segunda-feira, 26 de maio de 2014 | By: Clara Dawn

Menina do Araguaia

Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2014

                    Pôr do sol na tarde quente do Rio Araguaia.  Árvores, pássaros, buritis sobrepostos sob o céu cor de abóbora formam um cenário de teatro de sombras. Ouvem-se as aves barulhentas em busca de abrigo. Um lagarto sinimbu levanta a cabeça acima do tronco do pau seco; espectro testemunhal do fim de tarde quando a onça pintada sai da toca. Os rios Javaés e Araguaia ainda estão cheios. É a primeira lua nova do outono, começo de noite do dia 29 de abril de 1975, na Ilha do Bananal.

                    Marcílio, o piloto do batelão Menina do Araguaia, pintado de azul e vermelho, se prepara para mais uma viagem. Nas laterais, amarrados com cordas, há três canoas de madeira para o caso de naufrágio. A tripulação era ele e mais dois ajudantes. Uma névoa fina cobre o rio. O batelão abarrotado de utensílios, índios Carajás, e alguns brancos acostumados com o rio; homens, mulheres e crianças deitados em redes amarradas nas frestas do barco. O piloto liga o motor a diesel. Manobra preciso o barco para evitar os bancos de areia. Depois de cerca de duas horas os passageiros dormem.

                   Menina do Araguaia tem uns oito metros de comprimento e, talvez, quatro de largura. As batidas do motor ecoam longe. Marcílio se orienta pela mata ciliar igual a um motorista que baliza a estrada pelas faixas laterais do asfalto. Ele conhece bem o percurso do rio: as curva; barrancs; ilhas pequenas e árvores fincadas na areia durante as enchentes. Marcílio acumulara muita experiência nessas viagens. Enquanto isso pensa na família e possibilidade de reformar a Menina do Araguaia. Necessita de dinheiro para comprar o material: tinta, pincel, lixas; essas coisas.

                   Por isso não recusa nenhuma viagem, mesmo que seja imprescindível viajar à noite sem lua. Um crucifixo com a imagem de São Cristovão o acompanha sempre. Passa da meia noite. O batelão avança devagar no escuro da noite. Um tosco lampião ilumina o cubículo de onde conduz o barco. Por causa da névoa, o farol da proa mal ilumina um metro a frente. Valei-nos, meu santo, nessa noite de barco cego. O motor Perkins, retificado em São Miguel, faz o barco  deslizar sobre as águas ainda turvas do Rio Araguaia. Aquele contínuo bater do motor dá sono.

                  Nisso ouve o motor falhar; após, para por completo. Marcílio desce com a lanterna para verificar o que acontece. Depois de mexer rapidamente nas peças desiste e volta ao leme, pois algum obstáculo pode fazer o barco virar. De súbito visualiza uma árvore plantada com galhos secos no meio do rio.O batelão vai direto ao tronco forte da árvore. Talvez seja um jatobá de barranco que caíra nas águas com o bater continuado das ondas.

                   O choque violento reúne todos no centro do barco que roda como se estivesse dentro de um funil. As crianças choram no escuro. Mesmo sendo bons nadadores, os carajás, zonzos pelo rodopiar do barco, ficam quietos. Quando param de girar alguns correm de um lado ao outro sem atinar para o perigo do tumulto dentro de um navio. Marcílio, com receio de o barco virar, pede calma a todos. Olha em volta e não vê sinal da mata, nem visualiza coisa alguma; estão no meio da parte mais larga do Araguaia. O pior é que o barco, inexplicavelmente, continua parado no breu da noite sem lua.

                  Alguma coisa retém o barco nessa posição. Marcílio dá ordem ao ajudante para verificar a razão de o barco permanecer imóvel. anuncia com o tronco de ponta cabeça: é uma árvore, comandante, os galhos estão segurando nosso barco. Marcílio dá outra ordem: desçam as canoas e salvem-se. As mulheres e as crianças vão primeiras. Por último os homens.  Todos obedecem ao comando da grande alma do piloto, a quem conhecem há muito tempo. Os barquinhos ficam cheios de gente a ponto de transbordar com a superlotação. Ele recomenda: vão com cuidado até encontrarem um lugar seguro.  

                 O rio, as águas revoltas em torno da embarcação e todas forças da natureza prestam a última homenagem ao comandante que conduz aquele infortúnio. O batelão, com o casco avariado pelo impacto, começa a naufragar nas águas do Rio Araguaia. Marcílio, com pose de capitão do Titanic, afunda junto com a Menina do Araguaia.

                Depois da morte trágica o corpo do piloto nem flutua. 

              E o céu do alvorecer desse dia acorda com as cores do último pôr do sol. Os ribeirinhos até hoje reverenciam seu herói. 

Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2014.

Torrentes de loucos


   
Publicada em 23/05/14 -Diário da Manhã - Goiânia - Goiás
  Vamos imaginar que eu e você, leitor, somos velhos amigos. Então, entre nós, há sinceridade para abrir os segredos guardados na memória e nas experiências da vida. O dia a dia, de recordações e vivências, é uma fonte de histórias interessantes. Acreditar nas percepções da vida é uma necessidade de quem escreve. Acredito no que escrevo; por isso alinhavo as histórias coloridas com o pincel da minha imaginação e faço a minha tarefa literária da semana com o pensamento no leitor. Se não tenho muitos leitores, gosto de pensar que é uma multidão.  

     Antes de prosseguir com o tema de hoje revelo o meu espanto com a escritora Patrícia Secco que mutilou a obra de Machado de Assis em troca de um milhão de reais do Ministério da Cultura. Ela jogou por terra a construção gramatical da linguagem única do autor de O Alienista que, nessa revisão, perdeu o encantado ritmo narrativo machadiano. E aí, Edival Lourenço? Pois é, professor José Fernandes. Agora que pensava ter aprendido a usar o ponto e vírgula, vem essa mulher, em nome do acesso à leitura, a retirar esse sinal de pontuação da obra fundamental do criador da Academia Brasileira de Letras. Completa heresia. Machado de Assis sem estilo é o fim da picada.  Mas, por pirraça, não paro de usar o ponto e vírgula; acho-o chique.

     Já que lembro Machado de Assis, escrevo no seu ritmo como se estive deitado em uma rede da Bahia; calma e buliçosa como são as baianas de Dorival Caymmi.  É manhã de sábado. Imagino o amigo leitor sentado numa cadeira na sacada do prédio ou debaixo de um guarda-sol de piscina; com as pernas sobre uma mesinha. Abre o jornal e lê as notícias do dia. No espaço que me é reservado no DMRevista está a minha crônica semanal.

      Cada um de nós tem um jeito de ler jornal. Posso imaginar o leitor dentro do carro a folhear com dificuldade as folhas do jornal sobre o volante. Como você me permite ser seu amigo imagino-o a pegar um DM antigo. Como não tem outra coisa para ler sente-se atraído pelo título desta crônica e lê.

       Quem escreve deseja encontrar um leitor imaginoso. Assim, a gente viaja juntos pelo tempo. Lembrando das boas e más coisas do passado como se fosse uma folha seca de laranjeira dentro de um diário de memórias ou o edifício que ruiu com o peso do telhado.  Para um autor que tem um leitor romântico o futuro de utopias é real. Mas, é preciso ter a fé de Abraão para perceber que existe algo verdadeiro no fim da linha.

        Aí, o leitor ajeita os óculos e começa a ler. Do modo como somos amigos sinceros, podemos imaginar tudo. Uma poesia de Fernando Pessoa faz psiu! “Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. Passo e fico, como o Universo”.

Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em maio de 2014.