sábado, 28 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Luz de Setembro - por Doracino Naves


Dedicado à Soraya Naves
Amanhã, domingo, é aniversário de Soraya. Durante nove meses - do verão chuvoso de dezembro à primavera de águas temporãs do setembro vindouro - cresceu no ventre da mãe para vir ao mundo e acender a luz na vida de muita gente. No primeiro dia vinte e nove da primavera ela chegou protegida por uma majestosa aura celeste; cabelos loiros cacheados e olhos verdes; nas cores da estação em que Deus escolhera para ela nascer. O ano?

Prefiro não falar. Não sou doido para fofocar a idade de uma mulher, mesmo sendo a da minha filha que tem jeito de festa e música caipira dentro da alma. Um anjo de madeixas aneladas que iluminam os meus anos, até naqueles de interminável inverno cachaçal. Isso, graças a Deus, passou.  Hoje tenho esse jeito abstêmio de quem não bebe conhaque - "eau de vin" - nem no frio chileno de zero grau.

O inverno de 2013 foi embora de Goiânia no dia combinado com a natureza; revogado sem piedade pelo eterno vai-vem das estações. O consolo é que o calor dessa primavera garante, logo nas primeiras chuvas, que o cerrado goiano vai florir; espero que chova logo, senão a vaquinha leiteira terá que desmamar o bezerro.

Vejo que o céu está pintado com tinta mais azul; o sol vermelho faísca luzes nas frestas de Libra. Às vezes percebo nuvens de algodão penduradas por fios invisíveis. Vai ver que as nuvens também são invisíveis; tenho essa mania de ver coisas irreais quando escrevo.

Mas a filhota Soraya é real. E é linda como é o jardim do cerrado depois das chuvas serôdias.  

Enquanto isso, as cigarras preparam a garganta para recomeçar o cântico ancestral até explodir suas entranhas e sua pele seca ficar grudada no lugar do último canto. A primavera é a invenção do tempo para colorir o mundo, assim como Deus concede a graça da misericórdia para perdoar nossos pecados.  Assim, Soraya, as águas da estação da chuva primaveril hão de chegar com a certeza de bênçãos abundantes em tudo que você fizer.

Peço a Deus para que não perca nunca esse seu jeito bondoso de lidar com as pessoas; o sossego de caçula desmamada que se acomoda com doçura nos braços da mãe. E se aquieta no aconchego de uma eterna canção de ninar.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 28 de setembro de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. (raizestv.net). Escreve aos sábados no DMRevista.       


quarta-feira, 25 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Dança da primavera

     Na semana passada eu parei a minha crônica no meio da história que me contava o amigo Walterson; no mesmo instante em que ele suspirou fundo como se buscasse força para contar o desfecho do seu caso. “Mais uma primavera cruza o meu rio”, pensei enquanto caminhávamos em volta do Parque Areião. Walterson olhou em volta e continuou.

      ... E a minha esperança de falar com a mulher da foto surgiu com o bilhete rabiscado num pedaço rasgado do saquinho de pipocas: “Domingo, seis da tarde, na Feira do Sol, ao lado dos quadros de pintura”. Fiquei aliviado mesmo não sabendo nada sobre ela, exceto o que me falara o coração. Mas coração apaixonado quase sempre se engana.

       Antes do horário marcado eu já estava lá vestido na melhor roupa.  Ela chegou caminhando lentamente; parecia flutuar sobre a calçada. Uma brisa suave evoluiu até o vento assoviar através das cordas de segurança das barracas dos feirantes. Trajava um vestido simples, de rendas brancas com uma fina corrente de ouro a sustentar uma pequena medalha de Nossa Senhora sobre o decote discreto. Calçava sandálias de cor rosa suave; saltos baixos moldurando pés delicados. Seu corpo exalava um perfume suave e agradável.

         Essa visão deixara para trás a esquina das lembranças trêmulas do meu passado; luzes delirantes de lamparinas antigas cambaleantes nas brumas da minha infância em Mossoró. Desde então atravesso morros e planícies do viver com o coração em brasas. Aquela mulher me fez tirar do milharal caído o espantalho inútil das más recordações. Naquele dia seu corpo bailou em minha direção como se encenasse a suave dança da primavera.

        Cumprimentei-a com reverência; convidando-a a caminhar pela praça tumultuada. Disse-me que não poderia demorar muito, pois tinha compromisso na igreja. Pedi-lhe mais informações sobre a sua vida. Disse-me que estudava no Instituto de Educação, que o seu sonho era ser  professora. Estava solteira e recebia uma pequena mesada para custear os seus estudos. Morava numa república de estudantes perto da Praça Universitária. Deu-me o endereço. Despediu e se afastou com os movimentos de uma bailarina celebrando a primavera no céu.

         Algumas vezes vi quando saia e entrava em sua casa.Havia uma aura de mistério em suas andanças. Em alguns momentos pensava que era casada, noutros que tinha medo dos homens; por estes motivos evitara novo compromisso. Pensei em desistir de tudo. Por fim tomei uma atitude extremada: escrevi propondo casamento; estava desesperado. A resposta veio num lacônico bilhete deixado na portaria aumentou o mistério.

