terça-feira, 17 de dezembro de 2013 | By: Doracino Naves

Irmão coragem

Estava entrando na panificadora Canadá quando Wilton Cerqueira me pergunta se fui amigo de Santillo. Respondo sim. Na verdade, ocupei dois cargos de menor importância no seu governo. Ser amigo de Henrique Santillo – coisa que não fui, mas gostaria de ter sido - é uma honra, porque ele é exemplo irretocável do político ousado, coerente e honesto.

Sua luta inspirou muita gente nesse rumo. Cerqueira, esse amigo certo de Santillo, continua sendo uma espécie de anjo da guarda dos parceiros do ex-senador e ex-ministro da saúde. Enquanto governador de Goiás Henrique enfrentou períodos muito difíceis na sua administração: a inflação do governo Sarney, o Césio 137 e o fogo amigo que barrou as verbas federais destinadas a Goiás nesse período.
        
Tenho boa lembrança do irmão coragem do MDB; um político destemido e culto. A essa virtude se somam a generosidade e o bom caráter da sua personalidade que, com carinho, foi o médico e enfermeiro da esposa, Sônia, enquanto ela esteve doente. Também cuidou da casa e da cozinha; porque dinheiro para pagar empregados já não havia.
       
Talvez essa tenha sido a causa do abandono da maioria dos amigos. Marconi Perillo, depois de eleito governador, devolveu-lhe um pouco da merecida dignidade ao indicá-lo para o Tribunal de Contas do Estado. Sofreu na carne e na alma a verdade intolerável dita por Nelson Rodrigues: o amigo não existe. Viveu sua solidão política na companhia da esposa indispensável em sua vida; “a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal”.
      
Agradeço a Deus pelos amigos que conversam comigo no restaurante, no velório, na esquina, no supermercado, na padaria. Amei a conversa agradável com o Dr. Wilton sobre Henrique Santillo. O melhor amigo é aquele com quem cruzamos por um instante. Assim, sem altercações, podemos ser cordiais um com o outro e falar de amenidades. Como disse o autor de Vestido de noiva, o trágico na amizade é o dilacerado abismo da convivência.
     
Despedi-me de Cerqueira; pensei na finitude. Dizem que na hora da morte a gente se lembra de coisas boas ou tristes. A visão da rua em frente à panificadora fica embaçada, e desejei que tudo que ouvira não tivesse acontecido. A morte deve ser assim; todas as aflições se apagam e se dissolvem na vida futura de desejadas virtudes.
      
Olhei novamente a rua e, através da chuva fina, adivinhei prédios, homens e mulheres com guarda-chuvas e sombrinhas.
      
Percebi, então, que o meu mundo é real e gritante.  Tudo aqui é visível, inclusive a canalhice na política e, agora, no futebol.
     
Santillo é a própria imagem do político correto, e não o esquecerei tão cedo.

   
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013 | By: Doracino Naves

Romanceiro de Goiânia III

Ao abandono da Avenida Anhanguera deve-se creditar o desprezo às praças construídas ao longo do seu curso: da Bíblia, do Botafogo, do Bandeirante, das Mães e a Praça OK.  A memória da cidade foi jogada num corredor estreito que confina o cidadão a andar espremido entre os ônibus lotados e as grades irônicas dos currais de ferro. Um metrô por baixo da Anhanguera vai devolvê-las ao povo.

  Essa ideia de um metrô por baixo da Avenida Anhanguera me faz sonhar com a Goiânia do futuro com os olhos voltados à sua vocação artística. Pois é, a nossa capital foi inaugurada em 5 de julho de 1942 sob a proteção de um Batismo Cultural.

   É por essa causa que Goiânia incorpora a alma cerratense das pessoas simples e bacanas do interior.  Nion lhe ofereceu flores; Iris presenteou-lhe com os brinquedos do Parque Mutirama e Manoel dos Reis soltou foguetes todos os dias para dizer que aqui tudo pode ser alegre e puro.

   Outro foi quem idealizou a excrescência da atual avenida e passou o rodo em mais de 60 anos de história. Depois das duas crônicas anteriores, mais a de hoje, não voltarei a falar sobre o metrô da Avenida Anhanguera. Nunca mais! Mesmo quando sentir esse espírito futurista e polifônico que me levaram a escrever a série Romanceiro de Goiânia.  Estou com os olhos cansados, mas continuo a ver a cidade com a trôpega percepção dos sentidos.

   Fernando Pessoa escreveu assim (gosto de pensar que foi para mi m):

  “Que pena tenho dele! Ele era um camponês/Que andava preso em liberdade pela cidade/Mas o modo como olhava para as casas/E o modo como reparava nas ruas/E a maneira como dava pelas coisas/ É o de que quem olha para as árvores/É de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando/E anda a reparar nas flores que há pelos campos...Por isso ele tinha aquela tristeza/ Que ele nunca disse bem que tinha/Mas andava na cidade como quem anda no campo/E triste como esmagar flores em livros/ E pôr plantas em jarros...”  

    Tantas coisas me acontecem na vida que fico na dúvida para separar a realidade. Então, escrevo sobre as correntes do que vejo e percebo em tudo;  tento registrar isso da forma mais verdadeira e fiel possível. Uso essa abordagem ars poetica nas minhas crônicas como um ato de fé sem a pretensão de teorizar ou fazer filosofia.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 30 de novembro de 2013).

      Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 24 de novembro de 2013 | By: Doracino Naves

Romanceiro de Goiânia II

Quando Pedro Ludovico avistou essas paragens pela primeira vez nada existia por aqui. Mas  já tinha a floresta, bichos, pequizeiros em flor e nascentes de águas puras; daquelas que se pode beber no escuro;  vaga-lumes tinha aos montes.  As nascentes formavam córregos e veredas derramando suas águas no Rio Meia Ponte.  O Meia Ponte deve ter encantado Pedro Ludovico como o Tejo iluminou a poesia de Fernando Pessoa. Do mesmo modo que os cientistas não sabem precisar o que havia antes do Big Bang, Pedro Ludovico não conhecia Goiânia antes da primeira visita. Deus já havia criado  o tempo seco e úmido do cerrado com o sol a iluminar o dia; e a sucessora lua pajeando o sono do astro rei.  O relógio do tempo só seria ligado em 24 de outubro. Alguns dizem que foi em cinco de julho.  Não importa; a vida e os amores só brotariam com a construção dos prédios e as ruas rasgadas no ventre da terra vermelha.
     
Pedro Ludovico apresentou a cidade virgem a Atílio Correia Lima que lhe pôs formas, curvas e a retilínea Avenida Anhanguera, desenhada sob a rota do sol. Pedro incumbiu Atílio a planejar Goiânia para ela nunca mais voltar a ser mata; a mesma missão do Atlas da mitologia grega que carrega o universo nas costas para o caos do universo não voltar. O descaso com a Avenida Anhanguera é o caos urbano mais impactante da capital. Planejada para cinqüenta mil habitantes a cidade sonha com um pretendente a orientar o seu crescer sem abafar a magia da tradição.
   
O primeiro namorado a escrever longas e apaixonadas cartas foi Venerando de Freitas Borges; Pedro o fez prefeito. Venerando morreu no começo dos anos noventa.  Até hoje a cidade procura outro que respeite sua origem de cidade sonhada por Dom Bosco.  E a Avenida Anhanguera pode ser a coluna principal do seu desenvolvimento sem perder sua missão.
   
Na crônica passada sugeri a construção de um metrô por baixo da Avenida Anhanguera, em toda a sua extensão de quase quinze quilômetros. Com isso apareceria, no leito atual, um amplo Centro de Arte e Cultura com carros circulando como é hoje. A rede de lojas e serviços funcionaria melhor sem ônibus cuspindo fumaça e atrapalhando a circulação dos pedestres. E o melhor da história é que toda a estrutura desse amplo centro cultural e o shopping a céu aberto já está pronta. O custo mais vultoso é a construção de um metrô. Um dia isso terá de acontecer. 
  
O metrô é uma exigência de uma capital do porte de Goiânia. Teresina, menor, tem um com mais de treze quilômetros. E Goiânia fica nessa lengalenga de ônibus vagarosos parando nos cruzamentos.  

O leito da Avenida Anhanguera, nessa ideia, deverá ter nova arquitetura para agradar a população e os segmentos importantes da sociedade.
     
