquer coisa: um casa, um violão, um apartamento, um LP usado ou uma dentadura conservada.

Zóio – Olho. Exemplo: "Olha com o zóio e lembe com a testa".

Volto à tarde pachorrenta deste começo de maio. Um poema de Pio Vargas: “A idade não faz curvas. E não segue em linhas rotas/sua multidão de certezas conduzidas. Alço meu cantil de esperas/ao molde das horas/e as palavras envelhecem rápido/formando rugas no poema. As palavras/elas não existem/ senão para nominar/o velho formato/ de observar o novo.
  
Num canto da mesa o livro O Trono no morro, de José J. Veiga, me espera ansioso. A matéria que suporta esta crônica não tem a leveza do sonho. Mas eu amo o papel do Diário da Manhã.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV, (www.raizestv.net) doracinonaves@gmail.com.