sexta-feira, 30 de dezembro de 2011 | By: Doracino Naves

Machado de barro

Ouço uma voz antes de começar a escrever: Vila Coimbra, Setor Coimbra. Prefiro Vila Coimbra. Ela pisca-me um olho. Volto no tempo e a primeira recordação da Vila Coimbra vem na imagem de uma bela morena. Num dia qualquer do começo de 1960 uma menina lampeira passa em frente ao Tecidos 3-B. Vestida com pueril vestido de chita com fitas vermelhas a adornar a cintura de pilão. Nos pés, incrivelmente limpos, um par de delicadas sandálias de couro pisavam as ruas empoeiradas da então Vila Coimbra. Solto meus sonhos para os lados da Alameda das Rosas. Ah, Vila Coimbra. Sua voz sussurra nos meus ouvidos:

- Sou fruto dos pioneiros.

Plantada na lonjura entre Goiânia e Campinas a Vila Coimbra foi o primeiro modelo de condomínio horizontal da nova cidade.  Aqui, igual à Vila Nova, não tem prédios altos.  Num improvisado campinho de terra batida uma bola, atrevida descobridora de garrinchas, corta o vento carregado de miríades de reluzentes fragmentos de areia. A fugacidade dos sonhos dos meninos naquele pequeno campo de terra tornava-o um "maracanã" a roçar os ouvidos com segredos que seriam guardados na memória.

Na planície daquele que seria o edifício dos jornalistas um bando de garotos rivalizava o jogo de futebol quase sem regras. Humberto Acioli já falou da turma do futebol do campinho onde hoje é uma agência do INSS. Glória a ti, Vila Coimbra. Humberto, talvez todo aquele pessoal, hoje, pode dizer bem alto:

"Saí do milho, virei visconde a ensinar os sonhos da infância alegre ao mundo".

Posso lembrar, pelos registros de Humberto Acioli, uma turma que levou adiante o sonho de artista: Ângelo Lima, Miguel Jorge, Sérgio Pato, Martiniano Rossi e o jornalista Ulisses Aesse. Sob a brisa da magia do Setor Coimbra de hoje revisitei ruas e passagens da antiga Vila Coimbra. Na Rua 255 revi a casa onde morou Kleber Adorno nos anos setenta de século passado.

Logo adiante a casa do João Viola, um irmão que, aos acordes do seu instrumento preferido, ouviu muitos dos meus sonhos de neófito venerável com uma página branca a desafiar a escrita que ficou guardada por muito tempo em meu coração.  Sou um grafiteiro de palavras vãs. Longe de ser um artista que põe cores na tela. Sou escritor de coisa nenhuma. Minha alma permanece roceira e caipira com todos os erres da roça. Um tanto e quanto ingênua a lascar aroeira com machado de barro. Difícil esculpir um texto sem a ferramenta da palavra precisa. Quando escrevo parece que a página permanece virgem.

Igual a aquele edifício comercial da Avenida Assis Chateaubriand com enormes paredes brancas a desafiar os grafiteiros anônimos que colocam suas marcas enigmáticas nas limpas paredes.

Lá está escrito:

“Senhor grafiteiro, conserve branca esta parede. A direção desta empresa faz doação semanal de uma cesta básica em homenagem ao senhor que a mantém assim. Por essa causa peço-lhe, senhor grafiteiro, ajude-nos a cumprir o nosso compromisso. Mantenha este paredão branco”.

“Gratos.”

Vila Coimbra. Também pode ser Setor Coimbra. Como desejar o leitor. Da mesma magia do piscar de olho chega um sorriso aberto que reacendeu o amor da primeira vista que continuou na última visita aos recônditos lugares das quimeras da juventude. Saí do Setor Coimbra com a impressão de que a Vila Coimbra se tornou - para sempre - uma canção no meu destino. A voz do começo dessa crônica sugere as palavras finais: Vila Coimbra, Vila Coimbra.
terça-feira, 13 de dezembro de 2011 | By: Doracino Naves

Retrato da Solidão

O Setor Aeroporto é artificial. Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima esfolaram a terra para construir o primeiro aeroporto de Goiânia; deformaram o cerrado com suas máquinas de fazer ruas. Aliás, o planeta terra está desfigurado para atender as necessidades do homem. E continua sendo desfeito para plantar, construir fábricas e cidades. Então, Goiânia é artificial e o Setor Aeroporto também. Lá tem uma réplica do 14 Bis na Praça do Avião que, de 1930 a 1950,  foi cenário de desfile de moda a esperar o avião que chegava do Rio de Janeiro ou de São Paulo. As mulheres passavam elegantes, vestidos de rendas com babados românticos e sombrinhas coloridas rodopiando no ar. Os homens vestiam ternos de linho branco 120 ou Pitex inglês. Getúlio Vargas, na sua Marcha para o Oeste, pisou o solo do Setor Aeroporto para abraçar Pedro Ludovico Teixeira.

No Setor Aeroporto não tem gatos. Há muito que eles foram dizimados por um açougueiro vindo do nordeste. Certamente eles viraram churrasquinho na Praça do Avião. A egrégora dos gatos criou limites para proibir a entrada dos gatos no Setor Aeroporto; da Avenida Oeste ao Córrego Capim Puba e da Avenida Anhanguera à Independência. O caçador de gatos mudou de ponto; os gatos, escaldados na água quente do churrasqueiro, fugiram de medo da água fria do Capim Puba. O sol crispa solerte sobre os telhados do Colégio Agostiniano e da nova Igreja da Praça que tem arquitetura moderna. Os primeiros moradores construíram suas casas no meio de pequizeiros, lobeiras e gabirobas rasteiras que faziam sombras para esconder a cascavel do cerrado.
Por causa dessa mania de fazer cidade no meio do mato penso que Pedro Ludovico e Atílio Correia Lima foram homens solitários. O prefeito Venerando de Freitas Borges, alegre dançarino dos pagodes caipiras, punha fogo na alma dos primeiros moradores. A antiga Estação Rodoviária, grande para o começo da cidade, tinha pouco movimento de ônibus.  Nessa época eu trabalhava numa loja de tecidos em frente ao Teatro Inacabado. Ao passar pela Rodoviária vi um velho solitário com uma pequena mala de couro rústica sentado num banco isolado. Tinha as pernas cruzadas; os pés calçados com botinas. Na cabeça um surrado chapéu de feltro. O olhar perdido no infinito. Do aceso pito de palha tirava longas baforadas. A fumaça sumia com o vento. Um retrato eloquente da solidão.
Parei por um instante para observar a figura emblemática daquele homem. Por um momento me lembrei do meu avô Cláudio, que ficara em Porto dos Barreiros. Fiquei com pena daquele velho solitário da Rodoviária. De onde ele vinha ou onde estava indo pouco importava; foi a figura triste e sorumbática que me fascinou. Será que alguém o deixara ali ou ele teria chegado de viagem e aguardava um parente que deveria buscá-lo?  Não me aproximei para falar com ele. Preferi manter a aura de mistério que eu criara diante daquela imagem. Assim, qualquer que fosse o seu destino eu não me sentiria responsável por ele. Cumprimos o nosso dever; eu o de gravar aquele instante na mente e ele o de expor ao mundo a sua figura solitária.
Saí com aquela opinião impressa na minha mente. Desde então, quando penso numa figura solitária, vejo aquele velho sentado no banco da rodoviária. Sofro no despertar das minhas lembranças usurpadas por fantasmas e armadilhas ancestrais. Navego entre multidões e desencontros.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011 | By: Doracino Naves