Na Praça da Bíblia poderá ser construído um monumento digno do Livro Sagrado; na última estação o justo tributo ao santo católico Padre Pelágio; na Vila Nova, pode ser feita uma extensão de acesso à Federação Espírita de Goiás.
    
Na 5ª Avenida, no Setor Universitário, um braço avança até a Praça Universitária; ali está o maior museu à céu aberto do estado, com esculturas dos melhores artistas de Goiás.
    
Dois teatro estão ao longo da Avenida Anhanguera: o Teatro Goiânia e o Teatro Inacabado, sem contar o Goiânia Ouro e o Teatro Rio Vermelho, nas ruas 3 e 4, paralelas à Avenida Anhanguera. Dezenas de shoppings populares foram instalados na principal avenida comercial de Goiânia. Perto da Anhanguera foi erguido o Centro de Cultura e Convenções.
      
No cruzamento da Avenida Goiás está a Praça do Bandeirante de inflamados discursos políticos de outrora. À esquerda, talvez a menos de um quilômetro, a Praça Cívica com o Palácio das Esmeraldas; à direita, equidistante, a Praça do Trabalhador onde foi construída a antiga Estação Ferroviária; tombada pelo patrimônio histórico nacional.  
      
No meio do caminho tem o Bosque dos Buritis, o Lago das Rosas e o Zoológico de Goiânia.
    
 E a Avenida Anhanguera se transformando no maior Centro de Arte e Cultura do Brasil; por baixo o metrô cruzando a cidade de leste a oeste, no desenho iluminado do sol riscando de luz a alvorada e o poente.
     
Vou encerrar minha crônica de hoje de forma diferente. Com um poema de Pablo Neruda: “AMIGO, leva contigo o que queiras/penetra o teu olhar sobre os rincões/e se assim desejares, dou minha alma inteira/com suas brancas avenidas e suas canções”.



(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em 23 de novembro de 2013. Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. wwwprogramaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
        
segunda-feira, 18 de novembro de 2013 | By: Doracino Naves

Romanceiro de Goiânia

 Cadê a Goiânia antiga? Escondida. Talvez envergonhada com a falta de romantismo dos tempos de hoje. O crescimento desordenado e a falta de um projeto que contemple todas as regiões da cidade tornaram-na caótica, encardida. Quem anda pela Avenida Anhanguera, passando pelos setores Rodoviários, Aeroviários e Bairro Capuava, vê essa parte da cidade com a aparência de cidade fantasma. A maioria dos prédios, com portas sujas e arriadas, está à venda. Se a gente andar mais vai encontrar outros pontos com esse aspecto sombrio de desamparo. Muitas pessoas se impressionam com os bairros e as regiões novas que se desenvolveram dentro do conceito moderno que isola as pessoas em carros com vidros escuros; cada um no seu canto.
          
Um exemplo é a região que começa no Jardim Goiás até o viaduto dos condomínios horizontais. Ali tudo é organizado, mas sem lugar para o encontro de pessoas; as ruas foram arquitetadas para passear de carro. As casas, fortalezas que isolam as pessoas em nome da segurança física, são assépticas e vazias; sem terreiros para plantar jabuticaba. Os jardins, criados para agradar aos olhos, revelam-se estéreis na intenção de unir gente pelo prazer estético; permanecem exclusivos dentro das muralhas inexpugnáveis.
          
Algumas partes da cidade são profanas e caducas. A Avenida Anhanguera é uma prostituta formada em Paris que vive no baixo meretrício. Com aparência de puta pobre a Avenida Anhanguera sente que o glamour dos anos passados pode voltar quando alguém se encantar novamente com ela. A Avenida Anhanguera precisa de um namorado. Planejada por Atílio Correia Lima, inspirado na arquitetura de cidades europeias, esta avenida faz o curso do sol - de leste a oeste - percorrendo quase quinze quilômetros da BR-153 ao Terminal Padre Pelágio. É a via mais importante de Goiânia.
           
Seus tapumes e placas, como se fossem roupas desajustadas, escondem belas fachadas. A última reforma da avenida, feita em 1998 por um governador maluco, é um desastre visual. Foi construída uma via exclusiva de ônibus; os carros espremidos entre a calçada e barras de ferro e, o pedestre, coitado, nem foi ouvido.  
           
A solução atual é construir um metrô por baixo da avenida. Assim, na superfície, pode ser criado um modelo de  boulevard que contemple carros, comércio e pessoas. Nos terminais - contei sete - podem ser criadas estações culturais. Isso resolve o problema do transporte coletivo e uma nova opção de lazer será entregue à população. E o belíssimo Lago das Rosas, com muretas em Art déco, pode ser integrado a esse conjunto.
           
A ideia não é tirar os carros da avenida e nem eliminar os atuais cruzamentos. Resumo: metrô embaixo e a Avenida Anhanguera de volta ao seu projeto original no formato de um Centro de Arte e Cultura – poderia ser batizado com o nome de Atílio Correia Lima –  com amplas possibilidades de diversão. Bem maior do que Centro Cultural Dragões do Mar, em Fortaleza.
            
Nossa Goiânia antiga está abandonada, mas livre para arrumar um namorado bacana.

(Publicada no jornal Diário da Manhã -DMRevista - Goiânia - Goiás em 16 de novembro de 2013).

                 Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do Programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.               
quinta-feira, 10 de outubro de 2013 | By: Doracino Naves

Moro na possibilidade

 Passei toda a minha infância no campo e em cidades pequenas; extensões urbanas da área rural. A maior parte da minha vida, até agora, foi entre pessoas com boa atitude cultural. Aprendi a ler com professores dedicados numa modesta escola de Palmelo; o primeiro livro, na falta de obras literárias, foi o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec; ganho no sorteio do grupo Soldadinhos de Deus; idealizado no Brasil por Alziro Zarur.

     A primeira coisa que escrevi, pensando que já sabia alguma, foi uma ordinária peça de teatro encenada no pátio da escola com atores mirins improvisados. Quem dirigiu essa turminha foi a professora Madalena; filha ou nora de Jerônimo Candinho, conceituado líder espírita da região.  Essa peça tinha uma ou duas páginas escritas à mão num surrado caderno de caligrafia. A inspiração, para escrever algo assim, veio das radionovelas da Rádio Nacional do Rio de janeiro. No rádio tudo é possível; podemos imaginar o que quisermos; o rádio é nosso. A voz bonita poder ser de um galã ou de uma donzela; o jardim descrito pelo narrador tem o formato e as cores que imaginamos. Depois disso escrevi alguma coisa tipo A Vida Espiritual dos Jovens de Palmelo, a pedido do diretor da Juventude Eurípedes Barsanulfo.

       Nessa época eu tinha cerca de nove anos; fui um exemplar Soldadinho de Deus até ser pego, junto com meia dúzia de outros garotos neófitos, fumando um maço inteiro de cigarros Urca, à beira do córrego Caiapó. Fumávamos todos os cigarros para não voltar para casa com nenhum deles. Mesmo assim fomos descobertos baforando. Levei a maior surra de meu pai com um chicote trançado de couro cru. A sova me fez mudar o prumo da vida; dois anos depois minha família se mudou para Goiânia. Não foi por esse motivo, mas já passava da hora de me tornar adulto. Deixei essa ideia de escrever e fui trabalhar. Pois é, as pessoas diziam: quem escreve é desocupado. 

       Até hoje penso que escrever me toma um tempo precioso em que poderia dedicar a atividades sérias. Por isso, jamais comento com alguém sobre o que escrevo. Assim, ganho tempo para escrever o que quero fugindo de explicar o que escrevi. A respeito desse assunto Wilian Falkner disse bem: “Não sou um literato, e sim um escritor. Conversa fiada não me dá nenhum prazer”. Leio de tudo que chega às minhas mãos, até bula de remédio.  

       Prefiro poesia à prosa; enquanto prosa, que ela seja poética. Com a poesia posso calcular o peso do vento que agita a enorme bandeira hasteada no mastro da Praça Cívica; a medida exata das chuvas que rega os jardins de Goiânia; descubro na poesia o caminho tortuoso dos relâmpagos ou os decibéis do ribombar dos trovões no alto da serra. Por falar em som, toda vez que ouço tocar o sino da Catedral Metropolitana de Goiânia, às seis da manhã, vejo Anthony Quinn - o Quasimodo Corcunda - saindo da Igreja de Notre-Dame de Paris com o coração acelerado de amores pela bela Gina Lollobrigida, a doce Esmeralda. Dickinson explica melhor a sua preferência pela poesia: “Moro na possibilidade/Casa mais bela que a prosa/Com muito mais janelas e bem melhor, mais portas”.  

