sexta-feira, 19 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

A hora do Ângelus

O dia havia passado mais rápido com os preparativos para a viagem de volta. O sol caía pelo lado do Mato Grosso. Enquanto ajeitávamos as coisas da pescaria num tosco batelão de madeira, um bando de curicacas voava agitado com vozes esganiçadas. O agito das aves talvez fosse porque representávamos ameaça aos seus ninhos feitos numa macega da parte úmida da praia. O canto histriônico das guardiãs da praia ecoou longe. Mais do que a música amplificada dos acampamentos dos turistas do inventado verão em pleno inverno no calendário. 

Julho é mês de férias nas praias do Rio Araguaia. Centenas - talvez milhares - de barracas abrigam gente de todas as partes, principalmente de Goiânia. Nossa pescaria estava encerrada e o destino era o porto de Bandeirantes. O piloto avisara que chegaríamos lá depois da hora do Ângelus. Isso me fez pensar nos sagrados deveres cristãos de quem lida com os perigos iminentes de um naufrágio. Afinal, as águas do Araguaia encobrem paus que rodam com a enchente e a areia que se move com o peso das águas. A fé católica do piloto é uma espécie de mantra a proteger os navegantes do rio.  

Vi que na proa do barco tinha uma pequena cruz de madeira. Mais confiantes colocamos todos os apetrechos e bugigangas dentro do barco. Em seguida, pois fé do homem é fraca, entramos com os coletes salva vidas. Aproximava das seis da tarde. O comandante rezou uma ave-maria. Permanecemos em silêncio acompanhando em pensamento a oração da tarde. Segundo a crença do piloto essa reza é um louvor para encerrar o dia e abrir a noite. O crepúsculo se encheu de poesia e santidade. A misteriosa beleza colorida do poente tingiu o céu de vermelho escarlate. Iniciamos a partida sob um cenário dourado. As águas pareciam correr com ondas de ouro derretido.  

Havia no ar um sentimento sobrenatural que reconhece a fragilidade humana diante da onipotência de Deus. A própria natureza sentia-se manipulada por uma força descomunal. Um peixe filhote da cor dourada saltou na vertical a uns duzentos metros de nós. A noite chegava. O barqueiro despertara em nós, por meio da prece, uma emoção contrita. Cada um fazia sua prece inspirada pelo que sentia naquele instante. 

Nenhum pincel ou nenhuma literatura pode reproduzir a peculiar visão do pôr-do-sol no Araguaia. Porque a grandeza está no íntimo de cada ator que participa do cenário da vida como uma ensaiada peça de teatro. 

A hora da elevação da prece misturada com a beleza natural é o retrato irretocável da fraqueza humana que clama por proteção e da onipotência de Deus que tudo vê, ouve e observa.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.  



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