Tamancos de ferro

O Setor Oeste é charmoso. Lá os dias se debruçam no peitoral das janelas do Bosque dos Buritis e do Lago das Rosas. Todas as árvores se entregam submissas ao vento.  Goiânia é assim, múltipla e universal. Com os cotovelos na janela e as mãos no queixo a alma goianiense observa o tempo passar. O Setor Oeste é um lugar ameno. Mas, as luzes que cintilam das ruas na madrugada despertam fantasmas a acompanhar os insones. No silêncio da noite os sons vestem assustadores lençóis brancos.    
Quando nasce o dia no Setor Oeste é sempre manhãs de outono. Há gritos de Oceano! Oceano! na praça do almirante. É o lamento que chega pela inesperada homenagem a Tamandaré sem reparar na onipresença dos pioneiros na história de Goiânia. Nem os arranha-céus do futuro poderiam ser ouvidos. Para compensar a escolha faz tempos que a Praça Tamandaré tem bondosos ares de Natal a soprar no túnel da Avenida Assis Chateaubriand. Vento, ó vento, traz notícias do almirante que, sem pedir e sem conhecer Goiânia, navega seu barco nas terras secas do cerrado. Essas imagens chicoteiam no lombo das ondas que navegam entre os prédios, árvores e a estátua do almirante.
Fecho os olhos para não ver a frota que chegou nem sei se do Atlântico ou do Pacífico. Viro o corpo, à direita e à esquerda, cansado de noites sem dormir à espera da alvorada. Dezembro, dezembro. É do natal passado de que me lembro.
Os sons notívagos adiam as minhas madrugadas ressuscitando os monstros que habitam as trevas. São sons estranhos a zunir nos ouvidos do pesadelo. Um simples caminhar no andar de cima ressoa como se fossem pisados com tamancos de ferro. A imaginação é capaz de inventar coisas absurdas.
E exagera na percepção errada que vem acompanhada por assombrações de uma mente estressada pela insônia. Do meu quarto vejo uma lâmpada acesa no prédio vizinho, amarela de medo. Acende e apaga várias vezes na noite. O vizinho não se conforma com a luz nem com a escuridão. E prende uma fita dourada de esperança no preto céu da noite.
Um dia desses, no andar de cima, ouvi passos apressados seguidos de outros ainda mais apressados. Pela maciez dos primeiros deveriam ser de mulher. Já os outros passos, pesados, pareciam de homem. Pensei serem de um marido correndo atrás da mulher com uma faca enorme, luzidia, tipo peixeira. Minha mente lembrou Hitchcock em seus filmes de suspense. No outro dia, ainda cedo, quando ia para o trabalho, os dois – marido e mulher – se despediam com beijos e juras de amor à porta do elevador. Alívio para a minha alma ainda sonolenta.
Quem padece de insônia a noite tem a companhia de mil personagens, todos bêbados, trôpegos e mascarados. Para o ator só a máscara lhe é suficiente, cobre suas verdades. Ao poeta é a palavra que esconde suas angústias do viver. Quando ao pintor, na intenção de colorir sua alma dual – do dia e da noite - cobre a tela branca com tintas coloridas.
E quanto a mim só Deus pode romper o negro das noites sem sono. E aí, no fundo d’alma, surgem cânticos de anjos alados rumo ao céu. Deus me é suficiente. Este ponto colocado depois da palavra “suficiente” não é o ponto final. É o recomeço do dia que vem com forte clarão rompendo as trevas.
O Setor Oeste, berço da Praça Tamandaré precisa de grandes navios a navegar os oceanos da lua. Perto dali brilha o sol nas tardes de domingo. Mas, a Praça Tamandaré, mesmo com o túnel das luzes coloridas do natal, não é mais bonita do que a praça da igreja do meu Porto dos Barreiros, a minha Atlântida desaparecida. A Tamandaré é conhecida no mundo, a da minha vila está dentro de mim, me é suficiente.
Debruço no peitoral da existência esperando a luz do fim do túnel brilhar no meu espírito.
domingo, 27 de novembro de 2011 | By: Doracino Naves

Ponta do Durex

Hoje tudo está chato. Minha vontade é estar no meio de um buritizal ouvindo o canto dos pássaros-pretos.  Mas, não, estou no meio de uma selva de concreto, no alto do Setor Bueno. Pois, é. Às cinco da manhã um maluco toca a buzina estridente pedindo para o guarda abrir o portão do prédio. Não sei se ele quer entrar ou sair. A pressa pode ser por doença ou algo mais urgente. Ou, simplesmente, um bêbado chegando de madrugada. Mas, e daí? O que eu tenho com isso? Ele nem sabe que a sua buzina me acordou de um pesadelo. Aí vou percebendo que eu sou o chato. O mundo continua o de sempre, intolerante e cruel. E eu vou nesse embalo da modernidade: a chatice das repetições.         

Pensar nessas coisas incomoda mais do que um celular tocando no cinema. Na madrugada, em frente à janela, vejo uma montanha de prédios. Não há campos a minha volta. Ah, que saudades de estender a vista pelo sertão de veredas. Corro para a outra janela, a da sala. Desse lado as construções são baixas. Vejo as luzes coalhar o chão úmido com as primeiras chuvas. Reparo ruas, reparo casas e minhas vistas míopes perscrutam o movimento da cidade que começa a se despertar.

Percebo que sou um caipira preso na liberdade de Goiânia. Tenho vontade dar uns cascudos na cabeça de quem plantou prédios, um lado do outro, no Setor Bueno. Penso que o pior lugar de Goiânia para se morar é aqui. Idiota de quem o inventou cheio de arranhas-céus de narizes arrebitados. Porque não planejou prédios baixos para que os seus moradores pudessem ver o sol nascer. Até a lua nesse lugar só aparece acima dos prédios. A impressão é a de que a lua do Setor Bueno é diferente de outros lugares; já surge no zênite.

Aqui o meu olhar não acha o horizonte do cerrado da minha infância. Os olhares no Setor Bueno são verticais, acima da cabeça. Vou me acostumando a andar sempre de cabeça levantada. Talvez essa seja uma razão da minha chatice. A culpa, então, é do Setor Bueno? Sei lá. Só sei que não devo olhar as pessoas do alto. O certo é baixar o queixo e ver o próximo ao nível do olhar.

Abro os olhos para ver o mundo, penso e trago de volta as imagens das belezas da paisagem de Goiânia de outros tempos. O risco é a gente esquecer-se de suas belezas naturais. Sim, porque quando a gente fecha os olhos diante do sol esquece que ele existe. O sol, a lua, as árvores, os rios, a terra e tudo que nela existe não buscam fórmulas complicadas para existirem. São simples porque nunca erram. Ao contrário de nós.

Deus fez tudo com uma precisão impressionante. E a lei da compensação dos nossos dias e neuras é quando vemos o mundo com um olhar nítido de uma flor do campo.  Há novas árvores e novas flores sobre a terra. Tudo é tão real que a maior indagação é saber quando tudo começou. Onde está a ponta do durex?

Para curar chatice o melhor é uma rede cearense azul, da cor do céu, que descansa na sacada de um apartamento projetado por um maníaco construtor de caixas de pombos. Ele deve saber como construir casinhas em cima de árvores. Deito na rede de alma baiana por uns instantes com o prazer do descanso do corpo de um cronista modesto num país de poucos leitores. Na rua quase deserta ouço gargalhadas, talvez vindas de festas, saltos batendo no asfalto duro de um dia que termina para uns e começa nos olhos do crepúsculo. São ruídos de quem nem sabe que eu existo.
terça-feira, 8 de novembro de 2011 | By: Doracino Naves

Boi engarrafado

Minhas raízes gritam dos cafundós das minhas lembranças. O silêncio das pedras de Porto dos Barreiros – minha Atlântida perdida no borbulhar das águas do Rio Paranaíba – guardam segredos dos passantes que, em tempos sem estradas, atravessaram a divisa.  Porto dos Barreiros foi a passagem das caravanas vindas do Rio Janeiro e oeste mineiro com destino a Goiás e Mato Grosso. O Rio Paranaíba se enchia de ar para a travessia das balsas que flutuavam sobre o seu leito, conduzindo, incólumes, os sonhos para a outra margem. Uberaba, no começo do século passado, já era a capital do gado Zebu.

 
Oh, Moisés, se o mar vermelho se abriu para a passagem hebreia rumo à Canaã, o Paranaíba embalou os sonhos do brasileiro rumo ao oeste do país. No mar pereceram os egípcios que desejaram frear os sonhos de uma multidão; no rio os indecisos, perdidos no meio das águas, igual boi engarrafado, não ousaram viver numa terra de sonhada felicidade. Os corajosos atravessaram o rio. Do outro lado fincaram as colunas de uma nova civilização. Conduziram suas famílias para o então novo eldorado brasileiro, Goiás, que inaugurara uma nova capital: Goiânia.

E Goiânia se tornou um anjo sem asas, leve e delicado a proteger os seus moradores com a magia que interveio nos destinos dos chegantes. E pensar que essa Goiânia metrópole começou num lugar ermo, escondida da maioria dos olhos dos humanos dispersos na terra, então com menos de três bilhões de almas. Em 2011 somos sete bilhões de terráqueos, a maioria de olhos puxados, muitos para o lado de Goiás, onde se plantando tudo dá. Nesse universo, Goiânia é apenas um ponto no mapa da humanidade, porém, já floresce aqui uma nova cultura.  Quem chega agora, se não é gente boa, com o tempo se torna bom. Isso aconteceu com muitos que tropeçaram na raiz do pequizeiro. Igual a mim contam a sua história, indelével crônica da vida.
Diz a cultura popular que um homem para morrer feliz deve escrever um livro, plantar uma árvore e ter filhos. Árvores, já plantei. Filhos, tenho quatro. Livro...ainda não tive coragem para cometer esse livrocídio. Coitado do leitor. Outro dia em Pirenópolis, onde me escondo da gritaria do “sertanejo universitário”, um leitor de minhas crônicas me perguntou quando eu iria lançar um livro de crônica. Desconversei.