         Respiro esse ar úmido das chuvas recentes; às vezes tenho a impressão que vivo numa cidade estranha e respiro um ar que não é meu; julgo que nem o mereço. Ando pelas ruas cheias de gente apressada, homens afoitos que nem olham a esposa nos olhos e penso numa cidadezinha no interior ou no convívio com a pureza do roceiro que vive no campo; onde uma pessoa olha para outra sem o sentimento de estar cometendo um crime.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 05 de outubro de 2013).

          Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

sábado, 28 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Luz de Setembro - por Doracino Naves


Dedicado à Soraya Naves
Amanhã, domingo, é aniversário de Soraya. Durante nove meses - do verão chuvoso de dezembro à primavera de águas temporãs do setembro vindouro - cresceu no ventre da mãe para vir ao mundo e acender a luz na vida de muita gente. No primeiro dia vinte e nove da primavera ela chegou protegida por uma majestosa aura celeste; cabelos loiros cacheados e olhos verdes; nas cores da estação em que Deus escolhera para ela nascer. O ano?

Prefiro não falar. Não sou doido para fofocar a idade de uma mulher, mesmo sendo a da minha filha que tem jeito de festa e música caipira dentro da alma. Um anjo de madeixas aneladas que iluminam os meus anos, até naqueles de interminável inverno cachaçal. Isso, graças a Deus, passou.  Hoje tenho esse jeito abstêmio de quem não bebe conhaque - "eau de vin" - nem no frio chileno de zero grau.

O inverno de 2013 foi embora de Goiânia no dia combinado com a natureza; revogado sem piedade pelo eterno vai-vem das estações. O consolo é que o calor dessa primavera garante, logo nas primeiras chuvas, que o cerrado goiano vai florir; espero que chova logo, senão a vaquinha leiteira terá que desmamar o bezerro.

Vejo que o céu está pintado com tinta mais azul; o sol vermelho faísca luzes nas frestas de Libra. Às vezes percebo nuvens de algodão penduradas por fios invisíveis. Vai ver que as nuvens também são invisíveis; tenho essa mania de ver coisas irreais quando escrevo.

Mas a filhota Soraya é real. E é linda como é o jardim do cerrado depois das chuvas serôdias.  

Enquanto isso, as cigarras preparam a garganta para recomeçar o cântico ancestral até explodir suas entranhas e sua pele seca ficar grudada no lugar do último canto. A primavera é a invenção do tempo para colorir o mundo, assim como Deus concede a graça da misericórdia para perdoar nossos pecados.  Assim, Soraya, as águas da estação da chuva primaveril hão de chegar com a certeza de bênçãos abundantes em tudo que você fizer.

Peço a Deus para que não perca nunca esse seu jeito bondoso de lidar com as pessoas; o sossego de caçula desmamada que se acomoda com doçura nos braços da mãe. E se aquieta no aconchego de uma eterna canção de ninar.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 28 de setembro de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.       


quarta-feira, 25 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Dança da primavera

     Na semana passada eu parei a minha crônica no meio da história que me contava o amigo Walterson; no mesmo instante em que ele suspirou fundo como se buscasse força para contar o desfecho do seu caso. “Mais uma primavera cruza o meu rio”, pensei enquanto caminhávamos em volta do Parque Areião. Walterson olhou em volta e continuou.

      ... E a minha esperança de falar com a mulher da foto surgiu com o bilhete rabiscado num pedaço rasgado do saquinho de pipocas: “Domingo, seis da tarde, na Feira do Sol, ao lado dos quadros de pintura”. Fiquei aliviado mesmo não sabendo nada sobre ela, exceto o que me falara o coração. Mas coração apaixonado quase sempre se engana.

       Antes do horário marcado eu já estava lá vestido na melhor roupa.  Ela chegou caminhando lentamente; parecia flutuar sobre a calçada. Uma brisa suave evoluiu até o vento assoviar através das cordas de segurança das barracas dos feirantes. Trajava um vestido simples, de rendas brancas com uma fina corrente de ouro a sustentar uma pequena medalha de Nossa Senhora sobre o decote discreto. Calçava sandálias de cor rosa suave; saltos baixos moldurando pés delicados. Seu corpo exalava um perfume suave e agradável.

         Essa visão deixara para trás a esquina das lembranças trêmulas do meu passado; luzes delirantes de lamparinas antigas cambaleantes nas brumas da minha infância em Mossoró. Desde então atravesso morros e planícies do viver com o coração em brasas. Aquela mulher me fez tirar do milharal caído o espantalho inútil das más recordações. Naquele dia seu corpo bailou em minha direção como se encenasse a suave dança da primavera.

        Cumprimentei-a com reverência; convidando-a a caminhar pela praça tumultuada. Disse-me que não poderia demorar muito, pois tinha compromisso na igreja. Pedi-lhe mais informações sobre a sua vida. Disse-me que estudava no Instituto de Educação, que o seu sonho era ser  professora. Estava solteira e recebia uma pequena mesada para custear os seus estudos. Morava numa república de estudantes perto da Praça Universitária. Deu-me o endereço. Despediu e se afastou com os movimentos de uma bailarina celebrando a primavera no céu.

         Algumas vezes vi quando saia e entrava em sua casa.Havia uma aura de mistério em suas andanças. Em alguns momentos pensava que era casada, noutros que tinha medo dos homens; por estes motivos evitara novo compromisso. Pensei em desistir de tudo. Por fim tomei uma atitude extremada: escrevi propondo casamento; estava desesperado. A resposta veio num lacônico bilhete deixado na portaria aumentou o mistério.

         “Não posso me casar. Porém, não quero falar sobre isso”.

          Respondi-lhe com alguns desaforos, tipo “você é casada ou tem outro pretendente”; “Por que não me diz a verdade, assim deixo-a em paz”. A resposta não tardou “Não tenho ninguém, perdoe-me se faço você sofrer. Deixo-lhe uma foto”. No verso uma mensagem inesperada: “Com amor”.

               Depois dessa resposta fechei o coração para outro relacionamento; fui cuidar da minha vida como convém a um bom nordestino. A verdade é que amei muito essa mulher;  guardo na memória o seu perfume.

              Você não voltou ao lugar ao lugar onde ela morava?

          Pois é. Passado um tempo fui até lá, me aproximei do porteiro, mostrei a foto e perguntei se a conhecera. Olhou firme nos meus olhos. Ela morreu afogada no Lago das Rosas. O corpo dela só foi encontrado no dia seguinte. Seus pais vieram do interior para cuidar do sepultamento; estavam chocados com o acontecido. Você se lembra do Lago das Rosas? Lá morreram muitas pessoas até ser fechado para lazer. Tratava-se de uma boa moça, educada, que não se envolvia com nenhum rapaz. Entretanto, a minha impressão sobre ela é de uma moça misteriosa.

               Sempre concordei com o que me disse o porteiro. Por isso perguntei a você se, pela foto, ela merece respeito. O amigo emendou outra conversa; desejava encerrar o assunto. Sabiamente, parou na barraca do Zé do Coco.
               
              As conversas de nordestinos são longas, como longos e tortuosos são os caminhos da recordação.  
Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em setembro de 2013.
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.programaraizestv. net). Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 8 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Então, amigo, qual é o problema?

Um amigo pediu emprestado meu livro de poemas do Walt Whitman e não devolveu. Meses depois encontrei com ele na Panificadora Canadá, perto da Praça Tamandaré. Disse-me que ainda não havia lido o livro; nem abrira suas páginas.  Entendi como desfeita ao pai do verso livre e a mim; de verso preso. Sacanagem em dobro. No sábado anterior eu procurara sem êxito o mesmo livro no Goiânia Shopping. Emprestar livro e não receber de volta é comum; acabo transformando o empréstimo em presente. Mas, esse cara foi além: não leu e, talvez, por desprezo, guardou-o dentro de uma gaveta junto com pedaços de canetas usadas e a sua velha agenda ensebada da época da Telegoiás; merece ser processado por guardar poesia com objetos descartáveis.  

