terça-feira, 21 de junho de 2011 | By: Doracino Naves

Flores na Janela

Ainda não fui à Europa ou aos Estados Unidos. Sou um cosmopolita platônico. Conheço outros países por meio da história contada pelos escritores nos grandes clássicos da literatura. Os bons filmes mostram lugares, costumes e personagens. Minhas viagens são feitas assim; virtuais. Cidadão Kane, em que Orson Welles dirigiu e atuou, mostra a vida do jornalista Charles Foster Kane. Não vou contar a história nessa crônica; é longa e trágica. O filme, original em preto e branco, merece ser visto.  
                   Nunca viajei de trem pela Europa. Mas, de Araguari à Goiânia, embalado no ventre de uma saudosa maria-fumaça, eu posso falar.  Aprecio Nova York, mas conheço Orizona, Pires do Rio, Urutaí, Leopoldo de Bulhões, Anhanguera, Piracanjuba, meu novo encanto. Por enquanto, isso me basta. Na verdade, o dinheiro sempre foi curto para mordomias. No ano passado juntei um dinheirinho para visitar o Chile. Já tinha quase o suficiente quando, na Rua 26, em frente à casa que foi de Pedro Ludovico, um motorista distraído com o seu celular bateu na traseira do meu carro e fugiu sem pagar o prejuízo. O jeito foi gastar a poupança no conserto do carango. 

               Telúrico, fico agarrado ao interior. Nasci em Minas, virei goiano desde que, aos cinco anos, me mudei pra cá. Tenho orgulho da minha raiz mineira. Hoje, Minas e Goiás são os cenários que dão asas às minhas fantasias. E têm a paisagem mais bonita do mundo; o cerrado. Acho que Deus ao ver o cerrado guardou-o para fazer o paraíso. O juízo de Deus, às vezes duro e implacável, inventou essas imagens com o olhar de uma criança; cândida, águas cristalinas em cachoeiras e remansos, campos floridos. Frutos de todas as cores; saborosos e abundantes. Pássaros afinados e uma brisa suave soprando músicas celestes.

              Essa foi a impressão que, na infância, tive do cerrado. Havia música na primeira vez que enxerguei um pendão de capim dourado. Os talos se tocavam reproduzindo notas musicais vindas do céu. O vento soprava instrumentos numa orquestração divinal. Em Corumbá havia flores nas janelas do casario. A imaginação tem cores, notas musicais e muita fantasia. Com o tempo nossas paixões e convicções tiram-nos a pureza. A visão ingênua se transforma em terra dura, desértica com a alma seca e insensível. Somente a poesia pode perpetuar o sentimento de uma criança.

                Quando vi o filme Girassóis da Rússia, me veio a visão das flores colocadas nas janelas de Corumbá. Se a Rússia tem girassóis amarelos, a paisagem do cerrado é multicolorida e exuberante. E ainda sobram flores para enfeitar as ruas de Goiás.       

               Rubem Braga, capixaba fundador da crônica moderna brasileira, disse sobre ser goiano. “Sou um homem do interior, tenho uma certa emoção do interior, às vezes penso que eu merecia ser goiano”.  Tive melhor sorte. A vivência em Goiânia deu-me este título. Percebo que a gente do interior é boa para contar histórias. Nos dias jururus entendo que a vida tem pouco sentido. O jeito é reinventá-la por meio da poesia que existe nas coisas, nas ruas, nas pessoas. Ou na expressão de uma criança alheia à corrida desenfreada dos adultos. 

               Tenho muito que aprender nessa terra. Talvez seja por isso que demoro aqui. Muitas vezes me sinto preso no emaranhado das minhas próprias teias de ser imperfeito. Fugir para fora de mim e, longe, lá nas altura, me enxergar como sou. Talvez seja Tamino, o personagem de A Flauta Mágica, de Mozart, que amedrontado foge da Serpente da Noite.

               Três destinos indicam os meus caminhos: da natureza; da sabedoria e da razão. Talvez o meu tempo de viajar pelo universo ainda esteja distante. Não sei. Vejo as estrelas com os pés fincados na terra.

