segunda-feira, 22 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

Versos na luz



Por ocasião da fuga dos hebreus do Egito rumo à terra da promissão, Deus ordenou que Moisés construísse um tabernáculo - O primeiro Templo do Senhor – erguido ao pé do Monte Horeb, no deserto de Sinai. O primeiro tabernáculo foi uma tenda provisória construída por Moisés, Aholiabe e Bezaleel onde o Senhor falava com o seu povo. O formato, em paralelogramo, media dezoito por seis metros, com entrada pelo Oriente. A cobertura e as laterais tinham cortinas de linho retorcido de cor jacinto, de púrpura e de escarlate. O Santo dos Santos foi adornado com querubins de ouro. No ponto central foi colocada a Arca da Aliança.

Depois da dedicação do Templo uma densa coluna de nuvem pairou sobre ele durante o dia e a noite uma vigorosa coluna de fogo escancarava a presença de Deus. As colunas de nuvem e fogo passaram a acompanhar o Tabernáculo nos deslocamentos do povo santo.

O segundo Templo, construído por Salomão, no coração do santo Monte Moriá, cerca de mil anos após esse feito, em torno do ano 1.015 A.C., recebeu todo o acervo do Tabernáculo para onde foi transferida a Arca da Aliança e todas as peças fundidas em prata e ouro.  Os símbolos sagrados e alegorias celestes foram transferidos para o Templo de Jerusalém. Depois, destruído por Nabucodonosor, em 521 A.C., é celebrado como uma das mais magníficas construções do homem.

Com o retorno dos hebreus do cativeiro babilônico, Zorobabel, príncipe do povo; Ageu, o profeta; e Josué, filho e assistente do Sumo-sacerdote, receberam ordem de reconstruir o Terceiro Templo - o segundo de Jerusalém - sob os escombros do destruído Templo de Salomão. 

No ano 70 da era cristã Tito, imperador romano, destruiu toda Jerusalém e o Templo de Zorobabel foi junto.  Só restou uma parte da muralha para mostrar o poderio do Império Romano. E os judeus, há séculos, lamentam a destruição do sagrado templo aos pés da muralha; hoje é o muro das lamentações. Hoje, quando escrevo essa crônica semanal, penso na construção e reconstrução desse arquétipo sagrado. Isso me faz pensar que devo desconstruir em punhado de equívocos da jornada terrena e remover cada pedra dos descaminhos.

Nessa manhã arrasto pesadas correntes de lembranças com enormes bolas de ferro nas pontas. Arrasto-as com as forças que me restam. Bendigo o sol que ilumina outras terras e outras eras. A mesma luz que vejo todos os dias também é vista por todos os irmãos. Esse olhar igual e fraterno nos faz uno na essência. Fiz essa digressão histórica tentando engambelar meus pensamentos. Em vão.  Desde a impressão da primeira letra dessa crônica que penso nela. 
   
Hoje, Senhor, minhas lembranças exprimem versos de luz a quem se foi para o céu há quase dois anos: minha filha Karolline Jacob Naves. Fernando Pessoa zarpa do seu Tejo para me ajudar nas minhas quimeras. “Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, e vendo-a sempre de maneiras diferentes”. Penso nela. É só isso que eu quero nessa manhã. Nada mais peço a Deus, só pensar.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 20 de julho de 2013)

     
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista. 
sexta-feira, 19 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

A hora do Ângelus

O dia havia passado mais rápido com os preparativos para a viagem de volta. O sol caía pelo lado do Mato Grosso. Enquanto ajeitávamos as coisas da pescaria num tosco batelão de madeira, um bando de curicacas voava agitado com vozes esganiçadas. O agito das aves talvez fosse porque representávamos ameaça aos seus ninhos feitos numa macega da parte úmida da praia. O canto histriônico das guardiãs da praia ecoou longe. Mais do que a música amplificada dos acampamentos dos turistas do inventado verão em pleno inverno no calendário. 

Julho é mês de férias nas praias do Rio Araguaia. Centenas - talvez milhares - de barracas abrigam gente de todas as partes, principalmente de Goiânia. Nossa pescaria estava encerrada e o destino era o porto de Bandeirantes. O piloto avisara que chegaríamos lá depois da hora do Ângelus. Isso me fez pensar nos sagrados deveres cristãos de quem lida com os perigos iminentes de um naufrágio. Afinal, as águas do Araguaia encobrem paus que rodam com a enchente e a areia que se move com o peso das águas. A fé católica do piloto é uma espécie de mantra a proteger os navegantes do rio.  

Vi que na proa do barco tinha uma pequena cruz de madeira. Mais confiantes colocamos todos os apetrechos e bugigangas dentro do barco. Em seguida, pois fé do homem é fraca, entramos com os coletes salva vidas. Aproximava das seis da tarde. O comandante rezou uma ave-maria. Permanecemos em silêncio acompanhando em pensamento a oração da tarde. Segundo a crença do piloto essa reza é um louvor para encerrar o dia e abrir a noite. O crepúsculo se encheu de poesia e santidade. A misteriosa beleza colorida do poente tingiu o céu de vermelho escarlate. Iniciamos a partida sob um cenário dourado. As águas pareciam correr com ondas de ouro derretido.  