Ler é liberar pirilampos abrasados pela palavra do poeta; as letrinhas voejam irradiadas pela imaginação de quem recebe a força do verso. Poesia é a essência da vida; só a palavra poética nos salva da vida frívola das grandes cidades. A ganância da mídia por audiência só nos dá celebridades vazias, escândalos e fofocas; somos tratados como imbecis pela televisão e o cinema de consumo; arautos da violência e das vãs aspirações.

Pois é, o contraponto ao vulgar é a bendita literatura; com enlevo ela se torna memorável. E a manifestação da arte é o retrato sublime das paixões humanas com os naturais dramas e tragédias. Então, ler com a alma é o jeito mágico de acordar a luz desenhada pelos escribas; uma bíblia fechada não acende a chama da fé.

Aberto, todo livro deve ser decodificado com a paciência do garimpeiro que procura um tesouro. Pense numa coleção da Enciclopédia Britânica aberta ao poeta argentino Jorge Luiz Borges; agora a imagine trancada num baú. O que seria dos autores dos clássicos da literatura mundial sem a leitura de outros mais antigos, desde Homero. Sei que há situações em que o leitor percebe que não existe nenhuma pérola no final.

Mas, definitivamente, esse não é o caso da poesia do americano Walt Whitman, um dos maiores poetas da língua inglesa.  Se algum dia eu souber que o cara a quem emprestei o livro leu os poemas de Whitman, voltarei a chamá-lo amigo; sem aspas. Aí, espero que ele me devolva o livro para eu possa emprestá-lo a outro.

Até lá mantenho minha opinião, pois, parafraseando Dorival Caymmi, quem não gosta de poesia bom sujeito não é.  Antes do ponto final dessa crônica recebo uma ligação. Fico na dúvida se atendo ou não. Então, amigo, qual é o problema? 

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás - setembro de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. Escreve aos sábados do DMRevista.

Chapéu de aroeira

Preparo o café para servir aos fantasmas que passam comigo a madrugada no Sítio. Tempo embaçado nesses cafundós de Goiás. Acima da porteira do curral vejo o morro encurvado com a roça preparada para o plantio. O tempo no fim de agosto recria o habitual sofisma da seca.  Partilho com os fantasmas amigos as aflições da memória como se ela fosse uma casa grande com janelas, porta de entrada, de saída e a despensa. Nesses momentos, a memória pode encontrar bagunça nos quartos; cozinha desarrumada; armários revirados e a sala em festa para receber os visitantes. Pois é, mas também tem o porão; lugar de coisas velhas e ninhos de ratos. Meu chapéu de aroeira amanhece pendurado no prego enferrujado fincado na parede do alpendre.
      
A água do rego cai sobre o monjolo murmurando sem parar ao correr dos dias prolixos; das noites ascéticas e das manhãs incisivas. No poço raso, circulado com pedrinhas comuns, boiam centenas de girinos que, um dia, haverão de coaxar no lago. O vento com cheiro de capim meloso contorna a boca da cisterna em rodopios estranhos. Nessa hora, cinco da manhã, tudo está escuro.  O vento solitário não acha testemunha para vê-lo balançar as folhas das guarirobas ou emborcar os galhos das árvores. Janelas e portas cerram na cara do vento; o mendigo que dorme na calçada da cidade cobre a cabeça com seu tosco cobertor. Ninguém quer saber do vento frio da madrugada. E o vento rejeitado sopra em outro sentido, talvez à procura do fogo para, juntos, incendiar o cerrado. Mas essa chama daqui, que se acha engambelada pela madeira seca, prepara o nosso café.
          
A água ferve na caçarola; o bule repousa na chapa quente de ferro fundido.  Aprendi com minha avó que a medida para um litro de café é cinco colheres de sopa cheias de pó e outras seis com açúcar. Há uma multidão de criaturas invisíveis à minha volta nessa madrugada; talvez atraídas pelo cheiro forte do café coado.
        
Não estou só.  As aparições foram convocadas pelos meus pensamentos. Então, é hora de contar histórias. O vento amaina um pouco. Ouço pássaros se espreguiçando nos ninhos. Um leve soprar de vento passa e vai-se. Nem sei mais no que penso.

O café fica pronto. Sirvo-o aos amigos que acudiram as minhas aflições; sete anjos tocados pelo clamor da madrugada; também irradiados pelo alvorecer.


(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás - em agosto de 2013)
          
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.

As correntes de Hefesto

Hefesto nascera feio e coxo. Tão rejeitado e indefeso que Tétis decide criá-lo em uma gruta escondida no fundo do mar da Grécia. Lá aprende a construir finas peças de jóias em ouro puro: a coroa de Pandora; a taça de Baco; as correntes de Prometeu; a flecha de Apolo e a couraça de Hércules foram peças construídas pelo divo.

Esse menino rejeitado por Hera é conhecido na mitologia grega como o deus do fogo, do ouro e de todos os metais fundíveis; exímio artesão, também enfeita com sua arte os mais belos palácios da esplanada mitológica. Jogado ao mar pela mãe vaidosa, arquiteta sua vingança construindo um trono ornado com desenhos ricamente trabalhados em ouro. Vaidosa e frívola, Hera nem pensa para sentar-se no trono reluzente. Tenta se levantar e não consegue.  Para libertá-la Hefesto pede a Zeus que a divina Afrodite se case com ele. Depois do casamento sua esposa o trai com Ares, sanguinário deus da guerra. Com milhões de megatons na voz, Hélius, o amigo da carruagem de fogo, conta-lhe toda a trama.

Sentado em frente à sua bigorna Hefesto planeja se vingar dos adúlteros. Os dois, pensando que ele estava em Lemmo, voltam à cama. Mas, ficaram presos na armadilha feita com correntes mágicas. Avisado por Hélius o marido chama todos os deuses do Olimpo para ver a cena confrangedora dos amantes nus.  Zeus se indigna com a exposição pública de um caso pessoal.  Ordena que liberte Ares. Apolo, jocoso, se oferece para ficar preso com a bela Afrodite. Poseidon promete vultosa soma em dinheiro a Hefesto. Com tal promessa desfaz as correntes. O tempo passa com o deus do fogo ainda apaixonado pela bela Afrodite. Nasce Harmonia. O que mais o irrita é saber disso. Borbotam dos seus olhos lavas incandescentes nascidas dos vulcões do Olimpo.

 “Oh, Harmonia, filha bastarda de Ares e Afrodite, hei de me vingar tão terrível quanto à dor de ser traído”. Hefesto planeja sua vingança para quando a moça chegar à idade de se casar. Chega, enfim, o dia do casamento com Cadmo. O Olimpo se enfeita para a festa. Vestida num robe dourado, presente de Atena, ouve Apolo tanger sua lira num canto do palácio dos deuses.

Afrodite encomenda para a noiva um riquíssimo colar a Hefesto que promete beleza irresistível quando o vestir. Harmonia não sabe que o colar traz uma horrorosa maldição. Ao vesti-lo se transforma numa serpente. O colar é uma praga que traz infelicidade e morte a quem o usa. Até Jocasta, depois de usá-lo casa-se com o próprio filho e se mata ao saber disso.  E as mortes acontecem pela eternidade como é o sofrimento de Hefesto.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em agosto de 2013)
                
Doracino naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultura, na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 11 de agosto de 2013 | By: Doracino Naves

Céu de bronze

O céu só ouve a prece de quem é generoso com o outro.  A arrogância firmada no personalismo e a oração interesseira não abre a porta de nenhum dos sete céus  concebidos pelas escolas místicas ou religiosas. Quem é duro com o próximo não vai encontrar nenhuma moleza para que sua prece suba ao céu. E a vida sem Graça pode ser um mundo com piso de ferro e céu de bronze. Talvez seja assim ou não no campo espiritual. Ou quem sabe eu esteja doido por causa desse tempo desértico do cerrado.

Pois é, o vento de agosto, de endoidar cachorro sem dono, surfa nas ondas das correntes desorientadas a soprar todos os cantos da cidade. As árvores e as esquinas de Goiânia, varridas por lufadas de pó, se assanham com a volúpia do ar quente a sussurrar indecências nos seus ouvidos. Em outros momentos o vento cessa em orquestrado silêncio, com a intenção única de escutar a prece das pessoas por águas abençoadas. Nenhuma folha da guariroba antiga na Avenida Anhanguera se mexe. Parece que a terra parou por um instante no espaço. Somente se ouve o pipocar de bolas imaginárias com o calor descendo pelas escadas do meio dia. É nesse clima que Goiânia mostra a incontida neurastenia da seca. E a umidade do ar despenca a doze graus.
             
