sábado, 29 de dezembro de 2012 | By: Doracino Naves

A Verdadeira Luz



Pede um prato de feijão com arroz, carne de panela, ovo frito e o olhar numa secular vereda de buritis. Ver uma roça de arroz soltando cachos amarelos, prenúncio de colheita farta. Ou então um bule de café com broas de milho no frescor das manhãs na roça. Vida simples é agradecer a generosidade da vida.

         Quem me dera voltar a viver assim, sem as tribulações das cidades modernas. Esse tempo passou. Estou irremediavelmente preso pelo viver do mundo moderno que constrói corredeiras no leito do meu rio. Elas me jogam para frente sem chance de voltar atrás. Resta-me a poesia das recordações com o som alegre do pagode da roça tocado pelo ponteio da viola e o sopro da sanfona ecoando no sertão. O casal de namorados; furtivos, se amassam junto ao mourão da porteira por onde entra boi e boiada.

         Ainda brilha no tempo a lamparina acesa num casebre à beira da estrada com fantasmas ancestrais numa roda de causos. A vida na roça é simples e prodigiosa. O caipira guarda a sabedoria dos simples; por isso está mais perto do céu. Graças a Deus pela chuva, pelo sol e a colheita farta. Não é fácil viver na simplicidade; é ainda um ideal.

        Amar simplesmente, sem arranjar desculpas para isso; falar simples com o jeito direto, sábio e descontraído do homem da roça; olhar o mundo com a generosidade de Cristo; ouvir os sons da voz do Santo Espírito; se arrepiar com os acordes do Hino Nacional, viajando na história alegórica das lutas do povo; sentir o gosto da fruta madura apanhada no pé. Escrever simples.

        Eis o grande desafio de quem escreve.

        Tirar do fato cotidiano a sabedoria das palavras organizadas com o sentido da vida. As melhores coisas do mundo, inclusive a felicidade, são retiradas do jeito descomplicado de viver. A natureza oferece lições de que o deslumbramento diante dos maiores feitos da humanidade é nada comparado ao esplendor da arquitetura organizada do universo.

        O farol mais luminoso construído pelo homem é sombra diante do sol. A música dos grandes compositores resume os sons captados do universo. Nenhuma paisagem artificial rivaliza com a beleza natural da terra.

        Vida simples pede um copo d’água fresca colhida junto ao regato que corre entre as pedras do cerrado.

        Meu espírito vislumbra a claridade da Verdadeira Luz. Cristo é simples e humilde.

        O ser humano é um projeto perfeito não fosse o egoísmo, o desamor e a falta de atenção à ternura dos anjos de Deus.


Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV(www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
Imagem: Por do Sol na Fazenda Vale das Quimeras - Piracanjuba - Goiás - Acervo Pessoal.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012 | By: Doracino Naves

Anjos da esquina

 
As esquinas são universais. Também são exibidas e individualistas. Eu sempre guardei rebanhos delas impressas no papel do pensamento. Já houve tempo em Goiânia em que as melhores lojas e residências estavam nas esquinas. Ter uma casa de esquina foi- por muito tempo - sinal de prosperidade. Talvez por essa razão o desenho de um edifício começa pela esquina. Arquitetos construtores de esquinas preferem-nas ao juntar cimento, ferro e madeira para amenizar a paisagem urbana. Minhas esquinas preferidas ostentam jardins coloridos.
                 
Cada esquina tem um jeito de enfrentar o açoite do vento, o calor do sol ou a solidão da lua. Há uma insofismável dualidade nas esquinas perdidas no chocalhar ruidoso das ruas. Na soleira voltada para o sol mora a luz. Do outro lado - na contra esquina - a escuridão anunciada da tarde se esconde na tristeza do pôr-do-sol. A entrada principal de um prédio de esquina sempre dá as mãos a quem passa; no outro lado- quase sempre secundário - um paredão sem janelas impede a passagem das borboletas.
                
Não importa se as esquinas se voltam para o leste, o sul, o norte ou para o oeste; elas são majestosas. E ideologicamente definidas: sempre à direita ou à esquerda da rua; nunca no centro. Anunciam-se aos quatro ventos em variadas formas, cores e alturas. Algumas - como se fosse Jacobina, o quinto personagem de O Espelho, de Machado de Assis - embora criadas para mostrar duas almas, mostram só o exterior. Mas, mesmo a esquina mais vaidosa - do tipo que se acostuma ao vazio interior - tem espelhos a refletir os dois lados. Por essa causa a intrínseca dualidade da sua existência.
               
Gosto mais das esquinas assumidamente 'esquinas' com portas escancaradas para todos os lados. Adoro as regateiras. Triste é perceber que a insegurança dos dias de hoje fecha portas e janelas.
                 
Hoje, uma porta de entrada também serve de saída. Haverá um dia em que as esquinas voltarão a serem esquinas vaidosas e felizes com portas escancaradas para todos os lados. Então, por elas passarão homens e beija-flores. E o mundo se alegrará com as esquinas povoadas de gente.
              
A esquina é o ponto mais aparente e democrático da cidade. Não discrimina ninguém. Nela fazem ponto a prostituta; o ladrão; o assassino; o apaixonado ansioso à espera da amada; os homens de negócios; o engraxate e os anjos protetores das esquinas, encruzilhadas do ócio.
             
Bendigo as esquinas com pessoas nas calçadas a espera de um milagre. A esquina é bela e antiga desde o Coliseu de Roma, o Parthenon grego, as pirâmides do Egito com o bafo da Esfinge que, há séculos, sopra o ar seco do deserto na antecâmera do rei. Oscar Niemeyer criou milhares de esquinas curvilíneas.
             
Uma leve brisa acaricia cada esquina. O exército de anjos protege-a no solitário facho de luz ao alto da torre ou na sombra que se esconde do habitual e eterno sol poente. As esquinas, planejadas para receber gente, são muralhas da finitude. Os rios perenes, estão certos de que constância de suas suas águas molharão a terra ressequida do caminho. E, então, correm apressados para o sal dos oceanos.
             
Goiânia tem muitas esquinas e o rio Meia Ponte, de águas fugidias, que corre para o sul. Fiel ao seu destino, a minha esquina dorme e acorda sempre no mesmo lugar. Na soleira da janela aceno um lenço branco aos anjos da majestosa esquina.  

(Publicado no Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás).


               Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural (www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.