Num dia qualquer, talvez num futuro distante, os meus amigos em sentimentos de homenagem resolvam publicar, post-mortem, os meus escritos. Se, em vida, aparecer alguma crônica em livros é sinal da minha insanidade. Por isso adio esse dia com medo de ficar louco. Sou um pai tardio em minhas tarefas de escrever, o que faço semanalmente no DM Revista. Sim, o meu fazer literário é um filho que nasceu tardiamente. O padrinho é o Batista Custódio, meu compadre. Sou chique, né? Esse filho eterno grita no silêncio do concreto da cidade, retirando do cristal da alma um pouco de luz.
Essa inacabável obra - a de escrever - deve me acompanhar por toda a vida; por isso será eterna na minha mania de melhorar e aperfeiçoar as minhas histórias. Sou um pai tardio e aprendiz de escritor. Nem sei se vou aprender com tempo, pois escrever bem é um dom. No amadurecer da escrita quero ser igual ao menino que chupa manga e limpa a boca nas costas das mãos; natural na sintonia do verbo que se expressa à memória e dos dedos que materializa o pensamento.

O pensamento bom é música aos ouvidos atentos. Qual Orfeu, na lendária viagem do Argos, que tirava de sua lira a melodia para animar os heróis exaustos que se moviam ao ritmo das notas musicais.
Minhas lembranças gravadas no tempo mergulham nas águas do Rio Paranaíba, aos acordes de uma bela canção. E gritam sacudindo os alicerces do meu mundo.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011 | By: Doracino Naves

Sementes de Bucha

Nem o frio da madrugada na traseira de um caminhão sem lona diminuíra minha vontade em conhecer uma cidade maior do que Porto dos Barreiros ou Palmelo. Eu pensava que fosse encontrar em Goiânia aquela gente que vi, ainda menino, nos filmes americanos do cinema improvisado de Palmelo. Foi assim que os meus sonhos chegaram à Vila Nova, também misturados com as sementes de bucha colhidas às pressas antes da mudança; depois plantadas num lote na nova terra. Goiânia ainda era uma cidade nova, mas tinha quatro cinemas no centro, além do Cine Regina, na Vila Nova: O Cine Goiás, o Cine Santa Maria, o Cine-Teatro Goiânia e o Casablanca.

De tardezinha, na secura de setembro, uma nuvem vermelha cobria o céu. Era a poeira dos bairros sem asfalto e das casas em construção. A maioria dos operários viera do nordeste do país. O que mais me agradou não foi o tamanho da cidade nem os seus cinemas; foi a cultura nordestina, alegre e destrambelhada. O uso e o costume dessa gente guerreira e, principalmente, a comunidade dos baianos, então predominante no bairro, me pareceram bem diferentes da minha mineirice.

Na Vila Nova aprendi a conviver com a diferença cultural. De um lado a alegria e a solidariedade dos baianos. Do outro, o meu jeito mineiro; quieto e calado a observar o movimento de uma cidade diferente. Pois é, Manoel Bandeira, Goiânia é a minha Pasárgada. Mesmo distante de Persépolis continua fundamental para a minha compreensão do mundo: “Não digais tudo quanto sabeis, porque aquele que diz tudo quanto sabe, muitas vezes dirá o que não sabe. Não façais tudo quanto podeis, porque aquele que faz tudo quanto pode, muitas vezes fará o que não deve. Não acrediteis em tudo quanto ouvis, porque aquele que acredita em tudo quanto ouve, muitas vezes acreditará no que não ouve. Não gasteis tudo quanto tendes, porque aquele que gasta tudo quanto tem, muitas vezes gastará o que não tem. Não julgueis tudo quanto vedes, porque aquele que julga tudo quanto vê, muitas vezes julgará o que não viu”.

Aqui aprendi a gostar dos nordestinos da Vila Nova, principalmente dos que me ensinaram a ver o mundo pelo lado bom. O professor e poeta Ubiratan Rosa, que entrava na sala de aula declamando Castro Alves me fez gostar de poesia. O professor João Natal, que era vereador e me levou a conhecer Iris Resende, então jovem candidato a prefeito. Ah, saudades do professor João Alberto de Almeida, diretor do Colégio.  Aprendi com essa gente bacana e, mais tarde redescobri com Beltrold Brecht, que "a melhor de todas as artes é a arte de viver". São exemplos de algumas pessoas  que venceram as adversidades e se tornaram pessoas importantes, a exemplo da escritora Leda Selma e Aidenor Aires, advogado e poeta, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás; baianos que honram Goiânia com seus versos. 

Goiânia vive uma diversidade cultural interessante, mas a sua identidade cultural ainda está em construção. Afinal, é uma cidade nova, apesar dos seus 78 anos.  Inaugurada por Pedro Ludovico com o Batismo Cultural, foi redesenhada por Iris Rezende e Nion Albernaz. Hoje é administrada pelo goianiense Paulo Garcia, prefeito culto e trabalhador.

Essa pluralidade a faz diferente de outras cidades brasileiras. E a sua posição geográfica, no centro geográfico do país, ainda favorece a vinda de pessoas de outros lugares que perambulam pelas ruas e avenidas de Goiânia.        

No balanço das sementes tocando os casulos vazios da bucha sai um som de chocalho. Não poetizo os sons; sinto-me uma bucha seca para entendê-los como são. Qualquer dia o editor deste caderno percebe o som arrastado da minha crônica e me manda plantar semente em outro quintal... 
domingo, 16 de outubro de 2011 | By: Doracino Naves

Vida de Loucos

Sou um bardo que conta as histórias de Goiânia ouvindo o murmúrio de uma metrópole de alma caipira e pura. Ando pela cidade em busca de histórias, depois quero voltar para casa; o meu coração é pesado de sombras. Passei pelo Hospital Materno-Infantil, no Setor Coimbra, perto da Avenida Anhanguera observando o movimento das pessoas. Sentada num banco de cimento estava uma mocinha. Dei-lhe uns 14 anos de idade. As mãos em concha apoiavam o queixo ao estilo pensador; os cotovelos pesavam nas pernas finas em forma de esquadro. Parecia preocupada. O olhar fixava um ponto qualquer do infinito. Seus olhos, talvez castanhos, choravam sob a chuva fina desse começo de outubro. O céu também chorava com a mocinha. Distraída em suas lembranças deixava que os pingos de chuva e as lágrimas escorressem sobre o vestido de chita desbotada. A água ia pela calçada e parava na grama rala que ainda tinha a cor do cerrado seco no final de setembro. Uma nuvem de água evaporava do asfalto ainda quente do sol do meio-dia. Havia uma silenciosa cumplicidadeda natureza com a mocinha triste do Hospital Materno-Infantil de Goiânia.

Os pensamentos da moça talvez estivessem num quarto daquele hospital. Um homem de meia idade que parecia ser o seu pai chegou com um guarda-chuva tosco, protegendo-a. Conversaram rapidamente e entraram no hospital. Segui em frente com os passos de quem caminha rumo ao desconhecido. Falo sobre Goiânia sem pretender conquistá-la nem me igualar aos bons cronistas e poetas daqui. Imagino ser uma espécie esburgada de Odisseu viajando entre dois paredões do tempo: a Goiânia de ontem, bela e acolhedora e a de hoje, imprevisível com seus tentáculos a inflar as nossas vaidades.

Na calçada quase esquina da Avenida Anhanguera um louco inofensivo anda de um lado ao outro sem se importar com nada a sua volta. Um vai-e-vem agitado e inócuo. É instigante a vida de um louco. Primeiro pela falta das vaidades mundanas. Depois porque são criaturas desmemoriadas. Os loucos vivem um eterno presente, sem pensar no que passou e sem cogitar o futuro.

O poema Odisseia, de Homero, conta que após a conquista de Troia, os guerreiros helenos se perderam e foram parar na Ilhados Lotófagos, em alusão ao fruto mágico - lótus - que apagava todas as lembranças. Nenhum deles queria voltar para casa. O desejo de todos era viver para sempre nas delícias do esquecimento. É uma metáfora da vida que Deus pôs no homem: a maravilhosa amnésia das vidas passadas e o pleno desconhecimento do futuro. Sem reconhecer seus desvios, o ser humano, igual aos guerreiros helenos, se apega na superficialidade do mundo material, precisando de inteligência superior para atravessar as tentações e vencer as vaidades da vida terrena.

Mesmo sem saber onde fica a minha casa quero voltar para ouvir o balir dos anjos, ovelhas do paraíso. Estarei em minha casa quando Deus terminar a crônica da minha vida.

Um é pouco, dois é bom, três é demais.

Noutro dia estava a pensar na importância da matemática para o homem. Ainda nem completamos mil anos da invenção do sistema numérico e já lidamos com a ciência quântica. Aprendemos a contar de 1 a 10 graças a Leonardo de Pisa - Fibonacci - argelino que viveu no século 12. Ele publicou o primeiro best-seller da história: Liber Abbaci, feito à mão e que, na Europa, vendeu igual água no deserto. Por meio do Livro do Cálculo, o mundo aprendeu a somar, diminuir, multiplicar e dividir.

Houve um tempo na terra tempo em que o homem só lidava com quantidades bem próximas do seu dia-a-dia. Por isso que 1 e 2 são os primeiros números, os mais antigos. Naqueles tempos o 3 representava uma quantidade enorme.  Na pobreza mental, o homem das cavernas raciocinava simplesmente: caçar um animal era mais fácil do que três. E voltava ao ócio do paraíso. Era assim: um é pouco, dois é bom, três é demais. Além disso, era como calcular a distância da terra às estrelas: inimaginável. Só os poetas, mesmo avessos à matemática, eram capazes de imaginar milhões de estrelas no céu.

