quarta-feira, 6 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Amanhecer nos olhos

Procuro meus óculos que se perderam dos meus olhos. Sem eles não vejo além do meu nariz; apalpo letras e palavras escondidas nas pisaduras feitas pelo trote da minha alma. Não sei onde deixei os meus óculos de míope. Será que alguém os guardou como seus? Aviso que eles foram ajustados com lentes para quem enxerga de perto. Nelas estão as minhas digitais que aparecem quando expostas ao sol; impressas com a fisionomia dos meus dedos. Tenho um jeito próprio à maioria da minha geração: o de confiar cegamente no outro.

Pois sou assim. Já tive decepções com esse meu jeito babaca de ver a vida. Mas quem ousa tirar a luz de um capricorniano que nasceu em janeiro, depois do solstício de verão? Por isso quero meus óculos de volta. Procuro por eles em todos os cantos. Não estão em nenhuma gaveta dos armários de casa ou da mesa de trabalho de onde dedilho esta crônica. Também não estão no carro. Já tirei até os tapetes onde eles poderiam se esconder de mim. Talvez cansados da rotina de ver o meu rosto enrugando como jenipapo maduro a espera de um título do Vila Nova.

Quando usei óculos pela primeira vez fui ver um jogo de futebol no estádio Olímpico. Era um jogo do Vila. Foi emocionante distinguir, da arquibancada, a bola branca rolando e a camisa vermelha do meu time. Antes, como num jogo de sombras, as figuras se mexiam sem definição. Eu imaginava que a minha fraca visão era por culpa do sol. Tolice minha culpar o sol pela escuridão.

De noite em casa Deus me pôs na rede para descansar; olhei para o céu. Vi o clarão da lua cheia com jeito de quarto-crescente por causa da visão fraca. Não consegui contar nenhuma estrela. Conformei-me, afinal, não sou fiscal de estrelas. Voltei meu olhar para o livro que lia há duas semanas. De perto eu vejo bem. Li até tarde da noite. Deixei o livro de lado e cochilei. O cachorro vira-lata latiu. Acordei ainda na rede e fui pra cama esperando o dia amanhecer nos meus olhos.

No outro dia levantei cedo. Na varanda, antes do café, chupo um pedaço de melancia. Enterro uma semente no canteiro de onze-horas. Ao recolher a mão percebo uma haste de metal entre os ramos; depois tateio outra haste. Lembro-me de que já havia sentido aquelas hastes entre os dedos. Eram meus óculos. Lá estavam com ar de abandonados e infelizes, como todos os óculos desamparados pelos olhos. É apenas um par de óculos, mas têm no corpo as impressões da vida.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www. raizestv.net)

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