quinta-feira, 10 de outubro de 2013 | By: Doracino Naves

Moro na possibilidade

 Passei toda a minha infância no campo e em cidades pequenas; extensões urbanas da área rural. A maior parte da minha vida, até agora, foi entre pessoas com boa atitude cultural. Aprendi a ler com professores dedicados numa modesta escola de Palmelo; o primeiro livro, na falta de obras literárias, foi o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec; ganho no sorteio do grupo Soldadinhos de Deus; idealizado no Brasil por Alziro Zarur.

     A primeira coisa que escrevi, pensando que já sabia alguma, foi uma ordinária peça de teatro encenada no pátio da escola com atores mirins improvisados. Quem dirigiu essa turminha foi a professora Madalena; filha ou nora de Jerônimo Candinho, conceituado líder espírita da região.  Essa peça tinha uma ou duas páginas escritas à mão num surrado caderno de caligrafia. A inspiração, para escrever algo assim, veio das radionovelas da Rádio Nacional do Rio de janeiro. No rádio tudo é possível; podemos imaginar o que quisermos; o rádio é nosso. A voz bonita poder ser de um galã ou de uma donzela; o jardim descrito pelo narrador tem o formato e as cores que imaginamos. Depois disso escrevi alguma coisa tipo A Vida Espiritual dos Jovens de Palmelo, a pedido do diretor da Juventude Eurípedes Barsanulfo.

       Nessa época eu tinha cerca de nove anos; fui um exemplar Soldadinho de Deus até ser pego, junto com meia dúzia de outros garotos neófitos, fumando um maço inteiro de cigarros Urca, à beira do córrego Caiapó. Fumávamos todos os cigarros para não voltar para casa com nenhum deles. Mesmo assim fomos descobertos baforando. Levei a maior surra de meu pai com um chicote trançado de couro cru. A sova me fez mudar o prumo da vida; dois anos depois minha família se mudou para Goiânia. Não foi por esse motivo, mas já passava da hora de me tornar adulto. Deixei essa ideia de escrever e fui trabalhar. Pois é, as pessoas diziam: quem escreve é desocupado. 

       Até hoje penso que escrever me toma um tempo precioso em que poderia dedicar a atividades sérias. Por isso, jamais comento com alguém sobre o que escrevo. Assim, ganho tempo para escrever o que quero fugindo de explicar o que escrevi. A respeito desse assunto Wilian Falkner disse bem: “Não sou um literato, e sim um escritor. Conversa fiada não me dá nenhum prazer”. Leio de tudo que chega às minhas mãos, até bula de remédio.  

       Prefiro poesia à prosa; enquanto prosa, que ela seja poética. Com a poesia posso calcular o peso do vento que agita a enorme bandeira hasteada no mastro da Praça Cívica; a medida exata das chuvas que rega os jardins de Goiânia; descubro na poesia o caminho tortuoso dos relâmpagos ou os decibéis do ribombar dos trovões no alto da serra. Por falar em som, toda vez que ouço tocar o sino da Catedral Metropolitana de Goiânia, às seis da manhã, vejo Anthony Quinn - o Quasimodo Corcunda - saindo da Igreja de Notre-Dame de Paris com o coração acelerado de amores pela bela Gina Lollobrigida, a doce Esmeralda. Dickinson explica melhor a sua preferência pela poesia: “Moro na possibilidade/Casa mais bela que a prosa/Com muito mais janelas e bem melhor, mais portas”.  

         Respiro esse ar úmido das chuvas recentes; às vezes tenho a impressão que vivo numa cidade estranha e respiro um ar que não é meu; julgo que nem o mereço. Ando pelas ruas cheias de gente apressada, homens afoitos que nem olham a esposa nos olhos e penso numa cidadezinha no interior ou no convívio com a pureza do roceiro que vive no campo; onde uma pessoa olha para outra sem o sentimento de estar cometendo um crime.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 05 de outubro de 2013).

          Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.