quarta-feira, 25 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Dança da primavera

     Na semana passada eu parei a minha crônica no meio da história que me contava o amigo Walterson; no mesmo instante em que ele suspirou fundo como se buscasse força para contar o desfecho do seu caso. “Mais uma primavera cruza o meu rio”, pensei enquanto caminhávamos em volta do Parque Areião. Walterson olhou em volta e continuou.

      ... E a minha esperança de falar com a mulher da foto surgiu com o bilhete rabiscado num pedaço rasgado do saquinho de pipocas: “Domingo, seis da tarde, na Feira do Sol, ao lado dos quadros de pintura”. Fiquei aliviado mesmo não sabendo nada sobre ela, exceto o que me falara o coração. Mas coração apaixonado quase sempre se engana.

       Antes do horário marcado eu já estava lá vestido na melhor roupa.  Ela chegou caminhando lentamente; parecia flutuar sobre a calçada. Uma brisa suave evoluiu até o vento assoviar através das cordas de segurança das barracas dos feirantes. Trajava um vestido simples, de rendas brancas com uma fina corrente de ouro a sustentar uma pequena medalha de Nossa Senhora sobre o decote discreto. Calçava sandálias de cor rosa suave; saltos baixos moldurando pés delicados. Seu corpo exalava um perfume suave e agradável.

         Essa visão deixara para trás a esquina das lembranças trêmulas do meu passado; luzes delirantes de lamparinas antigas cambaleantes nas brumas da minha infância em Mossoró. Desde então atravesso morros e planícies do viver com o coração em brasas. Aquela mulher me fez tirar do milharal caído o espantalho inútil das más recordações. Naquele dia seu corpo bailou em minha direção como se encenasse a suave dança da primavera.

        Cumprimentei-a com reverência; convidando-a a caminhar pela praça tumultuada. Disse-me que não poderia demorar muito, pois tinha compromisso na igreja. Pedi-lhe mais informações sobre a sua vida. Disse-me que estudava no Instituto de Educação, que o seu sonho era ser  professora. Estava solteira e recebia uma pequena mesada para custear os seus estudos. Morava numa república de estudantes perto da Praça Universitária. Deu-me o endereço. Despediu e se afastou com os movimentos de uma bailarina celebrando a primavera no céu.

         Algumas vezes vi quando saia e entrava em sua casa.Havia uma aura de mistério em suas andanças. Em alguns momentos pensava que era casada, noutros que tinha medo dos homens; por estes motivos evitara novo compromisso. Pensei em desistir de tudo. Por fim tomei uma atitude extremada: escrevi propondo casamento; estava desesperado. A resposta veio num lacônico bilhete deixado na portaria aumentou o mistério.

         “Não posso me casar. Porém, não quero falar sobre isso”.

          Respondi-lhe com alguns desaforos, tipo “você é casada ou tem outro pretendente”; “Por que não me diz a verdade, assim deixo-a em paz”. A resposta não tardou “Não tenho ninguém, perdoe-me se faço você sofrer. Deixo-lhe uma foto”. No verso uma mensagem inesperada: “Com amor”.

               Depois dessa resposta fechei o coração para outro relacionamento; fui cuidar da minha vida como convém a um bom nordestino. A verdade é que amei muito essa mulher;  guardo na memória o seu perfume.

              Você não voltou ao lugar ao lugar onde ela morava?

          Pois é. Passado um tempo fui até lá, me aproximei do porteiro, mostrei a foto e perguntei se a conhecera. Olhou firme nos meus olhos. Ela morreu afogada no Lago das Rosas. O corpo dela só foi encontrado no dia seguinte. Seus pais vieram do interior para cuidar do sepultamento; estavam chocados com o acontecido. Você se lembra do Lago das Rosas? Lá morreram muitas pessoas até ser fechado para lazer. Tratava-se de uma boa moça, educada, que não se envolvia com nenhum rapaz. Entretanto, a minha impressão sobre ela é de uma moça misteriosa.

               Sempre concordei com o que me disse o porteiro. Por isso perguntei a você se, pela foto, ela merece respeito. O amigo emendou outra conversa; desejava encerrar o assunto. Sabiamente, parou na barraca do Zé do Coco.
               
              As conversas de nordestinos são longas, como longos e tortuosos são os caminhos da recordação.  
Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em setembro de 2013.
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (WWW.programaraizestv. net). Escreve aos sábados no DMRevista.

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