Por falar em poetas me lembro de que o soneto, criado no século 13, que usa a matemática como fundamento para a composição de seus versos, é composto de quatro estrofes: as duas primeiras têm quatro versos; as outras duas são compostas por três. Por aí começam as fórmulas matemáticas da composição de um soneto, suficientes para amalucar qualquer iniciante em matemática. Júlio Verne usou essa ciência para escrever seus livros sobre ficção científica e, muitos, foram parar na Nasa, que montou  complicadas equações para levar o homem à lua. Bill Gattes, da Microsoft, e Steve Jobs, da Apple, utilizaram cálculos matemáticos em seus inventos.

Então, as grandes invenções, inclusive as construções das grandes catedrais na idade média, foram calculadas cuidadosamente usando arranjos matemáticos.  Percebo que, por mais que homem ouse em suas invenções, elas são ínfimas diante da abissal perfeição e  harmonia do universo. As invenções tecnológicas, por exemplo, não resolvem a solidão do homem que, a cada dia, se afasta do próximo. Em nossa pequenez humana só contamos até o número 1: Eu. O 2 - eu e o outro - é um arranjo mais complicado. Alguns usam os sofisticados meios de comunicação pensando que eles podem substituir o imprescindível amor entre as pessoas. Nas grandes cidades, por exemplo, a maioria nem se visita. As notícias pessoais são dados por meio do celular. Todas as invenções humanas carecem de serem melhoradas para atender às novas funções da modernidade.  A roda, considerada a maior das invenções, sofre a influência de novos cálculos para eliminar os atritos comuns da sua função de rodar.

Só a matemática de Deus, o criador dos mundos, é perfeita. O universo é belo e glorioso. E mais: toda a invenção da ciência e a evolução tecnológica, inclusive a criação artística e literária, é obra Dele. Deus cria todas as coisas e o homem se esforça para por no mundo o que ele - o homem - pensa que é a sua criação. Na memória dos céus, Ele guarda as fotos tridimensionais de nossos talentos e do futuro do homem na terra. 

Vejo o meu retrato: um menino pobre de Porto Barreiros que chegou a Goiânia num caminhão de mudanças. Penso que evoluí muito.

Hoje, viajo pelas ruas e becos de Goiânia num carro sem carburador. A injeção eletrônica dos carros conta as sujeiras do combustível.

Mas, a minha alma, filtrada pelas emoções, continua presa aos grilhões de um ser humano imperfeito. O meu espírito, no entanto, é perfeito; foi criado por Deus. Meus passos caminham rumo ao desconhecido.

Água na Ladeira

Se eu não fosse jornalista seria músico. Sou um tocador de cavaquinho frustrado que não aprendeu extrair dele uma nota sequer. Aliás, essa é a única frustração da minha infância que foi, como disse Millôr Fernandes "Dura! Dura! Linda! Linda!". O caso do cavaquinho foi assim: Meu pai, Zequinha Naves, antes de ser Coletor Estadual foi, junto com meu tio Dedé - Ezequiel Naves de Almeida - dono de cartório em Palmelo. Mas, era um cartório de uma cidade pobre do interior, pelos idos de 1955. Portanto, cartório dava pouco dinheiro e havia pouca grana para manter os filhos.Para melhorar a sua renda se preparou até ser Coletor Estadual. Tirou do seu primeiro salário uns trocados para comprar um cavaquinho. Este foi o primeiro presente que ganhei do meu pai. Pelo menos, da parte que me lembro, o presente ficou marcado pela minha falta de jeito com a música. Nunca aprendi a tocar nada em nenhum instrumento. Sou analfabeto musical; não tenho talento assim.

Palmelo naqueles tempos era praticamente rural. Acho que até hoje ainda é assim. Aprendi a nadar no Córrego Caiapó, cheio de cintilantes peixinhos miúdos no córrego raso com pequenas pedras coloridas no leito de águas claras da primavera. Atirei pedras com estilingue nas mangueiras do vizinho. Joguei futebol num campo de terra batida onde ralava meus joelhos no chão duro. Amei, no fundo do quintal, as meninas vestidas com panos de  chita. Essa fase de moleza durou até aos dez anos. Aí, num dia qualquer de 1959, a família se mudou, de mala e cuia, para Goiânia. Tempos depois, após 25 anos num escritório de contabilidade, entrei na Universidade Católica para cursar jornalismo. Isso foi em 2004. Por essa causa digo que sou um jornalista tardio. Mas, sou um animado aprendiz de jornalismo. Tento me renovar sempre no gosto pelas formas e ter nova visão dos fatos novos

O jornalismo opinativo tem o seu valor pela experiência de quem escreve. Mas, nada melhor do que uma boa reportagem. Daquelas em que o repórter sofre para apurar os fatos e, depois, satisfeito com a reportagem, dá a notícia como se houvera fisgado um peixe grande. A realização do jornalista pode vir num texto romanceado, na voz alegre de quem anuncia o fim de uma Guerra Mundial ou na expressão serena de um repórter diante das câmeras anunciando o fim de um sequestro. Acho que essa minha paixão pelo jornalismo vem da época do Repórter Esso. Pôxa, ao me lembrar dessas coisas antigas me vem a sensação de que já descambo pelo outro lado do morro.                           

E a alma da gente vai ficando por aí, perdida nas metades do outro. A gente deve ser assim, rasa e intensa como o leito de um riacho descendo a ladeira. Pois é. turvar a água do córrego não significa que elas fiquem profundas.

Alma Agradecida

Recebi com alegria o artigo de José Elias, publicado no DM de quarta-feira passada, sobre a Fonte TV e o programa Raízes Jornalismo Cultural. Agradeço-o pelas palavras amáveis. Amanhã, domingo, às 11 horas, vai ao ar o programa número 227 da série que começou em 2007. Mais de 99% dos programas são de personalidades da cultura goiana que foram entrevistadas formando uma valiosa coleção de depoimentos. Sublimados pela emoção do artista ou do escritor entrevistados. Claro, a gente também se emociona junto com o nosso convidado.

Alguns dos entrevistados chegaram às lágrimas ao relembrar alguns momentos da sua carreira. Uma marca comum em cada um destes ícones da cultura é saber contar histórias. É bom ouvir uma boa história. A arte é uma narração feita com um jeito pessoal. Seja na literatura, no jornalismo, nas artes cênicas, no cinema, na cultura popular, na música, nas artes plásticas ou na lente de um fotógrafo atento. A alma fala e se expressa melhor por meio das emoções artísticas.

Pois é. Com a alma agradecida chegamos a mais de quatro anos de programa, sempre na Fonte TV. Pensar, sonhar, escrever, falar e saber que o gênero de entrevistas é, antes de tudo, como diz Teresa Montero “uma disputa amigável feita de muitas arremetidas e outros tantos recuos” para não pressionar o entrevistado.

As conversas no programa Raízes Jornalismo Cultural aconteceram num clima alegre e de magia; com a sorte de ter o poeta Chico Perna nos primeiros programas e o Edival Lourenço, um intelectual simples e correto, como companheiros de bancada. Dois bons poetas que sabem lidar com a palavra escrita e revelam seus talentos também nas entrevistas.  Aprendi mais uma lição com o poeta Carlos Drummond de Andrade: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave?”.

Então, cada entrevista com um artista ou intelectual é uma peça artística que fala. Descobri com Clarice Lipector, escritora e entrevistadora, que a arte é uma busca. Mas apoderar-se da chave não é simples. Cada tem o seu próprio código de vida, afinal, artista ou não, somos indivíduos. Alguns nem precisam de uma chave; a porta está destrancada.

Lembro aqui de uma entrevista com o cineasta Cláudio Assis, diretor do filme Amarelo Manga. Assis é um pernambucano grandalhão com fama de falar palavrões em público quando se irrita. Algumas entrevistas dele nem chegaram ao fim por causa da sua boca suja. O programa seria gravado no antigo estúdio da Fonte TV, que, no começo, funcionou no subsolo da Igreja Fonte da Vida, no Setor Marista. Nesse dia cheguei mais cedo do que o costume.

De repente alguém da produção me avisa:

-Doracino, seu convidado chegou.

Recebi Cláudio Assis apreensivo com o rumo da entrevista. Aí me ele perguntou:

- Onde é o banheiro?

Meio encabulado expliquei a ele como chegar lá. O banheiro ficava um andar acima, do outro lado do prédio. Com um detalhe: ele teria que atravessar a Igreja na hora do culto. Pensei resignado: “Seja o que Deus quiser”. Depois de algum tempo ele chegou calmo e tranquilo. Olhou-me de frente:

- Não me disseram que para ser entrevistado teria que me converter.