               Meu espírito pode até viajar para outros mundos, mas a minha alma jamais sairá da minha terra.
          
        Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista. 
segunda-feira, 6 de junho de 2011 | By: Doracino Naves

O som da crisálida

Cinco da manhã, um vulto surge do lado escuro do prédio da Assembléia Legislativa de Goiás, pelo lado do Colégio Atheneu. Ele me assusta quando diz:
-Eu também sou de paz.
Respondi rápido:
- Ótimo. Deus o conserve assim!

Continuei andando sem ver o rosto da pessoa.Olhando mais à frente percebi, a uns 200 metros, uma pequena multidão. Um radinho de pilha tocava música caipira. Naquele alvoroço tinha homens e mulheres; uns jovens, outros mais velhos. Todos carregavam colchonetes, ferros, lonas, apetrechos de cozinha e ferramentas. Lembrei-me da dificuldade das antigas pescarias do rio Araguaia, quando a gente montava acampamento pra pescar nos cardumes.

Mas aquela turma não era de pescadores.  E os peixinhos do lago do bosque, coitadinhos, nem são tantos. E depois, pescar ali é crime ambiental. Dá cadeia e não tem fiança que dê jeito.

Eu estava começando a minha caminhada em volta do Bosque dos Buritis. Gosto de fazer isto bem cedo. Um pouco mais adiante, já na Alameda, uma fila de ônibus estacionados com os motores ligados, cuspindo fumaça preta na minha madrugada. De dentro dos ônibus saía mais gente do que nos ‘buzús’ do Eixo-Anhanguera em dia de Vila e Goiás. Fiquei intrigado com aquele movimento. Pelo que sei nenhum deputado começa o expediente nessa hora.

Ah, já sei! Deve ser pra ganhar uma casa do Lula. Pensei: “É, tem muita gente precisando de casa pra morar”. Continuei a caminhar ouvindo os sons do bosque. Por falar nisso, você já ouviu a floresta crescer?  Ou o som da crisálida parindo borboleta? Você pode perguntar: mas, que som é esse? Duvide, mas eu ouço sons quando caminho em volta da mata.

Com os sentidos ligados fui pensando: “De onde será que vem tanta gente?”. Na segunda volta observei a placa de alguns ônibus: Itaberaí, Catalão, Rialma, Itapuranga, Porangatú. Em alguns destes ônibus estavam escrito: “Escolar”. Mais na frente, umas seis pessoas carregavam faixas enroladas. Pensei: “Deve ser algum suplente de deputado que vai ser empossado”.

Na terceira volta da caminhada senti, de longe, um cheiro agradável de café. Vi que muitas barracas já estavam armadas; as faixas de pano amarradas nas guarirobas da Assembléia. Numa delas estava escrito: “Não à descriminalização dos movimentos sociais”. Do lado direito tinha uma sigla: MST. Movimento dos Sem Terras. Aí entendi a razão daquelas palavras no começo da minha caminhada.

Olhei para o desenho da minha camiseta: Soldados da Paz. Este é o lema de um projeto cultural feito em parceria da Prefeitura de Goiânia com o SESC. Aquele militante queria me dizer que o MST é pacífico.  Não faço juízo se “é ou deixa de é”, como diz o filósofo popular João Bacana. Mas, pelo aparato na mobilização das pessoas, inclusive com carros de luxo despejando gente para engrossar os acampamentos, penso que tem gente graúda por trás de tudo isso. Relaciono uma meia dúzia de interesses fajutos.

Porém, a grande maioria dos sem-terras é de pessoas de bem. Muitas delas já beirando os seus 70 anos ou mais. Por estas bandas de Goiás quando vemos pessoas com esse semblante calejado na labuta, a gente sabe que são pessoas boas. O que elas querem, na verdade, é só um pedaço de terra pra viver bem.

