quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Mais sol menos espelhos

Fiz uma descontraída caminhada sob o sol do Setor Sul no começo dessa primavera. Primeiro fui visitar a biblioteca de um amigo na Rua 92-A. Ao passar pelas ruas senti umas fisgadas de alerta nesses tempos em que  violência explícita toca a nossa alama.Tornamo-nos mais sensíveis ao  sofrimento dos outros. Talvez um dia o homem, com o coração aliviado de suas culpas herdadda do paraíso, veja o próximo com generosidade. Segui com o coração cheio de afeto. Sorrindo cumprimentei a todos que passavam. A maioria foi receptiva. Poucos demonstraram indiferença. Mas, alguns acharam meu jeito pra lá de anormal.
Um homem de bigode, cara fechada, passou por mim. Em resposta ao meu cumprimento, sussurrou entre os seus dentes de ouro:    
- Sujeito esquisito.
A mocinha que ia ao colégio, desconfiada, vendo o meu sorriso de bom-dia mudou de calçada:
-Atrevido!
Mais a frente, na Rua 104, encontro Ivo, de cabelos brancos azulados como o algodão de Santa Helena. Tinha uma bengala com uma cabeça de cachorro torneada no alto. Respondeu ao meu gesto com atenção. Perguntou se eu tinha visto uma cachorrinha branca, da raça poodle.
-O nome dela é Fofucha.
Gastou preciosos minutos falando da sua vida; tem três filhos e, hoje, seus netos são adolescentes. Contou que se aposentara como professor da Universidade Federal de Goiás onde foi um dos fundadores do curso de jornalismo.
- É, colega, na minha idade o tempo escoa com uma lentidão excruciante.
Enxerguei a luz daquele dia com outros olhos. A emoção de sentir as pessoas me acompanhou, colada à pele. Continuei andando pelas calçadas desniveladas do Setor Sul.
Num banco da viela escondida do Projeto Cura encontrei uma mulher lendo a Bíblia debaixo de uma quaresmeira sem flores. Assim que começamos a conversar percebi que estava diante de alguém especial. Dona Luzia, esse é o seu nome, foi contando como aprendera a ler a Bíblia.  
-Sabe, moço, eu só sei ler a Bíblia. Nunca fui á escola. Um dia senti uma dor no peito. Estava só no meu quarto de empregada doméstica. Tive a sensação de morte. Num impulso abri a Bíblia. Consegui decifrar um versículo. Chorei muito de emoção e espanto. Recebi um milagre de Deus; pelo alívio da dor e por conseguir ler pela primeira vez.  Juntei uma palavra à outra e me vi atravessando páginas como se nadasse no rio Vermelho da minha infância em Aruanã.
Despedi-me emocionado com a história de Dona Luzia. Dei alguns passos e já estava diante da casa do amigo. O sol do Setor Sul ilumina todos os cantos. O Setor Sul, espichado atrás do Palácio das Esmeraldas, é onde o sol se mostra por inteiro. Deveria se chamar Setor Sol.
A caminhada me deu ânimo. Fez-me ver no outro a sua grandeza universal e única. Toquei a campainha. Encontrei meu amigo receptivo. Estava certo de que teríamos uma boa conversa. Sonho com um mundo com mais sol do que espelhos.  
Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados.

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