Não sei se isso aconteceu. Mas o programa foi ao ar sem nenhuma declaração polêmica do diretor. Ao contrário, é um dos melhores programas do nosso acervo.
sábado, 8 de outubro de 2011 | By: Doracino Naves

Cordas do coração

O artista já nasce artista. É uma afirmação, mas bem que poderia ser uma interrogação. O talento é espontâneo ou podemos despertá-lo do seu sono letárgico ao longo da existência? A dúvida vem da percepção de que, mesmo com muito esforço, raros se destacam no fazer artístico.

Nessa viagem pelos labirintos da criação artística e literária é absolutamente impossível racionalizar a abissal diferença entre a obra de Machado de Assis e a da maioria dos escritores brasileiros; Mozart e a sua genial ópera A Flauta Mágica; Shakespeare e sua obra eterna. A impressão é que Deus põe a mão na cabeça do escolhido e o autoriza a viajar pelo universo da criação artística.

Eterna é a pintura de Leonardo da Vinci; arrebatadora a escultura de Michelangelo. Há centena de outros grandes artistas que se fazem portadores da cultura do seu povo.  O Livro dos Salmos, onde a metade é atribuída a Davi, revela o primor da poesia hebraica sem rima; mas pela repetição paralela clareia o pensamento do autor. O Livro de Ezequiel, autor que é considerado por alguns críticos como esquizofrênico, é um clássico, com figuras alegóricas impressionantes.
Será que o conhecimento intelectual é suficiente para atingir as cordas mais profundas do coração? Aí a gente já pode começar ver o caminho que separa a arte do conhecimento intelectual. Um artigo científico não impacta a alma da mesma forma que uma crônica de Rubem Braga. Leda Selma, doce cronista do DM, faz a gente parecer maior e mais importante do que somos. Há nestes exemplos uma sutil diferença entre a inspiração e a transpiração.

Num sentido mais literal podemos ver o efeito da arte sobre as emoções até no futebol. A correria dos jogadores em mais de 90 minutos do último jogo Santos e Flamengo foi apagada por lances de pura arte dos artistas Ronaldinho Gaúcho e Neymar. Este toque mágico da inspiração faz a diferença entre a arte e o suor. Então, arte é só a que toca as nossas emoções? Nem sempre. Nossas emoções são tão volúveis!

Mas elas descobrem canais que ligam o nosso espírito ao alto. Isso também depende dos nossos valores estéticos. Seja qual for o processo da criação artística, uma certeza: os artistas são seres especiais enviados para iluminar a existência terrena. Lembro-me do palhaço Carequinha quando esteve em Goiânia, no começo dos anos 60, numa única apresentação no antigo Cine-Teatro Goiânia. Eu era engraxate na Avenida Goiás, mas conhecia suas músicas e os seus filmes.

Nesta época Carequinha era o palhaço mais famoso do Brasil, animando programas na TV, no Rádio e em filmes que rodavam o Brasil. Um palhaço muito bacana. Uma de suas músicas diz assim: “O bom menino não faz pipi na cama/O bom menino respeita os mais velhos...” E por aí vai. Fui ao Teatro Goiânia pensando só em vê-lo chegar pela entrada lateral. Nem pensei em assistir o seu show.

Ele chegou com a sua turma pouco antes da apresentação; inclusive o palhaço Meio-Quilo um anão que participava das suas palhaçadas. O teatro estava lotado de crianças e os seus pais.  Como não podia pagar a entrada fiquei por ali, junto com os outros engraxates, na porta do Teatro pensando num jeito de entrar. Porém, antes de começar o show, Carequinha autorizou a nossa entrada sem pagar o ingresso. Nem acreditei que veria, ao vivo, o palhaço Carequinha.

Foi a primeira vez que entrei no Cine-Teatro Goiânia. Vi o show, com mais de outros dez engraxates, sentados na caixa de engraxar e num lugar privilegiado: na primeira fila entre o palco e as primeiras cadeiras. Carequinha já foi embora deste mundo, mas continua palhaço no imaginário de milhões de brasileiros.
quarta-feira, 28 de setembro de 2011 | By: Doracino Naves

Karolline Naves Jacob

Foi um anjo luminoso que passou pela minha vida e deixou marcas de luzes em meu ser. Seu nome, Karolline, soa como o de uma princesa que viveu para derramar bondade por onde passou. Foram 21 anos, dez meses e sete dias. Amei minha filha intensamente. Na minha memória, entre tantas lembranças, ficou a imagem do seu sorriso espontâneo; meigo, arrebatador e  iluminado.

Entre viagens a outras cidades, hospitais e clìnicas, em busca  de tratamento ao seu mal, passaram-se poucos meses. O nome do câncer agressivo que a levou desse mundo é Glioblastoma Multiforme. Ela deixou uma filha, Ana Clara, com três anos de vida. E muita saudade no meu coraçao e no de seus irmaos, parentes e amigos. Há cerca de três meses comentei com ela e meus filhos Marcus, Márcia e Soraya que me sentia cansado e planejava viajar por uns dias, já que há mais de vinte anos nao tirava férias do trabalho. Todos me animaram, incluive ela. Lembro-me da última palavra que me disse no hospital:

- Papai, eu te amo.

Voltei-me a ela emocionado e respondì:

-Eu também te amo, minha filha.
          
Tenho pelos meus filhos mais do que amor. Guardo respeito e afeto por eles. Com ela aprendi a importância do seu amor incondicional. Sei jeitinho especial cintilava uma luz intensa que afetava a todos em sua volta. No seu leito de sofrimento jamais ouvi uma palavra ou senti um gesto de revolta pelo seu estado de saúde. A tudo ela agredecia. Se eu levava uma fruta ou providenciava alguma coisa para aliviar a sua dor ela se desmanchava em agradecimentos. Foi uma crente que amou seu semelhante e, sobretudo, a Deus com uma fé consistente que, mesmo no leito cruel, louvava o Senhor de uma forma pura, ingênua e agradecida.
Recebí a notìcia da sua morte no dia 20 de setembro, dois dias depois de chegar em Santiago, no Chile. Neste dia acordei incomodado. Nada me animava. Havia sonhado com ela subindo ao céu com um diadema de flores enfeitando os seus cabelos negros. Ela me sorriu como se dissesse: "Estou indo". Às 8h30 liguei para o Hospital Vila Nova. Minha ligaçao foi transferida para a UTI. De lá me inforrmaram que o seu estado era grave e que as suas batidas cardíacas estavam irregulares.
No período da tarde recebí a notícia da sua morte. Tentei antecipar o meu voo. Em vao. Só seria possível no outro dia e, assim mesmo, com previsao de chegada em Goiânia na noite do dia seguinte.Vesti negro e saí sem destino pelas ruas frias de Santiago.Parecia que as pessoas se movimentavam em silenciosa câmera lenta. Todas as moças tinham no rosto o desenho do sorriso de Karoll. O vento, suave, soprava raios multicoloridos que se dirigiam aos céus. No meu coraçao havia uma inexplicável sensaçao de paz.
Karoll, minha filha querida, você foi um anjo que veio ao mundo e, indelével, invadiu a minha alma com o amor do seu doce viver. Segura na mao de Deus e vai.

Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raìzes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).
quarta-feira, 14 de setembro de 2011 | By: Doracino Naves

Caçador de Jatobá

Fevereiro é um mês pequeno. Neste ano então ele chegou rachando mamona de tão quente. E como faz calor, até os tatus se escondem na sombra fresca da terra. O vento que sopra da Vila Nova passa pelo Bosque do Mutirama e refrigera um lado do Bairro Popular. O vento sudoeste, soprado pelo Bosque dos Buritis e Lago das Rosas refresca o outro lado. O Bairro Popular tem sorte por estar nesse lado de Goiânia.

É, Bernardo Élis, o veranico de janeiro agora é em fevereiro. Capricho do clima desta era de fogo no planeta. No meio do antigo Bosque do Botafogo tem um córrego. Hoje corre em seu leito uma água gosmenta do esgoto injetado em suas veias. Ontem, que saudade, a água bestava enrolada nas curvas da mata e, no abrir da copa das árvores, o sol dourado brilhava nas “pedrinhas de estilingue” depositadas por Deus no fundo da água rasa.

Nessa época a gente atirava pedras para derrubar os bagos do jatobá que caía escorregando no capim até a beira do córrego. Dentro da fava tem farinha que, molhada pela saliva, gruda nos dentes igual dentadura de boxeador. Comer jatobá é coisa de menino peralta; é ruim demais. Perto da pinguela um pé de guapeva paria galhos retos com forquilhas fortes; cortadas a canivete para fazer estilingue.

Num ipê amarelo os ninhos de guacho balançavam ao vento. Uma rajada mais forte ameaçou derrubar os ninhos. Um guacho com uma mancha vermelha no peito, igual coração, vigiava o seu ninho construído com ramos secos. Seco  estava o úmido e único beijo roubado da Gracinha, no Cine Santa Maria. Debaixo do pé de guapeva uma menina de pernas magras passou rumo à lavanderia pública.

