quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Teclas de Deus


Ela já esteve nos braços do Marlon Brando, sentiu as baforadas da piteira de Tenesse Williams, astro da literatura, dos palcos e do cinema. Nélson Rodrigues deixou suas digitais no corpo da discreta musa. Porém, num triscar de dedos, desanda a falar até eles se cansarem de tocar as suas partes secretas. Clarice Lispector foi sua amiga íntima. Despois de um encontro das duas, sussurrou desiludida: “Eu escrevo sem esperança de que o que escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada...”. Millôr Fernandes confessou, sem pudor, depois de tanger suas curvas debochadas: “Escrevo porque escrevo, se me pagassem eu só falava”.
                      
Essa falastrona passou noites na companhia de poetas, jornalistas e escritores. Certa feita dormiu em cima de um telhado, na Praça São Pedro, com um repórter do Time-Life; esperavam o anúncio do novo papa. Submissa, aceita ficar em qualquer lugar no mundo, mas quando é provocada grita; até fala palavrão. Também louva a Deus para na difícil tarefa de interpretar o pensamento do homem.
                    
Despudorada ou santa vê o seu fim chegando com a brisa do novo milênio. Veio ao mundo depois do pincel, da pena e do lápis. Seus neurônios passaram a vida dando saltos na frente de homens e mulheres; em profunda e sincera comunhão de sentimentos e opiniões. Atraente, de curvas sinuosas, ainda chama a atenção dos seus amantes mais fiéis que não a abandona por nenhum computador de mesa, laptop ou IPad.  Só os perfeccionistas arriscam trabalhar com ela. Se alguém errar terá de se humilhar e, indiscutível, confessar o erro já marcado numa imaculável folha de papel. Estou falando da máquina de escrever que chegou ao fim de sua ventura na terra; a última fábrica foi fechada, ano passado, na índia.
                   
É melancólico ver o fim da linha de um objeto tão obediente e submisso. Suas teclas tocam a fita rubro-negra ao impulso dos dedos; a alavanca se move de um lado ao outro na incansável busca do texto preciso; ora hesitante, ora com a certeza majestosa dos deuses. O som metálico das teclas vararam milhões de noites em busca do texto ideal. Das grandes invenções do homem, a máquina de escrever é a que mais fielmente traduziu seus sonhos e desejos; nas peças de teatro, roteiros de cinema, literatura, cartas de amor, letras de música e hinos, recados mal criados, relatórios técnicos, fórmulas de invenções que mudaram o rumo das coisas.               
                   
Desbancada das editorias dos jornais a máquina de escrever se transforma, sem dó nem piedade, em peça de museu. Menos nas prisões dos Estados Unidos onde é proibido usar o computador. Lá, numa população de mais de dois milhões de detentos a máquina de escrever ainda é útil. Porque a máquina de escrever só tem uma função: escrever. Assim, o presidiário não é tentado a usar a internet ou responder e-mails.
                
Há um sentimento voyeurista, à Alfred Hitchcock em sua Janela Indiscreta,  ao abrir a caixa de uma máquina de escrever portátil. Curvas, ponto g, o requebrado rítmico das teclas que, ao serem tocadas, revelam a palavra secreta guardada no coração. A mobilidade dessa máquina itinerante impressionou o mundo de guerra e paz; foi a janela indiscreta de jornalistas e escritores para contar as atrocidades do front.
              
Tenho a esperança de que o que escrevo ajude a decifrar a alma dos objetos. Quando for ao encontro da eternidade serei guiado pelas teclas de Deus que escreve o nosso destino num imenso e infalível livro.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2013).
           
Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).

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