De repente, a ventania maluca, voluptuosa, faz requebrar o véu de uma cortina branca em balé frenético. Antes tão sossegada na sua tarefa de deter os raios de sol, agora ela se vê subjugada à fúria do vento. A senhora de pele seca e rugosa, com mãos finas e dedos longos, aparece para cerrar a cortina. O vento esvoaça seus cabelos ralos, lisos, grisalhos e cadavéricos como se fossem feitos com teias de aranha.
         
Quer saber de uma coisa? Vento de agosto dane com o pregador; levantai a saia da donzela; jogai cisco no olho do maledicente; dás uma tapa na mão do jogador e tirai dele o bilhete de loteria; correi até o oficial de justiça e arremessai para longe a ordem de despejo daquela família que atrasou o aluguel.
          
Mas, oh, vento de agosto, não tirai a passagem de ônibus da mão da doméstica que precisa voltar para casa e rever o seu filho. Ela só tem um sit pass.
              
Ah, vento, ventai muito, sem medo de ventar; o vosso destino é ventar sempre, pela eternidade afora. Afinal, vento que não venta não é vento.
            
Não permitas, vento nosso de cada dia, que Éolo, o deus grego, aprisione a tua energia secreta. Não fostes feito para serdes mercadoria. Do mesmo modo como não ventas para ganhares dinheiro a espiga de trigo não foi criada para ser vendida. Mas, embora assim seja, a semente dos grãos continuam generosas na sua missão terrena de reproduzir o de comer. Por causa da sua essência não comprometida com o lucro, os grãos continuam sua sina emblemática de plantar e colher. E nem dá bola para quem ganha ou perde; cumpre com fidelidade o seu pacto com o alto.
           
Talvez seja por essa causa que Deus abre o céu para os raios de sol, a chuva abundante e o vento que balança os grãos de trigo em sua dança de fertilidade nos campos dourados. Ai de quem mudar esse ciclo.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - em 10 de agosto de 2013).
              
Doracino naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.
             
domingo, 4 de agosto de 2013 | By: Doracino Naves

Calado é melhor

Um papa generoso, cristão e sem preconceitos. Assim começou a conversa em uma banca de jornal da Praça Tamandaré, onde gente de várias crenças se reúne todos os dias. Um papa franciscano que acredita em Deus e na lei da simplicidade, disse um dos arautos da sua própria verdade. Sentado na espreguiçadeira, o teólogo que escrevera durante muito tempo sobre Deus, disse não mais acreditar Nele. Quem é Deus que ninguém vê? Nem é espírito, porque se o fosse seria inteligente para não permitir as injustiças do mundo. Foi categórico: Deus não existe.
   
O doutor, metido num terno e gravata, em sua impostergável arrogância, disse, olhando para o lavador de carro: coitado, acredita em Deus! Outro homem que se declarava católico, em pé, ao lado do teólogo, tirou de dentro da camisa o crucifixo de metal preso numa corrente de ouro. Não podemos duvidar de que Deus existe. Essa cruz me protege noite e dia. O islamita que a tudo observara calado levantou-se do banquinho de madeira. Alá é o criador de todas as coisas, cujas mesquitas estão espalhadas por todo o mundo árabe. O judeu, dono de uma galeria de lojas próxima da Praça, intervém: existem templos para todas as crenças, mas o único Deus é o de Abraão e Moisés cujo povo é o escolhido para o paraíso.
      
Um chegante ao ouvir as últimas palavras, precipitou-se em meter a sua colher de pau na conversa, mesmo sabendo que o homem de bom senso não entra numa conversa sem saber do que se fala: Então, o seu Deus é injusto, pois escolheu uma raça para dedicar o seu amor.  O pastor missionário, recém chegado de Angola, mas subordinado a uma denominação evangélica brasileira, falou firme, segurando sua Bíblia. Deus é eterno; o mesmo de ontem, de hoje e o de sempre. Só se salvará aquele que reconhecer Deus em espírito e verdade, sob a intercessão de Jesus, nosso Salvador.
Decidi que seria melhor eu ficar calado.
     
Tenho por costume nunca entrar nesse tipo de assunto; talvez por timidez. Gosto de observador as pessoas, sem, no entanto, me sentir afetado por uma só opinião. Lembrei de uma parte de um conto de Bernadin de Saint Pierre. Numa roda de homens procedentes de diversos países havia um cego que perdera a visão na tresloucada ambição de apropriar-se da luz do sol. Passava o dia olhando diretamente para o sol.  Tentara por todas as maneiras engarrafar ao menos um dos seus raios. Concluiu que se o vento não o movimenta não é um fluido; como não se pode parti-lo não é sólido; também não é fogo porque não se apaga na água. Logo, o sol não é coisa alguma. Por causa desses delírios ficara cego e, o que era pior, perdera a razão. Sua ignorância fez-no acreditar que não era a sua visão, mas sim o sol que deixara de existir no universo.
      
Talvez a mesma história se repita em relação a Deus. A vaidade das crenças e da convicção egoísta do homem é capaz de cegá-lo diante de tanta luz. Querendo tomar posse do céu não percebe que seu conceito pode falhar na tentativa de descobrir o verdadeiro sentido do mundo. Todos O têm como exclusivo; para a religião é bom que seja assim.  Mas o Templo de Deus é o universo encantador e misterioso aonde se movimentam suas criaturas. 
      
Nenhum altar é tão sublime quanto o coração do homem quando o pontífice é o próprio Deus, pleno de misericórdia e generosidade.


(Publicado no jornal Diário da Manhã - Goiânia - Goiás em agosto de 2013)
      

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

Livro rejeitado


 Bruninho chegou ao consultório do doutor Veríssimo com um livro de nome estranho. Com a expressão triste bateu suavemente à porta.
O dentista se surpreendera com a presença do jovem àquela hora em seu consultório.
                                  E aí, prezado Bruno, como vai?
 Com as mãos já na linha da cintura, preste a entregar o livro, Bruninho falou emocionado:
                              Mamãe pediu para que viesse lhe agradecer por ter extraído o meu dente cariado que doía mais do que espinho de pequi cravado na língua. O senhor salvou o meu ano escolar, pois com aquela dor terrível não tinha ânimo para estudar. Por causa desse favor nós nem sabemos como lhe agradecer.
                                  Não precisa. Fiz o que outro dentista faria diante da dor.
Doutor Veríssimo observou o livro nas mãos do jovem, ajeitou e tirou os óculos, coisa que fazia quando estava nervoso. Pôs os óculos. Depois de ler o título, confuso, disse baixinho:
                                  Deve ser um bom livro. Entretanto - agora me lembro - o livro fala de amor, mas muitos o consideram obsceno.  
                                Doutor, minha mãe, que é dona de uma loja de livros usados, comprou este livro pensando em lhe presentear. Tenho certeza de que não é um livro imoral.
                                Nem Bocage ousou escrever um livro tão indecente. Se eu aceitasse o livro iria trazer a pornografia para dentro de casa.
                                 O senhor nem parece que se formou numa universidade de gente ilustrada. Imagina, trata o livro como se fosse lixo. É literatura, doutor... é arte. Minha mãe me disse que milhões de pessoas já leram esse livro. Olha só essa capa, doutor. É um primor.
                                Acontece, filho, que sou evangélico. Meus irmãos e minha família costumam vir aqui. Também recebo senhoras do bairro e este livro pode acabar com a minha reputação. Por outro lado, não é certo que eu guarde um presente no fundo da gaveta. Vamos fazer o seguinte: leve esse livro de volta. Depois eu converso com a sua mãe.
                                Não posso voltar com o livro, doutor. A rejeição ao presente há de nos causar uma enorme decepção. O senhor me curou de dente doído e nós queremos retribuir com um livro famoso. Não o rejeite, doutor. Eu lhe peço.
                               Ora, Bruninho, vocês não me devem nada. Dê lembranças à sua mãe e, agora, deixe-me atender as pessoas que me esperam na recepção.
                              Certo. Não vou lhe tomar mais tempo, mas deixo o livro. O senhor pode colocá-lo entre os outros. Ninguém vai ver o conteúdo. Até logo, doutor Veríssimo.
O livro ficou.
                              “É um livro curioso. O protético me disse que é instigante”.
Depois de pensar assim, doutor Veríssimo se lembrou do padeiro, seu amigo, que, certamente, gostaria de ler o livro. Afinal, ele é solteiro e meio malicioso.
                            “Fico livre dessa obscenidade literária e ainda agrado o amigo padeiro que sempre escolhe para mim o pão mais tostado e crocante”.
                             Bom dia, amigo. Eu lhe trouxe um livro de presente.
                            Obrigado.
                            Olha só a textura da capa. Que beleza!
O padeiro leu o título e se lembrou de que alguém lhe falara de um filme com este nome. E era proibido para menores de dezoito anos.
                          Não posso aceitar o presente. Minha mãe católica vive na igreja, está bem velhinha e eu não seria capaz de lhe causar um desgosto desses. Ela vive a pregar contra a sem-vergonhice dos dias de hoje. Não vou ficar com ele, leve-o de volta.
                            Você não pode recusar meu presente. Sua recusa afronta a nossa amizade.
O dentista deixou o livro sobre o balcão e saiu. Na hora da folga o padeiro folheou algumas páginas. “Ufa! É muito forte”. Decidiu ofertá-lo ao locutor do carro de som que falava maravilhas da sua padaria. “Penso que ele vai gostar, vive a declamar poesia às moças no caminho da sua propaganda. Ah, lá vem ele com o alto falante ligado”.  Fez sinal para parar. O carro para, o locutor diminui o volume do som.
                             Oi, Gervásio. Tenho um presente bacana para você. Como está ocupado, vou deixá-lo no banco de passageiro.
Fez assim, tão rápido que o motorista nem examinou o que ganhara. Parado no sinaleiro Gervásio resolveu examinar o que ganhara do padeiro.
              ”Onde vou colocar um livro desses. Moro em pensão e nem tenho gaveta para escondê-lo; e a arrumadeira do quarto vai pensar que sou algum maníaco
sexual. Ah, já sei. A mãe do Bruninho tem uma loja de livros usados. Talvez ela me pague bem por essa raridade”.
O locutor seguiu o seu pensamento, mas recebeu apenas alguns trocados pelo livro.
No outro dia, doutor Veríssimo se preparava para atender uma senhora que iria colocar a dentadura, quando, de surpresa, apareceu Bruninho segurando um livro.
                            Doutor, veja o que encontramos. Um livro igual ao outro. Este aqui mamãe lhe envia para que o senhor presenteie um amigo. Não é uma beleza? Vou deixá-lo em cima da mesa. Até logo, doutor.
Doutor Veríssimo nada disse, nem esboçou qualquer reação. Ficara pasmo.