         “Não posso me casar. Porém, não quero falar sobre isso”.

          Respondi-lhe com alguns desaforos, tipo “você é casada ou tem outro pretendente”; “Por que não me diz a verdade, assim deixo-a em paz”. A resposta não tardou “Não tenho ninguém, perdoe-me se faço você sofrer. Deixo-lhe uma foto”. No verso uma mensagem inesperada: “Com amor”.

               Depois dessa resposta fechei o coração para outro relacionamento; fui cuidar da minha vida como convém a um bom nordestino. A verdade é que amei muito essa mulher;  guardo na memória o seu perfume.

              Você não voltou ao lugar ao lugar onde ela morava?

          Pois é. Passado um tempo fui até lá, me aproximei do porteiro, mostrei a foto e perguntei se a conhecera. Olhou firme nos meus olhos. Ela morreu afogada no Lago das Rosas. O corpo dela só foi encontrado no dia seguinte. Seus pais vieram do interior para cuidar do sepultamento; estavam chocados com o acontecido. Você se lembra do Lago das Rosas? Lá morreram muitas pessoas até ser fechado para lazer. Tratava-se de uma boa moça, educada, que não se envolvia com nenhum rapaz. Entretanto, a minha impressão sobre ela é de uma moça misteriosa.

               Sempre concordei com o que me disse o porteiro. Por isso perguntei a você se, pela foto, ela merece respeito. O amigo emendou outra conversa; desejava encerrar o assunto. Sabiamente, parou na barraca do Zé do Coco.
               
              As conversas de nordestinos são longas, como longos e tortuosos são os caminhos da recordação.  
Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em setembro de 2013.
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.programaraizestv. net). Escreve aos sábados no DMRevista.
domingo, 8 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Então, amigo, qual é o problema?

Um amigo pediu emprestado meu livro de poemas do Walt Whitman e não devolveu. Meses depois encontrei com ele na Panificadora Canadá, perto da Praça Tamandaré. Disse-me que ainda não havia lido o livro; nem abrira suas páginas.  Entendi como desfeita ao pai do verso livre e a mim; de verso preso. Sacanagem em dobro. No sábado anterior eu procurara sem êxito o mesmo livro no Goiânia Shopping. Emprestar livro e não receber de volta é comum; acabo transformando o empréstimo em presente. Mas, esse cara foi além: não leu e, talvez, por desprezo, guardou-o dentro de uma gaveta junto com pedaços de canetas usadas e a sua velha agenda ensebada da época da Telegoiás; merece ser processado por guardar poesia com objetos descartáveis.  

Ler é liberar pirilampos abrasados pela palavra do poeta; as letrinhas voejam irradiadas pela imaginação de quem recebe a força do verso. Poesia é a essência da vida; só a palavra poética nos salva da vida frívola das grandes cidades. A ganância da mídia por audiência só nos dá celebridades vazias, escândalos e fofocas; somos tratados como imbecis pela televisão e o cinema de consumo; arautos da violência e das vãs aspirações.

Pois é, o contraponto ao vulgar é a bendita literatura; com enlevo ela se torna memorável. E a manifestação da arte é o retrato sublime das paixões humanas com os naturais dramas e tragédias. Então, ler com a alma é o jeito mágico de acordar a luz desenhada pelos escribas; uma bíblia fechada não acende a chama da fé.

Aberto, todo livro deve ser decodificado com a paciência do garimpeiro que procura um tesouro. Pense numa coleção da Enciclopédia Britânica aberta ao poeta argentino Jorge Luiz Borges; agora a imagine trancada num baú. O que seria dos autores dos clássicos da literatura mundial sem a leitura de outros mais antigos, desde Homero. Sei que há situações em que o leitor percebe que não existe nenhuma pérola no final.

Mas, definitivamente, esse não é o caso da poesia do americano Walt Whitman, um dos maiores poetas da língua inglesa.  Se algum dia eu souber que o cara a quem emprestei o livro leu os poemas de Whitman, voltarei a chamá-lo amigo; sem aspas. Aí, espero que ele me devolva o livro para eu possa emprestá-lo a outro.

Até lá mantenho minha opinião, pois, parafraseando Dorival Caymmi, quem não gosta de poesia bom sujeito não é.  Antes do ponto final dessa crônica recebo uma ligação. Fico na dúvida se atendo ou não. Então, amigo, qual é o problema? 

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás - setembro de 2013)

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. Escreve aos sábados do DMRevista.

Chapéu de aroeira

Preparo o café para servir aos fantasmas que passam comigo a madrugada no Sítio. Tempo embaçado nesses cafundós de Goiás. Acima da porteira do curral vejo o morro encurvado com a roça preparada para o plantio. O tempo no fim de agosto recria o habitual sofisma da seca.  Partilho com os fantasmas amigos as aflições da memória como se ela fosse uma casa grande com janelas, porta de entrada, de saída e a despensa. Nesses momentos, a memória pode encontrar bagunça nos quartos; cozinha desarrumada; armários revirados e a sala em festa para receber os visitantes. Pois é, mas também tem o porão; lugar de coisas velhas e ninhos de ratos. Meu chapéu de aroeira amanhece pendurado no prego enferrujado fincado na parede do alpendre.
      