Havia no ar um sentimento sobrenatural que reconhece a fragilidade humana diante da onipotência de Deus. A própria natureza sentia-se manipulada por uma força descomunal. Um peixe filhote da cor dourada saltou na vertical a uns duzentos metros de nós. A noite chegava. O barqueiro despertara em nós, por meio da prece, uma emoção contrita. Cada um fazia sua prece inspirada pelo que sentia naquele instante. 

Nenhum pincel ou nenhuma literatura pode reproduzir a peculiar visão do pôr-do-sol no Araguaia. Porque a grandeza está no íntimo de cada ator que participa do cenário da vida como uma ensaiada peça de teatro. 

A hora da elevação da prece misturada com a beleza natural é o retrato irretocável da fraqueza humana que clama por proteção e da onipotência de Deus que tudo vê, ouve e observa.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.  



terça-feira, 9 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

O silêncio de Seriema

A Seriema tagarela corre pelo cerrado ensolarado como se fosse o seu palco exclusivo. Num palco iluminado pelo sol é mais fácil aparecer. Seriema subiu em um cupinzeiro com os sentidos abertos a uma determinada aparição. A ninfa alada avistou, longe, um pássaro de plumagem negra, topete encrespado e bico de cores vivas, destacando o lilás.  Assim é o Mutum. Seriema o via como o pássaro mais bonito do mundo. Por esse motivo Seriema cantava noite e dia, fosse no meio da mata de galeria ou no descampado. Mutum chegou mais perto e ela fez de tudo para conquistá-lo. Ele a desprezou com fizera outras vezes. Aliás, as leis da natureza não registra nenhum romance entre uma seriema e um mutum; são espécies diferentes.
 
Nas conversas com outras seriemas o assunto dela sempre foi Mutum. Virou obsessão. Até que a esposa de Mutum desconfiou do interesse de Seriema pelo seu marido. Vendo que poderia perder Mutum desandou a falar mal dele. É um sem-vergonha que vive atrás de qualquer rabo de penas. Seriema o defendeu dizendo que Mutum era um pássaro fiel. A esposa culpou Seriema pelo fracasso em não flagrar a traição de Mutum e a condenou a baixar o rabo, ao contrário da cauda arrebitada que Seriema ostentava antes desse episódio. 
 
Mas não desistiu de conquistar Mutum. Em todas as tentativas ele a desprezara. Seu canto alegre e estridente passou a ser um canto triste. De tanto ser cortejado Mutum se achava mais bonito do que o urubu-rei. Um dia ensolarado foi beber água num riacho de águas límpidas e espelhada. Nisso viu a sua própria imagem e se apaixonou. Passou a viver somente cultuando aquela imagem, para ele apaixonante e arrebatadora. Nem se preocupava mais em beber e comer. Fraco, foi definhando até morrer. Seriema, sempre atenta aos movimentos do amado, o enterrou próximo a uma queda d’água. No lugar nasceu uma cintilante flor lilás chamada quaresmeira.
   
Desde então o canto de Seriema ecoa roxo pelo sertão. Quando para de cantar talvez pense em Mutum. Mais triste que o canto é o seu silêncio.
 
 
(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em julho de 2013)
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (wwww.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
segunda-feira, 1 de julho de 2013 | By: Doracino Naves

Angu sem caroço

Estamos em junho, mês em que o céu é mais estrelado. Perdoai-me por não descrevê-lo com poesia. Hoje não estou animado para isso. Para falar a verdade, também não sou poeta, embora tenha na minha estante, entre outras, a ótima poesia de Fernando Pessoa. O melhor então é olhar o céu e soltar a imaginação.  Miríades de estrelas estão acesas sobre Goiânia, mas as lâmpadas das ruas atrapalham a visão esplendorosa da abóbada celeste nesse mês de festas de São João. Se tivéssemos postes de luz baixinhos, rentes ao chão, as estrelas seriam mostradas aos nossos olhos. Mas, não, foram inventados altos por um maluco para esconder o céu.
     
Na roça é mais fácil ver as estrelas. Pois é, no mês de junho o céu do Centro-Oeste é o mais bonito do Brasil. Tem razão o caipira em preferir a lua e as estrelas às luzes da cidade. Talvez seja mais fácil entender nossa missão na terra quando percebemos a poesia inebriando da natureza a afetar os sentidos; leva-nos a pensar sobre a magia do universo abissal e a nossa diminuta condição humana. Impressionante como a natureza é mais bela e aprazível nas condições naturais. O homem do campo, ao contrário do urbano, sabe que a sua sobrevivência depende do respeito aos ciclos de cada coisa. A água, a lua, as estrelas, o sol, as árvores e tudo que o cerca merece atenção dobrada. Para esse tipo de homem o mundo externo ao seu é um angu sem caroço. A boa vontade com o mundo faz parte do seu cotidiano.
    