(Publicado no Diário da Manhã - Goiânia - Goiás - em julho de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.raízestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 22 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

Versos na luz



Por ocasião da fuga dos hebreus do Egito rumo à terra da promissão, Deus ordenou que Moisés construísse um tabernáculo - O primeiro Templo do Senhor – erguido ao pé do Monte Horeb, no deserto de Sinai. O primeiro tabernáculo foi uma tenda provisória construída por Moisés, Aholiabe e Bezaleel onde o Senhor falava com o seu povo. O formato, em paralelogramo, media dezoito por seis metros, com entrada pelo Oriente. A cobertura e as laterais tinham cortinas de linho retorcido de cor jacinto, de púrpura e de escarlate. O Santo dos Santos foi adornado com querubins de ouro. No ponto central foi colocada a Arca da Aliança.

Depois da dedicação do Templo uma densa coluna de nuvem pairou sobre ele durante o dia e a noite uma vigorosa coluna de fogo escancarava a presença de Deus. As colunas de nuvem e fogo passaram a acompanhar o Tabernáculo nos deslocamentos do povo santo.

O segundo Templo, construído por Salomão, no coração do santo Monte Moriá, cerca de mil anos após esse feito, em torno do ano 1.015 A.C., recebeu todo o acervo do Tabernáculo para onde foi transferida a Arca da Aliança e todas as peças fundidas em prata e ouro.  Os símbolos sagrados e alegorias celestes foram transferidos para o Templo de Jerusalém. Depois, destruído por Nabucodonosor, em 521 A.C., é celebrado como uma das mais magníficas construções do homem.

Com o retorno dos hebreus do cativeiro babilônico, Zorobabel, príncipe do povo; Ageu, o profeta; e Josué, filho e assistente do Sumo-sacerdote, receberam ordem de reconstruir o Terceiro Templo - o segundo de Jerusalém - sob os escombros do destruído Templo de Salomão. 

No ano 70 da era cristã Tito, imperador romano, destruiu toda Jerusalém e o Templo de Zorobabel foi junto.  Só restou uma parte da muralha para mostrar o poderio do Império Romano. E os judeus, há séculos, lamentam a destruição do sagrado templo aos pés da muralha; hoje é o muro das lamentações. Hoje, quando escrevo essa crônica semanal, penso na construção e reconstrução desse arquétipo sagrado. Isso me faz pensar que devo desconstruir em punhado de equívocos da jornada terrena e remover cada pedra dos descaminhos.

Nessa manhã arrasto pesadas correntes de lembranças com enormes bolas de ferro nas pontas. Arrasto-as com as forças que me restam. Bendigo o sol que ilumina outras terras e outras eras. A mesma luz que vejo todos os dias também é vista por todos os irmãos. Esse olhar igual e fraterno nos faz uno na essência. Fiz essa digressão histórica tentando engambelar meus pensamentos. Em vão.  Desde a impressão da primeira letra dessa crônica que penso nela. 
   
Hoje, Senhor, minhas lembranças exprimem versos de luz a quem se foi para o céu há quase dois anos: minha filha Karolline Jacob Naves. Fernando Pessoa zarpa do seu Tejo para me ajudar nas minhas quimeras. “Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, e vendo-a sempre de maneiras diferentes”. Penso nela. É só isso que eu quero nessa manhã. Nada mais peço a Deus, só pensar.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 20 de julho de 2013)

     
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista. 
sexta-feira, 19 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

A hora do Ângelus

O dia havia passado mais rápido com os preparativos para a viagem de volta. O sol caía pelo lado do Mato Grosso. Enquanto ajeitávamos as coisas da pescaria num tosco batelão de madeira, um bando de curicacas voava agitado com vozes esganiçadas. O agito das aves talvez fosse porque representávamos ameaça aos seus ninhos feitos numa macega da parte úmida da praia. O canto histriônico das guardiãs da praia ecoou longe. Mais do que a música amplificada dos acampamentos dos turistas do inventado verão em pleno inverno no calendário. 

Julho é mês de férias nas praias do Rio Araguaia. Centenas - talvez milhares - de barracas abrigam gente de todas as partes, principalmente de Goiânia. Nossa pescaria estava encerrada e o destino era o porto de Bandeirantes. O piloto avisara que chegaríamos lá depois da hora do Ângelus. Isso me fez pensar nos sagrados deveres cristãos de quem lida com os perigos iminentes de um naufrágio. Afinal, as águas do Araguaia encobrem paus que rodam com a enchente e a areia que se move com o peso das águas. A fé católica do piloto é uma espécie de mantra a proteger os navegantes do rio.  

Vi que na proa do barco tinha uma pequena cruz de madeira. Mais confiantes colocamos todos os apetrechos e bugigangas dentro do barco. Em seguida, pois fé do homem é fraca, entramos com os coletes salva vidas. Aproximava das seis da tarde. O comandante rezou uma ave-maria. Permanecemos em silêncio acompanhando em pensamento a oração da tarde. Segundo a crença do piloto essa reza é um louvor para encerrar o dia e abrir a noite. O crepúsculo se encheu de poesia e santidade. A misteriosa beleza colorida do poente tingiu o céu de vermelho escarlate. Iniciamos a partida sob um cenário dourado. As águas pareciam correr com ondas de ouro derretido.  

Havia no ar um sentimento sobrenatural que reconhece a fragilidade humana diante da onipotência de Deus. A própria natureza sentia-se manipulada por uma força descomunal. Um peixe filhote da cor dourada saltou na vertical a uns duzentos metros de nós. A noite chegava. O barqueiro despertara em nós, por meio da prece, uma emoção contrita. Cada um fazia sua prece inspirada pelo que sentia naquele instante. 

Nenhum pincel ou nenhuma literatura pode reproduzir a peculiar visão do pôr-do-sol no Araguaia. Porque a grandeza está no íntimo de cada ator que participa do cenário da vida como uma ensaiada peça de teatro. 

