quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Glória a ti, Neguinho

Madrugada fria de junho em Goiânia. Mês de céu estrelado.O céu mostra um diadema brilhante a enfeitar os sentimentos matinais. O cheiro de café coado impregna o ar puro da manhã com prenúncio de inverno. Contar estrelas faz a gente se integrar ao universo de Deus. O ar sopra rente a terra, mexe com a água morna do lago formando uma neblina seca, quase transparente. Em forma de incenso a fumaça sobe às estrelas plasmando gotículas brilhantes no firmamento. De madrugada o céu ainda mostra constelações cintilantes como se fossem fogos em festa de São João. O céu de estrelas cobre o planeta. Só é visto quando o céu está limpo. A estrela d’alva, última a abandonar a madrugada, fica pendurada num cordão invisível para anunciar o novo dia. Os galos não cantam mais nas cidades grandes. Foram substituídos pelo despertador do celular com sons metálicos esquisitos. Sorte que no meu toca Wonderful World.
 
Goiânia se espreguiça, pausada e dolorida, com as dores passadas. Abre os braços e se espicha para trás, para a esquerda, para a direita. Isso serve para acordar o corpo. Cada qual, no seu canto, começa a agir para vencer mais um dia. O motorista do ônibus ajeita o seu “colchinile” no banco. Os pontos de ônibus se enchem de pessoas escondidas no lusco-fusco da madrugada. O vizinho  liga o motor do carro, o rádio toca música sertaneja de viola; de manhã não é hora de ouvir sertanejo com guitarra elétrica. O pai apressado veste o uniforme no menino ainda na cama. O pedreiro ajeita  o prumo na sacola; seu nível está abaixo dos patrões. A travessa de pão sai do forno; enquanto o filho do padeiro, num bairro distante do  centro, se aquece com um cobertor sapeca-negrinho. A cidade é despertada pelo barulho de motores e de gente num burburinho uníssono. Como num parque de diversão elétrico tudo começa a se mover nos seus  limites. Os cachorros, sonolentos, se escondem num canto da casa.  Triste sina a dos cães que têm de latir a noite para espantar os  espíritos desocupados.

Os fantasmas se livram das correntes e se escondem com medo da luz que vem rompendo a madrugada. A missa das seis vai começar  na Igreja Matriz de Campinas. Os evangélicos celebrarão o culto dos empresários nos Templos da Fonte da Vida. Mesmo sob o sol, a paz não será completa. O “gata-parir” expulsará os fracos para fora do ônibus.  Filas quilométricas de carros serpentearão pela cidade como se dirigissem ao matadouro. Buzinas, xingatório, cara feia, gestos obscenos. Motos que não respeitam o sinal vermelho. Ainda é madrugada em Goiânia. Uma parte da cidade dorme.

Menos o balconista Neguinho que, às seis horas, já está na lanchonete Biscoito Pereira, na Praça Tamandaré. Levanta cedo para a santa rotina do dia que anima os seus fregueses. Uma lição de alegria e otimismo é boa para começar o dia. Basta ir uma vez ao Biscoito Pereira para que ele saiba o nome e o gosto do freguês. Ele fala sorrindo. Um sorriso franco, amigo, acolhedor.

  -Bom dia, Dr. Marcus. Vou preparar o que o senhor gosta.
 
  Imediatamente serve o habitual.

  - O seu pão-de-queijo e o bolo de fubá.  Agora vai sair o  seu café-com-leite.

Uma sessão de malabarismos acompanha a preparação da bebida que sai quente, espumante, doce. Assim, ele atende a todos. Uma verdadeira aula de atendimento com bom humor. Interessante observar que na Praça Tamandaré o lavador de carros, o engraxate, o barbeiro e o vigia de carros atendem com a mesma gentileza. Será por influência  do Neguinho?

Talvez sim. Glória a ti, Neguinho. Glória ao fogo do teu coração. A madrugada de Goiânia termina com a chegada do sol. O dia poderá ser longo. Depende do humor de hoje. A noite certamente voltará com os seus fantasmas arrastando correntes negras na alma das pessoas. As guitarras estridentes vão gemer nas profundezas dos porões.  Outras madrugadas amanhecerão nos meus olhos.

Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).

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