No fim do dia, num sábado calorento como neste fevereiro, lá vem o Janjão de roupa nova. Ia ao cinema ver “E Deus criou a mulher”, com a  Birgitte Bardot. Filme proibido para menores, como nós, caçadores de jatobá. Brigitte e Roger Vadim... Homem de sorte o Vadim. E de uma visão impressionante! Seus olhos descobriram, literalmente, as mais belas deusas do cinema.  Brigitte, Catherine Deneuve e Jane Fonda. Só este feito o faz merecedor de Premio Nobel. Não sei em que área. Talvez de descobridor de deusas. Este é a minha opinião de cinemeiro.

Bem que ele merecia pelo menos um “oscarzinho”. Um amigo me perguntou o tema dos filmes da Brigitte.

- O filme é sobre o quê?

Ô perguntinha difícil de responder! Penso que a tarefa mais difícil de quem faz cinema é a de redator de sinopse. Nenhuma história é de um assunto só. Como esta crônica que vai enrolando e passando de uma conversa para outra sem que o autor se dê conta de que o seu espaço já era...

A alma, de saudade, estala como mamona no asfalto quente de fevereiro. 

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural , na Fonte TV (www.raizestv.net)

Inefável Solidão

Pensei noutro dia: se morasse em Porto Príncipe poderia encontrar a minha casa amassada pelo terremoto. Com essa possibilidade fui mais fundo no meu devaneio: numa cidade destruída é impossível planejar a vida, ir à feira, ao cinema, andar à toa, assoviar despreocupado. Tudo isso é improvável. O impacto de um desastre desfaz os sonhos. Mas o choque das emoções desperta palavras. E elas flamam da alma soltando faíscas. A sensação que a gente tem, quando se escreve com emoção, é a de que esgotamos o verbo na última palavra. Bate desespero como se nunca mais fôssemos capazes de escrever coisa alguma. Prostramo-nos inertes como abelhas que perde o ferrão ao defender o seu território.

Goiânia é uma grande colméia humana. Cada pessoa tem uma função e vem ao mundo para realizar a sua tarefa. No seio da imensa cidade nasce uma solidão plasmada em nossos olhos cansados. O vento balança bandeiras e árvores; arrasta papéis e pode até arrancar o telhado das casas. Mas não leva o cheiro da cidade e nem o cheiro do próprio vento. Também não leva as coisas mais leves como o pensamento. Nem o som do violão que meu pai tocava se desfez com o vento. Dizem que na arte o filho acaba puxando aos pais, eu não. Nunca aprendi a tocar violão ou o cavaquinho que ele me deu de presente quando recebeu o primeiro salário de fiscal de rendas do estado. Só imitei dele a voz de barítono; porém, desafinada. Nem no banheiro consigo me ouvir. Sou uma tragédia cantando. Dançando, então, pareço o Maguila no balé. Só solto a minha voz no coro da multidão da igreja e os meus ouvidos se escondem no som do grande coral. Sempre atravesso a música. É aí que percebo olhares enviesados e testas franzidas de reprovação. Outros negaceiam. Uma velhinha sentada à frente me sorri com cumplicidade. Senti conforto naquele gesto; ela é uma cristã de verdade!

Assim devem ser as pessoas nas grandes cidades. Somos cidades ambulantes; as emoções são casas que precisam de asseio e luz. E, claro, cuidados para acolher as almas solitárias que se esgotam na folia. Estamos no carnaval de 2010. É o maior período de ócio no Brasil. O carnaval é uma invenção da burguesia medieval que considerava o trabalho uma indignidade.  E intercalou os festivais com os momentos de oração e trabalho para dignificar a vida. Outros povos, como os chineses, fazem poesia e se dedicam à natureza nos folguedos; os gregos folgados filosofam na Atenas ensolarada. 

Pensando assim caminho pelas ruas desertas do centro de Goiânia. Já andei por todos os caminhos desta cidade. Goiânia é uma bela cidade. Mas, penso nos homens e meninos que vagam pelas ruas com suas casas mergulhadas em inefável solidão. Uma quaresmeira deixa cair flores temporãs sobre a minha cabeça.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Papel de Balinha



Goiânia nasceu assim: luminosa, bela, culta, definitiva. São várias cidades numa só. Abro as cortinas dos meus olhos para ver a cidade escondida pelos prédios e a pressa insana das pessoas em suas tarefas cotidianas. Quem a vê e fecha os olhos à sua alma é como se ela – a cidade - deixasse de existir. Ficam só a luz, o calor e as imagens.  Depois de abrir os olhos a cidade volta, atraindo a nossa atenção. Assim é o mundo das imagens, irresistível.

O que é a essência de Goiânia? O que vemos ou o que imaginamos ver?  Sei lá é o que sei. Peço misericórdia pelo que não sei. Não digo de outras pessoas que, lá no íntimo, se julgam suficientes ao mundo. Falo de mim, insignificante, que o universo vê apenas como um pontinho a mais na imensidão do cosmo. Uma coisa me conforta na minha insignificância: Goiânia é parte de um todo indispensável para a composição poética do mundo. Eu, igual a você, leitor, somos parte de uma cidade que foi batizada pelo sol de um movimento cultural iniciado por Pedro Ludovico, em 5 de julho de 1942.

Talvez tenha sido neste dia que Deus sacudiu o seu cobertor de estrelas e elas caíram céu abaixo em matizes variegadas; no estilo Art-Decor ou na fantasia de seus artistas ou, ainda, na esperança da sua gente que voa com asas de borboletas sobre a cidade. Percebo isso ao andar com olhos atentos de girassol. Quando a gente olha assim, para a direita, à esquerda, atrás, percebe coisas que antes não via. Sinto-me renascido a cada saída e entrada na alma da cidade.

Nessa manhã de sexta-feira o ar frio sacode meus cabelos e abana o espaço. Ao passar pela Leste-Oeste, no Setor Norte Ferroviário, lembro-me da última favela de Goiânia: o Morro do Aranha. Suas casas ficavam penduradas no aterro do antigo leito da  estrada de ferro.

Lá também morava um catador de lixo por apelido Baixinho. Assim todos o chamavam. Viera de Ituiutaba, em Minas Gerais. Tinha uma mulher doente que mal dava conta da lida da casa; morava com eles um casal de filhos. O menor, magricela e alegre, andava pendurado na carrocinha, misturado ao lixo. Seu pai, às vezes, parava num bar do Bairro Popular, tomava uma pinga e seguia em frente. Essa era a sua rotina diária.

Na chuva cobria com plástico os papéis e o menino quase sempre vestido só com um calção surrado. Nem a dificuldade deixava o Baixinho de mau humor. Tinha um jeito amigo de olhar: enxergava as pessoas, reparava as ruas, os jardins e as flores nas janelas das casas do Bairro Popular. Preso pela cidade, mas livre para andar pelas calçadas e becos do bairro de onde tirava o sustento da família.

Dona Joana, moradora do bairro, com ar maternal, advertia:

-Baixinho, vista uma camisa nesse menino. Ele pode pegar uma pneumonia vestido assim.

-Liga não, dona Joana, ele é forte.

O filho do Baixinho tinha uma mania: colecionar papéis de balinha que ele, cuidadosamente, retirava do lixo. Desamassava-os e os guardava entre as folhas dum livrão achado no lixo.

Numa dessas viagens deu-lhe sono como em qualquer outra criança. Já era noite. Chovia. A chuva chegou gelada, caiu nas grades da carrocinha e escorreu embaixo dos papéis. Seu pai, arrastando a carrocinha pelas ruas do bairro, tinha um objetivo: alcançar o Bar do Moisés, na Rua 74.

Baixinho para a carrocinha no bar, pede uma pinga, duas... a terceira para espantar o frio. Lá fora, a carrocinha espera, sem pressa. Um freguês do bar entra apressado, fechando o guarda-chuva molhado.

- Êta, chuva! É uma frente fria que vem vindo do sul.

- Oi, Baixinho, cadê o menino?

-Vixe, “esqueci ele” na carrocinha.

Todos saíram para buscar o menino que colecionava papéis de balinha. Reviraram os papéis encharcados. A chuva derramava forte, enegrecendo o caminho até ao menino. No meio do lixo um corpo frio, magricela, sem camisa. Com um papel de balinha da Xuxa na mão. Baixinho se ajoelhou no piso da carrocinha e segurou o corpo inerte do filho. Chorou. Suas lágrimas, salgadas, se misturaram às da chuva.

Uma luz acende na janela, no alto de um edifício.

Goiânia é assim, paradoxal como em todas as metrópoles, guardam sonhos, luz, vida e morte. Definitivos.

Esta crônica acaba em silêncio. 

Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).
quinta-feira, 21 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Apito no cemitério


As maiores emoções do homem estão ligadas ao amor. As minhas foram o nascimento dos filhos, os adeuses aos amigos e aos parentes que partiram. Vivo de amores por lugares onde construí meus sonhos: Porto dos Barreiros guarda números gravados a canivete por meu pai num mourão de fazenda: 17.01.49; Palmelo tem dois corações desenhados inocentemente numa pedra à margem do córrego Caiapó; em Goiânia decifro signos e símbolos até encontrar a senha para entrar no outro mundo. Errante, já andei pela maioria das ruas daqui. Continuam becos da minha caminhada a Vila Nova, o Bairro Popular, Campinas, Setor Sul, Universitário, Oeste, Marista e o Setor Coimbra.  Paro essa relação por aqui senão essa crônica vai ficar parecendo lista telefônica. Às vezes me confundo em minhas abstrações.

