quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

A pipa azul


Aquele menino magricela, talvez uns 12 anos, espera no início da faixa de pedestres segurando a linha de uma pipa azul com rabiola esvoaçante; a mão direita segura o cabresto de três linhas. Aos seus pés um cachorro vira-latas sentado observa atento os movimentos do menino. Eu estava parado no sinal vermelho no lusco-fusco de um tarde quente no Setor Pedro Ludovico. A tarde vai. Ele passa sobre a zebra pintada no asfalto. O cachorro, fiel, o acompanha. O menino atravessa sem perceber nada à sua volta: carros, a bicicleta do pedreiro cansado da lida, a moto que invade a faixa, o pedestre apressado na volta pra casa depois do trabalho. Nem o saracoteio requebrado da mulata ele viu. Atravessaram a avenida com os olhos no céu pintado com o azul da pipa raia.

Nada era mais importante a ele do que a raia flutuando de um lado para o outro querendo voar. Soltou alguns centímetros da linha presa no cabresto. Ela voou baixo, pouco acima da sua cabeça. O menino, a raia e o cachorro pedrês sumiram atrás dos prédios. Não me lembro de ver um menino tão feliz com o seu brinquedo. Seus olhos alegres ainda estão na minha imaginação. O brilho dos três ficou na rua, preso nas pessoas que assistiram a passagem meteórica do trio.

Por um instante as pessoas ficam encantadas. O mundo para nessa hora. Aquela passagem, perfeita, limpa de toda mácula, se foi sem os pecados da espécie acumulados em gerações reencarnadas.  Uma egrégora radiante invadiu a alma daquele pedaço de mundo. Assim, voltamos todos para casa depois de um dia de trabalho. A alma navega forrada com o brilho de milhões de vaga-lumes.

Antes de retomar a primeira marcha do carro pensei nas mulheres que, à essa hora,  esperam seus maridos; nas mães que esperam o filho chegar do trabalho. E nos dias de hoje, quando a vida é banalizada pela violência, a espera é cruciante.  Vejo uma pequena luz acesa no alto de um edifício no alto do Setor Serrinha. Talvez seja da amada a espera do esposo. Ou de alguém que acende uma luz no entardecer das emoções para ligar o túnel invisível na travessia de noites insones.

Passa um ônibus lotado de gente; difícil saber quem chegava ou ia. O ônibus parou no ponto onde outras pessoas esperavam. Abre as portas e por elas escapam pessoas apressadas. Outras se espremeram para entrar. O trânsito se arrasta lento. Os carros param em fila com as lanternas traseiras já acesas. Uma mulher passa entre os carros. Sequer olha para eles, mas segura firme sua filha pelo braço: “Corra, o ônibus tá no ponto”.

Ainda penso na alegria do menino magricela e sua pipa azul com a rabiola esvoaçante. Ao atravessar a avenida povoada de gente e carros, os três deixaram um rastro de emoção em que as coisas simples do cotidiano da cidade encabrestam a linhas invisíveis das emoções que se ligam no tempo.

Com essa imagem vou para casa igual ao menino que depois de chupar a manga madura fica com o caroço na mão sem saber o que fazer. A pipa é leve. Vou embora sem pressa.  Ainda é cedo.

Doracino Naves é jornalista.
(Texto publicado originalmente em 14/07/2011 e republicado em 04/10/2014 no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás)

0 comentários:

Postar um comentário