sexta-feira, 30 de dezembro de 2011 | By: Doracino Naves

Machado de barro

Ouço uma voz antes de começar a escrever: Vila Coimbra, Setor Coimbra. Prefiro Vila Coimbra. Ela pisca-me um olho. Volto no tempo e a primeira recordação da Vila Coimbra vem na imagem de uma bela morena. Num dia qualquer do começo de 1960 uma menina lampeira passa em frente ao Tecidos 3-B. Vestida com pueril vestido de chita com fitas vermelhas a adornar a cintura de pilão. Nos pés, incrivelmente limpos, um par de delicadas sandálias de couro pisavam as ruas empoeiradas da então Vila Coimbra. Solto meus sonhos para os lados da Alameda das Rosas. Ah, Vila Coimbra. Sua voz sussurra nos meus ouvidos:

- Sou fruto dos pioneiros.

Plantada na lonjura entre Goiânia e Campinas a Vila Coimbra foi o primeiro modelo de condomínio horizontal da nova cidade.  Aqui, igual à Vila Nova, não tem prédios altos.  Num improvisado campinho de terra batida uma bola, atrevida descobridora de garrinchas, corta o vento carregado de miríades de reluzentes fragmentos de areia. A fugacidade dos sonhos dos meninos naquele pequeno campo de terra tornava-o um "maracanã" a roçar os ouvidos com segredos que seriam guardados na memória.

Na planície daquele que seria o edifício dos jornalistas um bando de garotos rivalizava o jogo de futebol quase sem regras. Humberto Acioli já falou da turma do futebol do campinho onde hoje é uma agência do INSS. Glória a ti, Vila Coimbra. Humberto, talvez todo aquele pessoal, hoje, pode dizer bem alto:

"Saí do milho, virei visconde a ensinar os sonhos da infância alegre ao mundo".

Posso lembrar, pelos registros de Humberto Acioli, uma turma que levou adiante o sonho de artista: Ângelo Lima, Miguel Jorge, Sérgio Pato, Martiniano Rossi e o jornalista Ulisses Aesse. Sob a brisa da magia do Setor Coimbra de hoje revisitei ruas e passagens da antiga Vila Coimbra. Na Rua 255 revi a casa onde morou Kleber Adorno nos anos setenta de século passado.

Logo adiante a casa do João Viola, um irmão que, aos acordes do seu instrumento preferido, ouviu muitos dos meus sonhos de neófito venerável com uma página branca a desafiar a escrita que ficou guardada por muito tempo em meu coração.  Sou um grafiteiro de palavras vãs. Longe de ser um artista que põe cores na tela. Sou escritor de coisa nenhuma. Minha alma permanece roceira e caipira com todos os erres da roça. Um tanto e quanto ingênua a lascar aroeira com machado de barro. Difícil esculpir um texto sem a ferramenta da palavra precisa. Quando escrevo parece que a página permanece virgem.

Igual a aquele edifício comercial da Avenida Assis Chateaubriand com enormes paredes brancas a desafiar os grafiteiros anônimos que colocam suas marcas enigmáticas nas limpas paredes.

Lá está escrito:

“Senhor grafiteiro, conserve branca esta parede. A direção desta empresa faz doação semanal de uma cesta básica em homenagem ao senhor que a mantém assim. Por essa causa peço-lhe, senhor grafiteiro, ajude-nos a cumprir o nosso compromisso. Mantenha este paredão branco”.

“Gratos.”

Vila Coimbra. Também pode ser Setor Coimbra. Como desejar o leitor. Da mesma magia do piscar de olho chega um sorriso aberto que reacendeu o amor da primeira vista que continuou na última visita aos recônditos lugares das quimeras da juventude. Saí do Setor Coimbra com a impressão de que a Vila Coimbra se tornou - para sempre - uma canção no meu destino. A voz do começo dessa crônica sugere as palavras finais: Vila Coimbra, Vila Coimbra.
terça-feira, 13 de dezembro de 2011 | By: Doracino Naves

Retrato da Solidão

O Setor Aeroporto é artificial. Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima esfolaram a terra para construir o primeiro aeroporto de Goiânia; deformaram o cerrado com suas máquinas de fazer ruas. Aliás, o planeta terra está desfigurado para atender as necessidades do homem. E continua sendo desfeito para plantar, construir fábricas e cidades. Então, Goiânia é artificial e o Setor Aeroporto também. Lá tem uma réplica do 14 Bis na Praça do Avião que, de 1930 a 1950,  foi cenário de desfile de moda a esperar o avião que chegava do Rio de Janeiro ou de São Paulo. As mulheres passavam elegantes, vestidos de rendas com babados românticos e sombrinhas coloridas rodopiando no ar. Os homens vestiam ternos de linho branco 120 ou Pitex inglês. Getúlio Vargas, na sua Marcha para o Oeste, pisou o solo do Setor Aeroporto para abraçar Pedro Ludovico Teixeira.

