quarta-feira, 6 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Lago de nuvens

Sou um mero espectador da alma goianiense. Apanho pela cidade o sentimento humano que nem o tumulto da pressa da metrópole antecipada pelo tempo é capaz de abafar. Nessa fria manhã de abril o termômetro da PUC-Goiás, no alto do Setor Universitário, marca 12°. Embaixo, a neblina cobre o Córrego Botafogo e, forma, neste início de outono, um lago de nuvens. No meio da névoa, a copa de um pé de cajá-manga aparece como uma ilha virtual. Goiânia é uma cidade digna; contemplo-a com paixão. Ando distraído.

Assim, volto no tempo.  Esmiúço casos que me marcam. Vem, no meio das brumas, como as folhas do pé de cajá-manga, a história de Anita, moça nova e bela, casada apressadamente com o Ademar que a estuprou numa noite escura, quando voltava do Instituto de Educação onde era normalista. A história da mocinha não convenceu o delegado machista e a ordem foi casar na polícia. Esse era o costume da época a quem “pulava o corguinho”. O casamento durou só uma semana. O danado do Ademar sumiu do mapa, pois não gostava de trabalhar, quanto mais para sustentar mulher. Apesar de abandonada, isso foi melhor para ela.

Carregava na alma o trauma do abuso sexual perpetrado pelo Ademar e a humilhação a que foi exposta pelo delegado. Anita, serena de caráter, vivia reclusa na casa dos pais. Deixara de estudar com medo das ruas escuras da Vila Nova dos anos 60. Nem saía à porta da rua. Até aparecer o Luiz, quarentão consertador de televisão que ficou rico com sua oficina; novidade no começo da televisão no Brasil. O ofício foi ensinado, por correspondência, pelo Instituto Universal.

Quase analfabeto, fizera só o primário em São Paulo. Mas, vivia bem com o seu negócio. Mesmo ao saber do passado doloroso da moça, apaixonou-se por ela. Com a desculpa de ver a televisão do seu pai, chamou-a para conversar. E, decidido, pediu-a  em casamento. Anita, franca e honesta, respondeu:

- Nunca experimentei o amor. Tive o infortúnio de me casar na polícia e perdi o interesse pelos homens. Talvez porque sempre me vi cercada de pessoas semelhantes ao bandido do Ademar. Como me fez essa proposta, que me honra, aceito o seu pedido. Entretanto, preciso  lhe dizer que não o amo, mas, como ensinou meu pai, não lhe faltarei com o respeito. Sou-lhe grata e a minha vontade será fazê-lo feliz.

Depois dessa confissão o amor de Luiz se juntou a um novo sentimento; a admiração pelo caráter firme de Anita. Muito jovem, mas equilibrada. Em seis meses  já estavam casados. Foram morar num sobrado amplo e confortável da Rua 206. No andar térreo instalou a sua Oficina de Consertos de TV. Anita era a mulher mais feliz das mulheres. Estava casada e esse fato a livrara do prostíbulo da Avenida Bahia. Luiz, por sua vez, com a segurança de uma família, prosperava a olhos vistos. Logo comprou outras casas na Vila. Agradecia a Deus pela decisão de se casar com uma mulher tão dedicada como a Anita. Estava realizado; tinha dinheiro, uma mulher dedicada e uma bela casa.

Raramente saía de casa. Quando ia voltava correndo para o trabalho e aos braços da sua amada. E ela se sentia no céu com as amabilidades do marido. E tudo parecia perfeito no solar da Rua 206...   

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. (www.raízestv.net)

0 comentários:

Postar um comentário