A hora da elevação da prece misturada com a beleza natural é o retrato irretocável da fraqueza humana que clama por proteção e da onipotência de Deus que tudo vê, ouve e observa.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.  



terça-feira, 9 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

O silêncio de Seriema

A Seriema tagarela corre pelo cerrado ensolarado como se fosse o seu palco exclusivo. Num palco iluminado pelo sol é mais fácil aparecer. Seriema subiu em um cupinzeiro com os sentidos abertos a uma determinada aparição. A ninfa alada avistou, longe, um pássaro de plumagem negra, topete encrespado e bico de cores vivas, destacando o lilás.  Assim é o Mutum. Seriema o via como o pássaro mais bonito do mundo. Por esse motivo Seriema cantava noite e dia, fosse no meio da mata de galeria ou no descampado. Mutum chegou mais perto e ela fez de tudo para conquistá-lo. Ele a desprezou com fizera outras vezes. Aliás, as leis da natureza não registra nenhum romance entre uma seriema e um mutum; são espécies diferentes.
 
Nas conversas com outras seriemas o assunto dela sempre foi Mutum. Virou obsessão. Até que a esposa de Mutum desconfiou do interesse de Seriema pelo seu marido. Vendo que poderia perder Mutum desandou a falar mal dele. É um sem-vergonha que vive atrás de qualquer rabo de penas. Seriema o defendeu dizendo que Mutum era um pássaro fiel. A esposa culpou Seriema pelo fracasso em não flagrar a traição de Mutum e a condenou a baixar o rabo, ao contrário da cauda arrebitada que Seriema ostentava antes desse episódio. 
 
Mas não desistiu de conquistar Mutum. Em todas as tentativas ele a desprezara. Seu canto alegre e estridente passou a ser um canto triste. De tanto ser cortejado Mutum se achava mais bonito do que o urubu-rei. Um dia ensolarado foi beber água num riacho de águas límpidas e espelhada. Nisso viu a sua própria imagem e se apaixonou. Passou a viver somente cultuando aquela imagem, para ele apaixonante e arrebatadora. Nem se preocupava mais em beber e comer. Fraco, foi definhando até morrer. Seriema, sempre atenta aos movimentos do amado, o enterrou próximo a uma queda d’água. No lugar nasceu uma cintilante flor lilás chamada quaresmeira.
   
Desde então o canto de Seriema ecoa roxo pelo sertão. Quando para de cantar talvez pense em Mutum. Mais triste que o canto é o seu silêncio.
 
 
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em julho de 2013)
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (wwww.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 1 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

Angu sem caroço

Estamos em junho, mês em que o céu é mais estrelado. Perdoai-me por não descrevê-lo com poesia. Hoje não estou animado para isso. Para falar a verdade, também não sou poeta, embora tenha na minha estante, entre outras, a ótima poesia de Fernando Pessoa. O melhor então é olhar o céu e soltar a imaginação.  Miríades de estrelas estão acesas sobre Goiânia, mas as lâmpadas das ruas atrapalham a visão esplendorosa da abóbada celeste nesse mês de festas de São João. Se tivéssemos postes de luz baixinhos, rentes ao chão, as estrelas seriam mostradas aos nossos olhos. Mas, não, foram inventados altos por um maluco para esconder o céu.
     
Na roça é mais fácil ver as estrelas. Pois é, no mês de junho o céu do Centro-Oeste é o mais bonito do Brasil. Tem razão o caipira em preferir a lua e as estrelas às luzes da cidade. Talvez seja mais fácil entender nossa missão na terra quando percebemos a poesia inebriando da natureza a afetar os sentidos; leva-nos a pensar sobre a magia do universo abissal e a nossa diminuta condição humana. Impressionante como a natureza é mais bela e aprazível nas condições naturais. O homem do campo, ao contrário do urbano, sabe que a sua sobrevivência depende do respeito aos ciclos de cada coisa. A água, a lua, as estrelas, o sol, as árvores e tudo que o cerca merece atenção dobrada. Para esse tipo de homem o mundo externo ao seu é um angu sem caroço. A boa vontade com o mundo faz parte do seu cotidiano.
    
Tudo é espontâneo na vida dos simples. É comovente o carinho do roceiro ao lavrar a terra; preparar a hortaliça ou cuidar dos animais. Há um incontido respeito e veneração em cada ato, criando um liame que traduz a perfeita moral do cuidado com a natureza e suas próprias necessidades. Na cidade tudo é disfarçado: o asfalto cobre o chão; as lâmpadas artificiais ofuscam as estrelas; a palavra lisonjeira revela uma multidão de bajuladores dissimulados.
     
Mas o céu cobre a todos sem distinção. Então, olhemos com respeito para o alto. Descrever o céu estrelado com a poesia humana é tentativa vã. Melhor mirar os olhos no céu e se animar com a insofismável poesia das estrelas.
    
Descrever isso com palavras é tarefa difícil e imprecisa.
    
Olhai o céu! Ele estará sempre disponível a quem tem olhos para perceber a transcendental eternidade do universo, mesmo depois que tudo no planeta seja pó ou que as pedras se desfaçam em minúsculos grãos de areia. 
    
Olhai o céu e faça o seu pedido.
          
    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

O além nasce na primeira madrugada do inverno


Aqui começamos esse inverno de secura no cerrado. Se, nessa época, a previsão indicar umidade maior de que a habitual é novidade. Mas, a tradição recomenda diminuir as atividades físicas e até dormir com uma bacia d’água perto da cama. Enquanto a ventania de agosto não chega a única brisa que move o mundo é a lembrança de outros anos secos que nem gosto de lembrar. Uma vez compramos tecido numa loja do centro para fazer roupa. Arnóbio, alfaiate famoso na Vila Nova, foi quem costurou a minha calça feita de casemira axadrezada, tecido inglês quente 'pra caramba'. A camisa domingueira era chamada de Volta ao Mundo. Vestidos assim, íamos ao cinema.
         
O retorno a pé para casa, em um trajeto sem árvores e poucos prédios, era penoso com o suor escorrendo por dentro da roupa. Insuportável. Hoje, quando passo pela Rua 3, procuro uma sombra para respirar o ar fresco de uma árvore ou a marquise de um loja. Do outro lado da rua um casal toma sorvete com guaraná. E me vem à memória aquela roupa imprópria ao nosso clima que usei um dia; durante muitos anos tive alergia por causa da calça de casemira. A recordação é o único meio de juntar ideias e palavras. Voltaire descreveu a memória como sendo o centro do sentido e do senso. Esse exercício das lembranças de ontem e de hoje reúne a essência da cidade e o destino cosmopolita de Goiânia.
              
Às vezes imagino que este cronista viveria melhor em uma cidade de temperatura mais amena. Mas, a alma de Goiânia me chamou primeiro. Sonho que Paris, mesmo na artificial definição de cidade luz, é mais atraente do que Dubai porque tem uma alma boêmia e romântica. Pois é, vejo Goiânia com essa vocação vadia. Se hoje é desvairada não foi por culpa dos românticos precursores.
             
Enquanto imagino coisas uma mulher se aproxima com uma Bíblia na mão. Diz-me antes de tudo: Jesus te ama! E me olha firme nos olhos. Talvez tenha pena da minha comprovada ignorância a respeito da vida. Traz a tiracolo uma bolsa com dizeres impressos em papel sujo por outras mãos. Cinquenta centavos por um pedido e o exemplo de um espírito iluminado para amenizar o sofrimento de quem vive nesse mundo. Essas palavras são para mim. Entrego-lhe duas moedas de vinte e cinco centavos.
                
Entre outras, ela tira uma mensagem de León Denis: “Padeci, e só os sofrimentos é que me tornaram feliz. Resgataram muitos anos de luxo e ociosidade. A dor levou-me a meditar, orar e, no meio dos inebriamentos do prazer, jamais a reflexão salutar deixou de penetrar minha alma, jamais a prece deixou de ser balbuciada pelos meus lábios. Abençoadas sejam as minhas provações, pois finalmente elas me abriram o caminho que conduz à sabedoria e à verdade”. 
                 
Devolvo a mensagem com um leve sorriso. Sinto que o autor foi em cima do que eu sentia naquele momento. Volto à realidade com o calor da tarde. Assim é Goiânia, assim Deus a escreveu como portal de uma civilização típica desse mundo.
                
O passar do tempo faz a gente se desfazer de muitas arestas. O além nasce na primeira madrugada do inverno.
                