A água do rego cai sobre o monjolo murmurando sem parar ao correr dos dias prolixos; das noites ascéticas e das manhãs incisivas. No poço raso, circulado com pedrinhas comuns, boiam centenas de girinos que, um dia, haverão de coaxar no lago. O vento com cheiro de capim meloso contorna a boca da cisterna em rodopios estranhos. Nessa hora, cinco da manhã, tudo está escuro.  O vento solitário não acha testemunha para vê-lo balançar as folhas das guarirobas ou emborcar os galhos das árvores. Janelas e portas cerram na cara do vento; o mendigo que dorme na calçada da cidade cobre a cabeça com seu tosco cobertor. Ninguém quer saber do vento frio da madrugada. E o vento rejeitado sopra em outro sentido, talvez à procura do fogo para, juntos, incendiar o cerrado. Mas essa chama daqui, que se acha engambelada pela madeira seca, prepara o nosso café.
          
A água ferve na caçarola; o bule repousa na chapa quente de ferro fundido.  Aprendi com minha avó que a medida para um litro de café é cinco colheres de sopa cheias de pó e outras seis com açúcar. Há uma multidão de criaturas invisíveis à minha volta nessa madrugada; talvez atraídas pelo cheiro forte do café coado.
        
Não estou só.  As aparições foram convocadas pelos meus pensamentos. Então, é hora de contar histórias. O vento amaina um pouco. Ouço pássaros se espreguiçando nos ninhos. Um leve soprar de vento passa e vai-se. Nem sei mais no que penso.

O café fica pronto. Sirvo-o aos amigos que acudiram as minhas aflições; sete anjos tocados pelo clamor da madrugada; também irradiados pelo alvorecer.


(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás - em agosto de 2013)
          
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.

As correntes de Hefesto

Hefesto nascera feio e coxo. Tão rejeitado e indefeso que Tétis decide criá-lo em uma gruta escondida no fundo do mar da Grécia. Lá aprende a construir finas peças de jóias em ouro puro: a coroa de Pandora; a taça de Baco; as correntes de Prometeu; a flecha de Apolo e a couraça de Hércules foram peças construídas pelo divo.

Esse menino rejeitado por Hera é conhecido na mitologia grega como o deus do fogo, do ouro e de todos os metais fundíveis; exímio artesão, também enfeita com sua arte os mais belos palácios da esplanada mitológica. Jogado ao mar pela mãe vaidosa, arquiteta sua vingança construindo um trono ornado com desenhos ricamente trabalhados em ouro. Vaidosa e frívola, Hera nem pensa para sentar-se no trono reluzente. Tenta se levantar e não consegue.  Para libertá-la Hefesto pede a Zeus que a divina Afrodite se case com ele. Depois do casamento sua esposa o trai com Ares, sanguinário deus da guerra. Com milhões de megatons na voz, Hélius, o amigo da carruagem de fogo, conta-lhe toda a trama.

Sentado em frente à sua bigorna Hefesto planeja se vingar dos adúlteros. Os dois, pensando que ele estava em Lemmo, voltam à cama. Mas, ficaram presos na armadilha feita com correntes mágicas. Avisado por Hélius o marido chama todos os deuses do Olimpo para ver a cena confrangedora dos amantes nus.  Zeus se indigna com a exposição pública de um caso pessoal.  Ordena que liberte Ares. Apolo, jocoso, se oferece para ficar preso com a bela Afrodite. Poseidon promete vultosa soma em dinheiro a Hefesto. Com tal promessa desfaz as correntes. O tempo passa com o deus do fogo ainda apaixonado pela bela Afrodite. Nasce Harmonia. O que mais o irrita é saber disso. Borbotam dos seus olhos lavas incandescentes nascidas dos vulcões do Olimpo.

 “Oh, Harmonia, filha bastarda de Ares e Afrodite, hei de me vingar tão terrível quanto à dor de ser traído”. Hefesto planeja sua vingança para quando a moça chegar à idade de se casar. Chega, enfim, o dia do casamento com Cadmo. O Olimpo se enfeita para a festa. Vestida num robe dourado, presente de Atena, ouve Apolo tanger sua lira num canto do palácio dos deuses.

Afrodite encomenda para a noiva um riquíssimo colar a Hefesto que promete beleza irresistível quando o vestir. Harmonia não sabe que o colar traz uma horrorosa maldição. Ao vesti-lo se transforma numa serpente. O colar é uma praga que traz infelicidade e morte a quem o usa. Até Jocasta, depois de usá-lo casa-se com o próprio filho e se mata ao saber disso.  E as mortes acontecem pela eternidade como é o sofrimento de Hefesto.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em agosto de 2013)
                
Doracino naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultura, na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.