Quando isso acontece vago pela cidade até me reencontrar. Sinto a presença de Deus a minha frente.  Outro dia, quando me dei conta, estava no topo do Morro do Além. Ao lado está o cemitério, recôndito lugar de beijo de esqueletos. O celular, atrevido, tilinta. Mas, no sono eterno dos moradores do cemitério o apito nem é ouvido. Intrigante a existência dos homens. No cemitério estão os mortos que já morreram; outros que vão demorar a morrer. Ainda há os que jamais morrerão; seus feitos construíram a eternidade e serão sempre lembrados. 

Goiânia está embaixo dos meus pés. Do alto comparo a minha Goiânia a Paris, Viena, Roma, Buenos Aires, Atenas, Veneza e, inevitável, apesar das diferenças, o Rio de Janeiro. Goiânia é ainda mais bonita e misteriosa. Tem encantos que outras não têm. E é uma cidade-menina comparada às demais. Fez-se pólo de uma civilização importante ao interior do país. Por aqui muitos pioneiros e seus filhos ainda constroem a história e a cultura iniciadas por Pedro Ludovico Teixeira; continuadas por Iris Rezende.

Estou no lugar mais alto da cidade. Fico. Meus sonhos, no entanto, me lembram: “O céu é em cima; não embaixo dos pés”. Quero falar com os anjos de Deus que voam leves sobre a cidade. Elevo os meus pensamentos. Os homens, maliciosos, fazem da prece uma desculpa para ficar mais leve no fim da caminhada. Porque homem nenhum suporta o peso da carga dos pecados da espécie por muito tempo. Quando nasci um tio disse:

-Este menino deve ser forte para aguentar a vida no lombo. Muito forte!

Do alto do Morro do Além uma cadeia de nuvens ameaçadoras cresce sob o céu azul. O mundo escurece de repente. O vento sopra forte noutra direção e as nuvens, obedientes, desaparecem no ar. As emoções contrárias também se afastam humilhadas quando o amor comanda. Protegei, ó Deus, os meninos tristes de canelas finas e olhos de esperança que vagam pela cidade. Perene é o amor que resiste aos sonetos e sobrevive às tormentas das emoções. 

 Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)
quinta-feira, 14 de julho de 2011 | By: Doracino Naves

Sal na moleira

As ruas da Vila Nova formavam torrentes de água enlameada. Nem a 5ª Avenida tinha asfalto. E olha que era a única linha de ônibus. Ou melhor, jardineiras pequenas e de teto baixo. As pessoas mais altas tinham de baixar a cabeça em reverência ao motorista-chefe da jardineira. Melhor ainda que naquela época  a altura dos brasileiros era menor do que hoje em dia. 

Em 1962, havia na Vila Nova uma praça redonda e estreita bordejada por filas de rosas e plantas ornamentais. Nas laterais, pequenas quaresmeiras faziam sombras nas manhãs de sol. Ao redor da praça, hoje chamada Tamanduá, uma série de casas simples pintadas com diversas cores, predominando a azul celeste. Na esquina da Rua 214,  o armazém do Seu Severino se distinguia do resto das casas do bairro. O prédio tinha marquise larga com a frente desenhada com cimento fino. Seu Severino era um nordestino calado e trabalhador. Abaixo da praça, descendo a 6ª Avenida morava o Juvenal, colega do Grupo Escolar Murilo Braga.

 
Pois bem, no início de abril, pela manhã, caiu uma chuva de granizo cobrindo com um branco lençol o calçamento da praça. Eram seis horas quando eu me dirigia ao meu primeiro emprego, no Moinho Goiás. Aos doze anos trabalhava como empacotador de farinha de trigo. Escondí debaixo da marquise com minha bicicleta Philips, presente do meu pai. Esperei passar o temporal. As flores vermelhas, agitadas pelo vento gelado, batiam nas outras perturbando apenas o silencio que reinava na Vila Nova naquela hora. Alguns raios de luz vindos do interior da venda escapavam pela fresta da porta.
 
Pensamentos esparsos me acompanhavam durante a espera. Num deles me lembrei do que me dissera um morador a respeito do Seu Severino, dono do armazém e pai da Gracinha.
  
-Não mexe com a filha do Severino. Homem calado, muito cuidado! Gente de pouca fala não deixa perceber suas intenções. São mais previsíveis do que os que se derramam em ameaças e dão aviso do que pretendem fazer.

 
Alarme falso. Jamais soube de um ato de valentia do Seu Severino. Depois pensei  na figura do Botinha, meu chefe da sessão de empacotamento de farinha, que deveria estar nervoso pelo meu atraso. Sabendo como ele se comportava nessa ocasiões resolvi enfrentar os últimos pingos da chuva que lavou a poeira dos galhos das árvores. Com as duas mãos no guidom empurrei a bicicleta para dar velocidade e pulei no selim com se fosse um cavalo. E pedalei firme pelas ruas esburacadas até chegar ao trabalho. Meu salário da semana vinha em dinheiro. Sem desconto porque eu não tinha carteira assinada. Com esse dinheiro fazia a farra dos meus irmãos mais novos. Dava bem para o sorvete e a raspadinha gelada na feira do domingo.

 
Raspadinha era uma barra de gelo raspada com uma espécie de enxó e misturada com essência de groselha, abacaxi ou limão. Uma delícia que deixava geladinha a barriga da gente. Também pensei: hoje é sábado. Dia de vai-e-vem na Pracinha. E de pipoca no carrinho do Seu Manoel. Talvez ela estivesse na praça, simples com seu vestido rodado, linda e tranquila. Quem sabe a Gracinha olha pra mim. Assim trabalhei  naquele dia.
  
Hoje não sou mais gente nova. Todos os dias Deus põe sal na minha moleira. Um chapéu na cabeça encanecida me convém para me guardar do sereno. Ou talvez uma cadeira de balanço para sossegar os meus pensamentos que se afogam nas torrentes de águas passadas.
 
Ando devagar.  Acho que vou andar por outros cantos da cidade.
 
Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

Cântico a um líder


Iris Rezende é festejado como um líder carismático e moderno. Sua vida é o foco de artigos, crônicas, livros, programas de rádio e televisão, inclusive dissertações de mestrado e teses de doutorado. Somem-se a isso os discursos, homenagens e títulos que lhe foram prestados no curso da sua vida pública. Além do raro talento político sua alma está centrada na dignidade do ser humano.

Com ações que visam o bem das gerações futuras. Exagero? É só levantar os seus feitos de 53 anos de vida pública. Aliás, sua missão sempre foi servir ao próximo; exemplo do pai Filostro Machado. E isso se cumpre em cada função pública que exerce. Iris é o resumo da sabedoria dos antigos em um discurso moderno. Os sábios da  tribo Sioux,  índios do nordeste dos Estados Unidos, planejavam o futuro pensando na sétima geração. Assim faz o Iris em suas administrações. Pessoas anônimas, artistas e intelectuais se encantam com a sua capacidade de contar histórias e realizá-las. Talvez venha do céu o fogo do seu ideal que usa para iluminar o caminho do povo.

Pedro Ludovico, um sonhador como Iris, idealizou aqui um posto avançado de uma nova civilização; inaugurada com o Batismo Cultural, em 1942. Sete anos depois Iris Rezende chegava a Goiânia. Em 1965 foi eleito prefeito. Antes deles, Goiás, um dos estados mais atrasados do país, vivia de uma tradição agrária rudimentar. Mas, a‘treição’, um costume da roça conhecida como mutirão, simbolizava o jeito peculiar do povo do interior em compartilhar sua vida com a dos vizinhos. Iris implantou o sistema de mutirão  na administração pública. Joseph Campbel, mitólogo norte-americano, diz que aquilo que os homens têm em comum revela-se no mito. Coube ao Iris incorporar a cultura goiana de luta contra as adversidades e projetá-la para o futuro. Sua biografia revela um construtor  incansável.

Nem as derrotas pessoais, como a cassação do seu primeiro mandato de prefeito pela ditadura militar em 1969, lhe tiraram o ânimo. Voltou como governador em 1982 e 1990.  Depois vieram as derrotas de 1998 e 2002. Só as pessoas iluminadas acham força em Deus para superar o deboche dos contrários.

Lembro nessa crônica a lenda Tupi sobre a origem do fogo contada por Levy-Strauss, antropólogo francês, em seu livro O Cru e o Cozido: "O herói mítico finge que morreu e atrai os urubus. Estes, que eram os donos do fogo juntam-se em volta do morto e acendem uma fogueira para cozinhá-lo. O herói afugenta os urubus e toma posse do fogo entregando-o aos homens". As vitórias em 2004 e 2008 são metáforas dessa história. Numa visão antropológica a vida de Íris Rezende tem um formato mítico que se assemelha ao personagem de Strauss. E esta lenda, com versões diferentes, corre longe.