Tudo é espontâneo na vida dos simples. É comovente o carinho do roceiro ao lavrar a terra; preparar a hortaliça ou cuidar dos animais. Há um incontido respeito e veneração em cada ato, criando um liame que traduz a perfeita moral do cuidado com a natureza e suas próprias necessidades. Na cidade tudo é disfarçado: o asfalto cobre o chão; as lâmpadas artificiais ofuscam as estrelas; a palavra lisonjeira revela uma multidão de bajuladores dissimulados.
     
Mas o céu cobre a todos sem distinção. Então, olhemos com respeito para o alto. Descrever o céu estrelado com a poesia humana é tentativa vã. Melhor mirar os olhos no céu e se animar com a insofismável poesia das estrelas.
    
Descrever isso com palavras é tarefa difícil e imprecisa.
    
Olhai o céu! Ele estará sempre disponível a quem tem olhos para perceber a transcendental eternidade do universo, mesmo depois que tudo no planeta seja pó ou que as pedras se desfaçam em minúsculos grãos de areia. 
    
Olhai o céu e faça o seu pedido.
          
    
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.

O além nasce na primeira madrugada do inverno


Aqui começamos esse inverno de secura no cerrado. Se, nessa época, a previsão indicar umidade maior de que a habitual é novidade. Mas, a tradição recomenda diminuir as atividades físicas e até dormir com uma bacia d’água perto da cama. Enquanto a ventania de agosto não chega a única brisa que move o mundo é a lembrança de outros anos secos que nem gosto de lembrar. Uma vez compramos tecido numa loja do centro para fazer roupa. Arnóbio, alfaiate famoso na Vila Nova, foi quem costurou a minha calça feita de casemira axadrezada, tecido inglês quente 'pra caramba'. A camisa domingueira era chamada de Volta ao Mundo. Vestidos assim, íamos ao cinema.
         
O retorno a pé para casa, em um trajeto sem árvores e poucos prédios, era penoso com o suor escorrendo por dentro da roupa. Insuportável. Hoje, quando passo pela Rua 3, procuro uma sombra para respirar o ar fresco de uma árvore ou a marquise de um loja. Do outro lado da rua um casal toma sorvete com guaraná. E me vem à memória aquela roupa imprópria ao nosso clima que usei um dia; durante muitos anos tive alergia por causa da calça de casemira. A recordação é o único meio de juntar ideias e palavras. Voltaire descreveu a memória como sendo o centro do sentido e do senso. Esse exercício das lembranças de ontem e de hoje reúne a essência da cidade e o destino cosmopolita de Goiânia.
              
Às vezes imagino que este cronista viveria melhor em uma cidade de temperatura mais amena. Mas, a alma de Goiânia me chamou primeiro. Sonho que Paris, mesmo na artificial definição de cidade luz, é mais atraente do que Dubai porque tem uma alma boêmia e romântica. Pois é, vejo Goiânia com essa vocação vadia. Se hoje é desvairada não foi por culpa dos românticos precursores.
             
Enquanto imagino coisas uma mulher se aproxima com uma Bíblia na mão. Diz-me antes de tudo: Jesus te ama! E me olha firme nos olhos. Talvez tenha pena da minha comprovada ignorância a respeito da vida. Traz a tiracolo uma bolsa com dizeres impressos em papel sujo por outras mãos. Cinquenta centavos por um pedido e o exemplo de um espírito iluminado para amenizar o sofrimento de quem vive nesse mundo. Essas palavras são para mim. Entrego-lhe duas moedas de vinte e cinco centavos.
                
Entre outras, ela tira uma mensagem de León Denis: “Padeci, e só os sofrimentos é que me tornaram feliz. Resgataram muitos anos de luxo e ociosidade. A dor levou-me a meditar, orar e, no meio dos inebriamentos do prazer, jamais a reflexão salutar deixou de penetrar minha alma, jamais a prece deixou de ser balbuciada pelos meus lábios. Abençoadas sejam as minhas provações, pois finalmente elas me abriram o caminho que conduz à sabedoria e à verdade”. 
                 
Devolvo a mensagem com um leve sorriso. Sinto que o autor foi em cima do que eu sentia naquele momento. Volto à realidade com o calor da tarde. Assim é Goiânia, assim Deus a escreveu como portal de uma civilização típica desse mundo.
                
O passar do tempo faz a gente se desfazer de muitas arestas. O além nasce na primeira madrugada do inverno.
                
Perdi folhas nesse outono, ganhei novas; quero viver a eternidade da próxima estação.
                
Estou a caminho...
                         
Doracino Naves, jornalista: diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV e Canal Metrópole (www.raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.