domingo, 8 de setembro de 2013 | By: Doracino Naves

Chapéu de aroeira

Preparo o café para servir aos fantasmas que passam comigo a madrugada no Sítio. Tempo embaçado nesses cafundós de Goiás. Acima da porteira do curral vejo o morro encurvado com a roça preparada para o plantio. O tempo no fim de agosto recria o habitual sofisma da seca.  Partilho com os fantasmas amigos as aflições da memória como se ela fosse uma casa grande com janelas, porta de entrada, de saída e a despensa. Nesses momentos, a memória pode encontrar bagunça nos quartos; cozinha desarrumada; armários revirados e a sala em festa para receber os visitantes. Pois é, mas também tem o porão; lugar de coisas velhas e ninhos de ratos. Meu chapéu de aroeira amanhece pendurado no prego enferrujado fincado na parede do alpendre.
      
A água do rego cai sobre o monjolo murmurando sem parar ao correr dos dias prolixos; das noites ascéticas e das manhãs incisivas. No poço raso, circulado com pedrinhas comuns, boiam centenas de girinos que, um dia, haverão de coaxar no lago. O vento com cheiro de capim meloso contorna a boca da cisterna em rodopios estranhos. Nessa hora, cinco da manhã, tudo está escuro.  O vento solitário não acha testemunha para vê-lo balançar as folhas das guarirobas ou emborcar os galhos das árvores. Janelas e portas cerram na cara do vento; o mendigo que dorme na calçada da cidade cobre a cabeça com seu tosco cobertor. Ninguém quer saber do vento frio da madrugada. E o vento rejeitado sopra em outro sentido, talvez à procura do fogo para, juntos, incendiar o cerrado. Mas essa chama daqui, que se acha engambelada pela madeira seca, prepara o nosso café.
          
A água ferve na caçarola; o bule repousa na chapa quente de ferro fundido.  Aprendi com minha avó que a medida para um litro de café é cinco colheres de sopa cheias de pó e outras seis com açúcar. Há uma multidão de criaturas invisíveis à minha volta nessa madrugada; talvez atraídas pelo cheiro forte do café coado.
        
Não estou só.  As aparições foram convocadas pelos meus pensamentos. Então, é hora de contar histórias. O vento amaina um pouco. Ouço pássaros se espreguiçando nos ninhos. Um leve soprar de vento passa e vai-se. Nem sei mais no que penso.

O café fica pronto. Sirvo-o aos amigos que acudiram as minhas aflições; sete anjos tocados pelo clamor da madrugada; também irradiados pelo alvorecer.


(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás - em agosto de 2013)
          
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV. Escreve aos sábados no DMRevista.

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