segunda-feira, 25 de abril de 2011 | By: Doracino Naves

Loucos na rua, doidos no céu

Assunto de doido chama doido. É um mistério a teoria da probabilidade. Na crônica de sábado passado falei sobre doidos. Nesse dia, antes do nascer do sol, acordo numa mesinha na Hutti Panificadora, na Rua 83, Setor Sul. Sobre a mesa um cestinho de pão-de-queijo com leite, café e o Diário da Manhã. Surgem do desvario do tempo amareladas lembranças do Sanatório de Palmelo e do Hospital Adauto Botelho de Goiânia.
          
Antes de começar a ler alguém chama a minha atenção.  Sem ao menos olhar rejeito a inoportuna visita, justo na hora de conferir as notícias do jornal. Mesmo a contragosto, me virei. Vi no primeiro plano dos olhos uma figura intrépida com trajes desalinhados de doido. Até pra ser doido ter que ter estilo. Esse tinha um figurino fashion, peculiar de doido. Um gorro encardido na cabeça dava-lhe uma aparência nobre. Não fosse a sujeira dos trajes poder-se-ia dizer que era um lorde inglês curtindo o frio europeu.
         
Aliás, mais louco do que os ingleses só os americanos com a mania de dominar o mundo. Deixa para lá, porque a loucura em dominar o outro é da natureza do homem que, incapaz de conter sua natureza e impedir o seu destino inexorável rumo à morte, se traveste de Napoleão. O doido realmente doido é livre. Mas, não joga pedra no vizinho. Quem faz isso é o maluco do homem lustroso.
         
Outro dia ao me encontrar com um conhecido antigo caí na bobagem de perguntar.
          
 -Tudo bem?
         
Ele emendou dizendo que nada ia bem. Que os governos, os políticos, a televisão, a imprensa, são todos da mesma laia. E toma conversa mole: pa...ta...tí. pa...ta...tá...
         
- Sabe, o mundo não tem jeito. Nem Deus é capaz de ajustar o homem.
        
Ouvi calado o azedume daquele homem com o seu fiel guarda-chuva preto fechado sobre o braço. Rubem Braga já dizia que o guarda-chuva é o objeto mais infenso a mudanças. Molhado com respingos da chuva recente, até o guarda-chuva do homem maluco estava choroso.
        
-Bem, está quase na hora do banco fechar e tenho de chegar antes.  Despedi-me dizendo como digo a todos.              
        
- Some, não!
        
- Não vou sumir, mas, sabe por que sumi por uns tempos? Minha mulher e meus filhos me deixaram e eu fiquei só. Ingratos que são! Imagine que eles ainda...
          
 Não esperei o resto da história. Saí depressa pra longe do homem com guarda-chuva de cabo preto atirando pedras no próximo. Bem diferente daquele doido da panificadora que não se sente rejeitado pelo mundo. Agarrava-se a um pacote compacto que trazia nas mãos.
          
- Moço, eu quero um dinheiro pra comprar óleo e pinga. A carne eu ganhei do dono do açougue. Agora, preciso de um dinheirinho para comprar o resto.
          
-Olha, moço - senti-me leve por ele me chamar de “moço”- não quero dinheiro pra comprar droga, porque não sou maluco para usar isso. O que eu quero mesmo é comprar óleo e, se der, comprar um real de pinga.
          
Antes de racionalizar já estava com uma nota de dez reais na mão. Entreguei o dinheiro. Ele saiu com passos longos e apressados. Sua roupa balançava ao vento; dizia palavras desconexas. Mas, só ele, de ouvidos afinados pela doidice santa, escutava a voz que soprava dos confins da sua alma. Assentia solícito ou repreendia aos espíritos invisíveis com gestos e palavras soltos ao vento. Uma abrisa estranha soprou contrária.
       
Vou mudar de assunto. Com doideira não se brinca. Adeus, assunto de doido.
           

Doracino Naves - Jornalista, cronista do Diário da Manhã e diretor e apresentador do Programa Raízes Jornalismo Cultural.

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