No Setor Aeroporto não tem gatos. Há muito que eles foram dizimados por um açougueiro vindo do nordeste. Certamente eles viraram churrasquinho na Praça do Avião. A egrégora dos gatos criou limites para proibir a entrada dos gatos no Setor Aeroporto; da Avenida Oeste ao Córrego Capim Puba e da Avenida Anhanguera à Independência. O caçador de gatos mudou de ponto; os gatos, escaldados na água quente do churrasqueiro, fugiram de medo da água fria do Capim Puba. O sol crispa solerte sobre os telhados do Colégio Agostiniano e da nova Igreja da Praça que tem arquitetura moderna. Os primeiros moradores construíram suas casas no meio de pequizeiros, lobeiras e gabirobas rasteiras que faziam sombras para esconder a cascavel do cerrado.
Por causa dessa mania de fazer cidade no meio do mato penso que Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima foram homens solitários. O prefeito Venerando de Freitas Borges, alegre dançarino dos pagodes caipiras, punha fogo na alma dos primeiros moradores. A antiga Estação Rodoviária, grande para o começo da cidade, tinha pouco movimento de ônibus.  Nessa época eu trabalhava numa loja de tecidos em frente ao Teatro Inacabado. Ao passar pela Rodoviária vi um velho solitário com uma pequena mala de couro rústica sentado num banco isolado. Tinha as pernas cruzadas; os pés calçados com botinas. Na cabeça um surrado chapéu de feltro. O olhar perdido no infinito. Do aceso pito de palha tirava longas baforadas. A fumaça sumia com o vento. Um retrato eloquente da solidão.
Parei por um instante para observar a figura emblemática daquele homem. Por um momento me lembrei do meu avô Cláudio, que ficara em Porto dos Barreiros. Fiquei com pena daquele velho solitário da Rodoviária. De onde ele vinha ou onde estava indo pouco importava; foi a figura triste e sorumbática que me fascinou. Será que alguém o deixara ali ou ele teria chegado de viagem e aguardava um parente que deveria buscá-lo?  Não me aproximei para falar com ele. Preferi manter a aura de mistério que eu criara diante daquela imagem. Assim, qualquer que fosse o seu destino eu não me sentiria responsável por ele. Cumprimos o nosso dever; eu o de gravar aquele instante na mente e ele o de expor ao mundo a sua figura solitária.
Saí com aquela opinião impressa na minha mente. Desde então, quando penso numa figura solitária, vejo aquele velho sentado no banco da rodoviária. Sofro no despertar das minhas lembranças usurpadas por fantasmas e armadilhas ancestrais. Navego entre multidões e desencontros.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011 | By: Doracino Naves

Tamancos de ferro

O Setor Oeste é charmoso. Lá os dias se debruçam no peitoral das janelas do Bosque dos Buritis e do Lago das Rosas. Todas as árvores se entregam submissas ao vento.  Goiânia é assim, múltipla e universal. Com os cotovelos na janela e as mãos no queixo a alma goianiense observa o tempo passar. O Setor Oeste é um lugar ameno. Mas, as luzes que cintilam das ruas na madrugada despertam fantasmas a acompanhar os insones. No silêncio da noite os sons vestem assustadores lençóis brancos.    
Quando nasce o dia no Setor Oeste é sempre manhãs de outono. Há gritos de Oceano! Oceano! na praça do almirante. É o lamento que chega pela inesperada homenagem a Tamandaré sem reparar na onipresença dos pioneiros na história de Goiânia. Nem os arranha-céus do futuro poderiam ser ouvidos. Para compensar a escolha faz tempos que a Praça Tamandaré tem bondosos ares de Natal a soprar no túnel da Avenida Assis Chateaubriand. Vento, ó vento, traz notícias do almirante que, sem pedir e sem conhecer Goiânia, navega seu barco nas terras secas do cerrado. Essas imagens chicoteiam no lombo das ondas que navegam entre os prédios, árvores e a estátua do almirante.
Fecho os olhos para não ver a frota que chegou nem sei se do Atlântico ou do Pacífico. Viro o corpo, à direita e à esquerda, cansado de noites sem dormir à espera da alvorada. Dezembro, dezembro. É do natal passado de que me lembro.
Os sons notívagos adiam as minhas madrugadas ressuscitando os monstros que habitam as trevas. São sons estranhos a zunir nos ouvidos do pesadelo. Um simples caminhar no andar de cima ressoa como se fossem pisados com tamancos de ferro. A imaginação é capaz de inventar coisas absurdas.
E exagera na percepção errada que vem acompanhada por assombrações de uma mente estressada pela insônia. Do meu quarto vejo uma lâmpada acesa no prédio vizinho, amarela de medo. Acende e apaga várias vezes na noite. O vizinho não se conforma com a luz nem com a escuridão. E prende uma fita dourada de esperança no preto céu da noite.
Um dia desses, no andar de cima, ouvi passos apressados seguidos de outros ainda mais apressados. Pela maciez dos primeiros deveriam ser de mulher. Já os outros passos, pesados, pareciam de homem. Pensei serem de um marido correndo atrás da mulher com uma faca enorme, luzidia, tipo peixeira. Minha mente lembrou Hitchcock em seus filmes de suspense. No outro dia, ainda cedo, quando ia para o trabalho, os dois – marido e mulher – se despediam com beijos e juras de amor à porta do elevador. Alívio para a minha alma ainda sonolenta.
Quem padece de insônia a noite tem a companhia de mil personagens, todos bêbados, trôpegos e mascarados. Para o ator só a máscara lhe é suficiente, cobre suas verdades. Ao poeta é a palavra que esconde suas angústias do viver. Quando ao pintor, na intenção de colorir sua alma dual – do dia e da noite - cobre a tela branca com tintas coloridas.
E quanto a mim só Deus pode romper o negro das noites sem sono. E aí, no fundo d’alma, surgem cânticos de anjos alados rumo ao céu. Deus me é suficiente. Este ponto colocado depois da palavra “suficiente” não é o ponto final. É o recomeço do dia que vem com forte clarão rompendo as trevas.
O Setor Oeste, berço da Praça Tamandaré precisa de grandes navios a navegar os oceanos da lua. Perto dali brilha o sol nas tardes de domingo. Mas, a Praça Tamandaré, mesmo com o túnel das luzes coloridas do natal, não é mais bonita do que a praça da igreja do meu Porto dos Barreiros, a minha Atlântida desaparecida. A Tamandaré é conhecida no mundo, a da minha vila está dentro de mim, me é suficiente.
Debruço no peitoral da existência esperando a luz do fim do túnel brilhar no meu espírito.