Perdi folhas nesse outono, ganhei novas; quero viver a eternidade da próxima estação.
                
Estou a caminho...
                         
Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV e Canal Metrópole (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 9 de junho de 2013 | By: Doracino Naves

0 morto da Praça Cívica

Há um corpo morto na Praça Cívica. Quem ousou morrer na Praça Cívica às seis horas da manhã?  Não sei quem foi. Mas, um homem morto está lá, estirado no anel interno, bem perto do coreto. Traja roupas brancas manchadas de sangue. Ao lado há um carro da polícia com as luzes piscando, talvez à espera do camburão gelado do IML. A maioria dos carros e pedestres que passam é indiferente ao morto, cujo espírito sobe ao céu escoltado pelas luzes coloridas da viatura da PM. Acho uma ignomínia alguém morrer aqui; onde já foi palco de festas, shows e inflamados comícios.  O das Diretas Já plantou as sementes de eleições livres no Brasil.
                 
Nessa praça não é lugar de morrer; nem tristeza cabe neste lugar. Afinal, seus anéis guardam a alma festiva dos primórdios de Goiânia. Outra razão muito importante para celebrar a Praça Cívica: aqui mora o mestre dos mestres Bariani Ortêncio. Só que o morto nem se importou com isso, quis morrer aqui. Foi pura ousadia cair morto na Praça Cívica. Petulante! Pensando, melhor: Coitado! Será infeliz quem morre? Há controvérsia. Pois é. Penso que o morto desprezou os perigos da noite com ideias de aventuras. Porém, a escuridão não poupa os incautos.
                   
Até os que se julgam mais fortes e lutam contra a finitude morrem como ovelhas no final da noite. Aí eu me lembro do escritor francês  Alfhonse Daudet que escreveu A Cabra do Sr. Séquiem. Branquinha fora confinada num estábulo, mas fugiu para as montanhas geladas através de uma janela. A montanha inteira fez-lhe festa; ela se sentiu feliz com a liberdade.
                   
Logo o vento esfriou a noite. A montanha se tornou violenta. De repente ouviu o urro de um lobo. Entre as folhagens apareceram os olhos famintos do lobo sentado nos quartos trazeiros. Não havia estrelas no céu. Valente, lutou a noite todo com o lobo. Pela manhã ele a devorou. Talvez o morto da Praça Cívica tivesse pensado que venceria os terrores da noite. Ou, quem sabe, ficara iludido com os acenos frívolos das coisas mundanas e se distraiu.
                     
Uma certeza: morrera para cumprir o destino do homem de um dia qualquer ir para o além. A vida é fugaz. Chegou o camburão do IML para recolher o corpo. Sinto a alma pesada com essa visão. Movimento-me com a lentidão massiva de um continente se deslocando no milenário vaivém da terra. Saio pensando na missão de um cronista. Escrever não é uma mera ambição. Talvez seja uma forma de ficar sozinho para contar o cotidiano. C’est la vie...

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista -Goiânia - Goiás em junho de 2013).
                             

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes, na Fonte TV e Canal Metrópole. Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 2 de junho de 2013 | By: Doracino Naves

Metasonho

Quase noite. O lusco-fusco deita preguiçosamente sobre o capim jaraguá que começa a dar sinais de seca. Vem a noite escura e densa cobrindo com seu véu o caminho sinuoso que leva à cidade de Goiás. Quica, neta de escravos que continua escrava, apesar dos tempos novos, fecha a janela de madeira deixando de fora seres notívagos que vagam pelos currais e taperas mal assombrados. Não conhece nenhum lugar além da casa grande onde nascera e vive para o trabalho. Festas só na fazenda, assim mesmo para servir os convidados.
   
Aprendera com sua mãe, também escrava, apesar de liberta, a ser servil com seus patrões aos quais, por tradição dos escravos antigos, deve demonstrar gratidão e subserviência total. Os filhos do patrão foram estudar muito longe. Rio...Rio de Janeiro. É isso. Um dia, Maria de Lourdes, a filha mais nova, chegou à fazenda barriguda de neném. Depois de alguns meses foi embora deixando um menino aos cuidados da avó. Na verdade quem zela da criança é Quica. Balança suavemente o berço. Sussurra uma canção de ninar: “Boi, boi...boi da cara preta, pega esse menino...” Seu canto sai triste. Está macambúzia com a lembrança dos pais; cochila junto com o menino.

Uma luz oscilante de lamparina não decide se fica acesa ou se apaga com o vento fraco que entra através das frestas do telhado antigo. Acorda sobressaltada com o choro do menino. Já faz uma semana que ele chora quase sem parar. Seu umbigo crescera até estufar. Quica está para morrer de tanto sono. Mas o choro quase aos gritos não lhe dá sossego hora nenhuma. Sente o cheiro do mato misturado com as fezes do gado. O canto monótono de um curiango ecoa na noite. Ou seria voz de assombração? Está confusa pela falta de um sono longo e reparador. A mente tonta de sono vacila com pensamentos disformes.
      
 Mas, não descuida do menino. Procura fazê-lo dormir, quem sabe assim ela poderia dormir um pouco. Tem de ser disfarçado, pois se os patrões a pegam dormindo, talvez leve uma surra. Tem medo da patroa velha, gorda e má. Com sono sua cabeça fabrica sonhos alucinantes e terríveis. A avó do menino, com cara de fantasma, aparece com uma lamparina na mão. Na outra, uma caneca de chá feito com o sumo do assa-peixe branco. Pode ser bronquite. A velha dá o remédio e volta ao seu quarto com suas vestes brancas fantasmagóricas que balançam até desaparecer no corredor longo e madeiroso do casarão secular. Tóc-tóc-tóc, o tamanco martela os ouvidos de Quica. O sono irresistível distorce sons e a sua imaginação voa alucinada.
          
Sonha com bezerros negros caindo no rio pedregoso que desce das serras em volta da cidade. A correnteza arrasta os bezerros água abaixo. Depois sonha dormindo um sonho longo e profundo; o metasonho pouco ameniza sua vontade de dormir. Volta o choro berrado do menino e a desperta bruscamente. Pela primeira vez sente raiva daquela criança. 
        
Sai o sol. Os animais e os pássaros fazem festa no milharal. Tudo parece alegre; menos Quica. Dormir é a sua maior obsessão; ficaria até sem comer para dormir um sono pesado e sem preocupações. Distraída nem percebe que o menino chora. Sonha abandonada numa estrada sem fim perseguida por enormes caititus. Sobe num cupinzeiro alto, quando sente um empurrão forte. Era o patrão que a despertara com um soco nas costas. Vê a cara do patrão enfurecido gritando aos berros para olhar o menino. O garoto chora desesperado; parece manha. Sua ojeriza pelo patrão aumenta e tudo que cerca aquela casa tem um tom escuro de revolta. Ninguém a deixa dormir.
          
Sua patroa ordena: - vá, agora! lave a roupa que está no batedouro e depois varre a casa, inclusive a varanda e o quintal. No fim da tarefa o menino volta a chorar. Antes de a velha ficar nervosa, corre ao quarto para cuidar do menino.
         
Diabos! Esse menino nunca dorme; chora noite e dia sem parar. Nisso, ouve o tropel de cavalos apressados chegando à porta da sala. Era o peão a dizer que o médico chegava para ver o menino doente. Um Fordinho 29 ronca sobre o mata-burro. Enfim chega o médico novo e disposto. Entra na casa com suas botas rangedeiras de couro e vai logo ao quarto do menino. Após o exame decide levá-lo ao hospital, distante quatro léguas da fazenda.
             
 - Quem vai comigo para fazer-lhe companhia?
           
Quica receou que fosse ela a escolhida. Ponderou, em silêncio, que a patroa velha e doente não suportaria cuidar das tarefas pesadas da casa. Para sua sorte a patroa se prontificou em ir com o neto, talvez pensando em rever as comadres da cidade. A empregada se sentiu no céu.  Sem ter de cuidar do menino poderia dormir na sua cama de colchão feito de capim, ou quem sabe, à sombra da mangueira mais sombrosa do quintal. Coou o café de despedida. Saíram o três ao som estridente da buzina do  Fordinho  que berrava pelo caminho.
                 
Então, Quica se sentiu a mais feliz das escravas. Podia, agora, dormir e sonhar livremente.

                    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raizes Jornalismo Cultural, na Fonte TV e Canal Metrópole (raizestv.net). Escreve ao sábados no DMRevista.