Uma das características do mito é a forma simbólica da narração dos seus feitos.  A outra é a de que a história do mito explica a realidade vivida em sua época. Mircea Eliade, historiador romeno, diz que o mito conta a história de um comportamento humano que se torna uma realidade. Iris Rezende, mais do que gestor, é a própria manifestação da cultura viva de Goiás; criou um paradigma com a cara de Goiás. Naturalmente que este padrão está fundamentado em modelos de transformação dos costumes. O exemplo de Iris produz  um novo conhecimento; modernizam as relações humanas; influenciam o comportamento individual e coletivo; alteram a ocupação do espaço do homem e leva os estudiosos a um olhar científico sobre as suas ações. Isso o coloca como autor contemporâneo da história goiana. Na visão antropológica Iris é a síntese da cultura que transforma e ensina pelo exemplo. Temos em Goiás dois mitos: Pedro Ludovico Teixeira que construiu Goiânia e Íris Rezende que a fez metrópole. Por esse lado penso que o Iris foi mais ousado; construiu quase toda a estrutura física atual, principalmente casas populares e estradas asfaltadas.            

Goiás precisa se desenvolver mais para se firmar como marco da civilização sonhada por Pedro Ludovico. E o farol do futuro aponta para Íris Rezende. Interessante observar que, com o passar do tempo, ele se moderniza. Sobretudo sua dialética que valoriza o outro sem negá-lo. Por essa causa as suas realizações são mais duradouras. E são cantadas em prosa e verso como cântico a um líder que acaricia todos os tempos. O que faz com que esta representação simbólica do mito Íris Rezende inaugure uma nova prática numa época de arrancar as raízes da descrença.

Janela dos óculos

Na semana passada eu parei a minha crônica no meio da história de Anita, mocinha de 18 anos, casada com o quarentão Luiz da TV. A jovem entregara-se ao casamento com alegria e inocência. Recebia em troca segurança e, sobretudo, muita veneração. Como eu ia dizendo na crônica anterior, tudo parecia perfeito no casarão da Rua 206, na Vila Nova. Até Luiz receber um telegrama de São Paulo com notícias da morte de Geraldo, compadre e amigo de biscates na Praça da Sé.  Quando veio para Goiânia seu amigo era pai solteiro de um menino de cinco anos. Outros seis se passaram até a morte do compadre. Lembrou-se de um compromisso feito com Geraldo de que, como padrinho, cuidaria do menino se alguma tragédia acontecesse com ele.

Como era um homem de palavra cumpriria a promessa. Foi falar com Anita que consentiu. Uma semana depois Edgar, acompanhado por um guia, chegava de trem a Estação de Goiânia. Lá estava o casal esperando. Luiz pagou o homem o que combinaram e ainda deu-lhe o suficiente para o pouso. Juntos, Luiz, Anita e Edgar embarcaram numa perua DKW Vemaguete rumo ao casarão da Vila Nova.  

Anita se dedicou, quase maternal, ao pré-adolescente de 11 anos. Ela acompanhava de perto os estudos e as tarefas do Colégio Santo Agostinho, no Bairro Popular. Lá surgiu o interesse dele em ser padre. Algum tempo depois partiu para um seminário no interior de Minas Gerais. Três anos depois desistiu da ideia e retornou à casa dos pais adotivos. Já não era um garoto, mas um belo adolescente com uma boa educação adquirida no seminário. Até falava um pouco de latim e francês.


Anita olhava com admiração o jovem. Logo percebeu que o interesse foi se tornando um prazer indescritível. Sentia a sua ausência; até mais que a do marido. Achou, a princípio, que era instinto maternal. Aos poucos um novo sentimento chegou puro e inalterável. Só podia ser amor. Lembrou das palavras do seu pai: “quando se tem a cabeça no lugar tontura nenhuma há de incomodar”. Mesmo assim, Anita descobriu que, pela primeira vez, amava sinceramente. Talvez para outra mulher isso fosse o fim do casamento. Mas, esta descoberta não a incomodou;  nada mudaria o rumo da sua vida.


Pensando assim redobrou os cuidados com o marido. Sem descuidar de Edgar. Era uma paixão devotada, porém, séria e casta. A Vila Nova dos anos 60 foi alegre e festeira. Nessa época comecei a enxergar pela janela dos óculos. Havia as matinês dançantes de domingo; sessões de cinema no Cine Regina; Bailes na Liga dos Amigos. Os três eram presentes na vida social da Vila Nova. Longe, no Lago das Rosas, o banho nas nascentes frias do Capim Puba.


Na semana passada, ao abrir a primeira parte desta crônica dizia ser um mero espectador da alma goianiense. Apanho, como num campo de cereal, espigas  maduras de grãos. São histórias colhidas aqui e acolá. Deixo, a propósito, para o final da minha crônica para contar o fim triste de Edgar. Ele morreu afogado no Lago das Rosas. Logo depois o local foi, para sempre,  interditado para o banho. Anita escreveu num canto do seu diário: "Por que chorar? Encho a minha taça com amargura. Fez-se uma claridade dolorosa".

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raaizestv.net

Mão-de-onze

Estranho o truco jogado naquela casa; calado e no escuro. O silêncio  trazia fantasmas para morar na escuridão. Os jogadores continuavam calados, com palavras e gestos medidos. Bem ao contrário da natureza barulhenta e alegre do truco. No centro da sala uma mesa pequena, quadrada, com quatro cadeiras ocupadas por jogadores tensos. Era possível ouvir a respiração dos jogadores enquanto manuseavam as cartas, três em cada mão.

Voltou a luz e, com ela, um pouco de entusiasmo. Mas o clima ruim continuava no ar. As paredes enfumaçadas e picumãs pendurados no teto escondiam um segredo. O jogo de truco, por tradição, é feito sem apostas. Mas, neste jogo havia um acordo sinistro.

- É meu o baralho. Dou das cartas!

Cada um examina as suas:

- Eu sou o pé. Então, você que é mão, joga  a sua carta!

Cai um ás de espada na mesa, depois um valete de ouro, um três de paus e, no pé, uma espadilha fecha a primeira mão.

-Primeira feita, Agostinha na garupa.

Começa a segunda rodada. ‘O mão’ retorna a primeira carta e um três de copas roda a mesa até fechar a segunda mão sem truco. A seguir a última rodada da queda. Estava jogo-a- jogo e onze a onze; uma das duplas chegaria aos doze pontos. Pela regra ninguém podia trucar na mão-de-onze. Nessa altura a sorte seria de quem tivesse as maiores cartas ou uma boa psicologia do jogo.


 Antes de embaralhar os jogadores se levantaram para esticar as pernas. Isoladas, as duas duplas de jogadores tratavam da estratégia final. Depois, sentaram-se.  No truco os parceiros ficam de frente; os adversários, um  à esquerda e o outro à direita. Um deles falou:

 - O mundo é chato. Todos os dias é a mesma coisa pra mim. Acordo de madrugada, levanto, bebo café, dou umas voltas, almoço, janto e vou dormir. Nada há de novo. Eu sei que existe gente que acha o contrário. Mas eles encontram motivos para pensar assim, eu não.

- Pois é. Eu também sou desse jeito. Tento não ter inveja de ninguém. Mas não consigo evitar a inveja dos que têm o que fazer. Acordar, trabalhar, ir ao cinema, ao estádio, pescar, enfim, essas coisas que tomam o tempo e levam-nos mais  mansos para a hora do juízo final. Porque dessa ninguém escapa.

Houve um silêncio entre os quatro. Entrou um ar úmido e limpo. Mas parecia que respiravam um ar que não era deles.

- O mundo está cheio de bondade. Mas, ás vezes as nossas preocupações vem nos visitar em momentos de desânimo. É como o nordestino que tem orgulho da sua terra, porém, não gosta de receber visitas no verão, quando tudo está seco.

- É... os três tem razões em pensar assim. Mas, vou lhes confessar uma coisa: estou com medo. Não quero ir agora. Concordamos com a  roleta-russa. Mas, a gente poderia rever os termos da aposta.  

Num canto da sala tinha um revólver com duas balas no tambor. Uma inesperada brisa gelada entrou pela janela, fez tremer os jogadores, e foi expulsa por uma luz sobrenatural que invadiu a sala e aqueceu o ambiente. Um deles quis resistir á proposta. Outro, ligeiro,  retirou as balas da arma e o escondeu da tentação. Todos concordaram com um sorriso aliviado. Novas cartas foram distribuídas.                

 Agora, sim, o truco parecia jogo de truco. Um dos jogadores subiu na mesa:

-Truco, papudo!

Outro se levantou e, aos berros, retrucou:

- Toma seis, ladrão dos meus tentos!

 Não mais importava quem ganharia a mão-de-onze. A luz traz ânimo para tirar os fantasmas da solidão que mora no escuro da  alma do homem.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural na Fonte TV (www.raizestv.net)