Novamente eu me pergunto: por que usar a boa-fé dessas pessoas que sonham em ter uma terrinha? Pois é, só um ideal forte é capaz de tirar tanta gente da cama no meio da madrugada, ou quem sabe até antes; viajando quilômetros aos solavancos das estradas esperando realizar um sonho. Mas, que deve existe interesse e muita grana por trás de tudo isto.  Ah, isso existe!

Não acho correto usar os sonhos das pessoas por um capricho político ou qualquer outro interesse. Com diz o Chico Buarque: “É gente humilde, que vontade de chorar”.
Por isso, respondo :

-Eu também sou da paz.

Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, Fonte TV (www.raizestv.net)

O silêncio é crime

Lembro da aula inaugural do curso de jornalismo na Universidade Católica de Goiás. Isso foi em 2004. Tinha mais de 60 alunos na sala, cada qual com um sonho secreto. Todos eram jovens; a média de idade talvez nem chegasse em 20 anos. Eu, com mais de 50, parecia o avô da turma. A maioria entrara na faculdade de jornalismo para fazer televisão. Poucos queriam o impresso. Outros, em número menor ainda, o rádio. Só 18 alunos chegaram ao oitavo período do curso. Mas, o coração da maior parte continuava indeciso.

Eu, jornalista tardio, trabalhava na revista Automóveis & Cia. Resolvera seguir no jornalismo tendo como exemplo o Batista Custódio. Com a verve dele e a palavra doce, leniente, de Jávier Godinho, cujos textos se transformam em borboletas de luz a clarear a magnífica floresta de homens. Escrever no mesmo espaço do jornal em que escreve Jávier Godinho é um privilégio. Não aprendi a escrever igual a eles, mas recebi as suas boas palavras. Batista Custódio é a fonte e o ideal do bom jornalismo. Às vezes duro, outras vezes ameno, generoso; hábil poeta na construção de metáforas lendárias. Seus textos são antológicos. Os melhores, criados desde o jornal Cinco de Março, estão guardados como tesouros da imprensa goiana. 

Batista usa a palavra com a precisão de um esgrimista, mas tem no coração uma canção de amor escancarando as portas do DM aos bons ideais. Quando usa a navalha ou a pluma em seus textos Batista Custódio é supremo. Absoluto na arte de colocar o coração no teclado da sua máquina de escrever. Dialético, conclusivo, Batista é o eterno renovo do jornalismo brasileiro. Para o Diário da Manhã o silêncio é um crime. Por isso o jornal ouve o barulho dos artigos ecléticos dos colaboradores do Opinião.

Mas, o Batista não precisa de toda essa bajulação. Volto ao tema inicial. Faço essa transição textual porque recebo do “DM Revista” tabletes de açúcar refinado a adoçar minha crônica semanal. E ela vem incensada com o ideal jornalístico que deve se expressar em linguagem simples. Um bom modelo da singeleza de texto é o de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. 

No oitavo período do curso de jornalismo, mesmo interessado no impresso, já fazia o programa Raízes Jornalismo Cultural, na TV, nascido no estúdio de TV da Universidade Católica, hoje PUC-GO. Segui os passos dos professores Márcio Venício e Bernardete Coelho, jornalistas da TV Anhanguera que tentaram me ensinar um pouco sobre televisão. Se mais não aprendi é porque demoro a aprender as coisas. Mas, o tempo passa, a vida é curta, estreita como é o caminho do homem.
Ao contrário das ruas largas de Goiânia que, muitas vezes, levam ao desvio da aula inaugural da vida. Bela, jovem, irreverente, nossa cidade tem a força de dez cidades imbricadas uma na outra. Guarda em suas ruas e avenidas um pouco da pujança de São Paulo, da beleza de Brasília e da jovialidade de Palmas. Goiânia é tentadora nas suas curvas salientes.

No fim deste outono o céu se abre azul numa paisagem seca com pontinhas de sol brilhante nas ruas, nas praças, nos bosques, nos prédios e na alma das pessoas. As flores derrubadas pelo vento cantam à luz da manhã celebrando o mês das festas juninas.  
          
Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. (www.raizestv.net). Escreve aos sábados neste espaço