domingo, 16 de outubro de 2011 | By: Doracino Naves

Vida de Loucos

Sou um bardo que conta as histórias de Goiânia ouvindo o murmúrio de uma metrópole de alma caipira e pura. Ando pela cidade em busca de histórias, depois quero voltar para casa; o meu coração é pesado de sombras. Passei pelo Hospital Materno-Infantil, no Setor Coimbra, perto da Avenida Anhanguera observando o movimento das pessoas. Sentada num banco de cimento estava uma mocinha. Dei-lhe uns 14 anos de idade. As mãos em concha apoiavam o queixo ao estilo pensador; os cotovelos pesavam nas pernas finas em forma de esquadro. Parecia preocupada. O olhar fixava um ponto qualquer do infinito. Seus olhos, talvez castanhos, choravam sob a chuva fina desse começo de outubro. O céu também chorava com a mocinha. Distraída em suas lembranças deixava que os pingos de chuva e as lágrimas escorressem sobre o vestido de chita desbotada. A água ia pela calçada e parava na grama rala que ainda tinha a cor do cerrado seco no final de setembro. Uma nuvem de água evaporava do asfalto ainda quente do sol do meio-dia. Havia uma silenciosa cumplicidadeda natureza com a mocinha triste do Hospital Materno-Infantil de Goiânia.

Os pensamentos da moça talvez estivessem num quarto daquele hospital. Um homem de meia idade que parecia ser o seu pai chegou com um guarda-chuva tosco, protegendo-a. Conversaram rapidamente e entraram no hospital. Segui em frente com os passos de quem caminha rumo ao desconhecido. Falo sobre Goiânia sem pretender conquistá-la nem me igualar aos bons cronistas e poetas daqui. Imagino ser uma espécie esburgada de Odisseu viajando entre dois paredões do tempo: a Goiânia de ontem, bela e acolhedora e a de hoje, imprevisível com seus tentáculos a inflar as nossas vaidades.

Na calçada quase esquina da Avenida Anhanguera um louco inofensivo anda de um lado ao outro sem se importar com nada a sua volta. Um vai-e-vem agitado e inócuo. É instigante a vida de um louco. Primeiro pela falta das vaidades mundanas. Depois porque são criaturas desmemoriadas. Os loucos vivem um eterno presente, sem pensar no que passou e sem cogitar o futuro.

O poema Odisseia, de Homero, conta que após a conquista de Troia, os guerreiros helenos se perderam e foram parar na Ilhados Lotófagos, em alusão ao fruto mágico - lótus - que apagava todas as lembranças. Nenhum deles queria voltar para casa. O desejo de todos era viver para sempre nas delícias do esquecimento. É uma metáfora da vida que Deus pôs no homem: a maravilhosa amnésia das vidas passadas e o pleno desconhecimento do futuro. Sem reconhecer seus desvios, o ser humano, igual aos guerreiros helenos, se apega na superficialidade do mundo material, precisando de inteligência superior para atravessar as tentações e vencer as vaidades da vida terrena.

Mesmo sem saber onde fica a minha casa quero voltar para ouvir o balir dos anjos, ovelhas do paraíso. Estarei em minha casa quando Deus terminar a crônica da minha vida.

Um é pouco, dois é bom, três é demais.

Noutro dia estava a pensar na importância da matemática para o homem. Ainda nem completamos mil anos da invenção do sistema numérico e já lidamos com a ciência quântica. Aprendemos a contar de 1 a 10 graças a Leonardo de Pisa - Fibonacci - argelino que viveu no século 12. Ele publicou o primeiro best-seller da história: Liber Abbaci, feito à mão e que, na Europa, vendeu igual água no deserto. Por meio do Livro do Cálculo, o mundo aprendeu a somar, diminuir, multiplicar e dividir.

Houve um tempo na terra tempo em que o homem só lidava com quantidades bem próximas do seu dia-a-dia. Por isso que 1 e 2 são os primeiros números, os mais antigos. Naqueles tempos o 3 representava uma quantidade enorme.  Na pobreza mental, o homem das cavernas raciocinava simplesmente: caçar um animal era mais fácil do que três. E voltava ao ócio do paraíso. Era assim: um é pouco, dois é bom, três é demais. Além disso, era como calcular a distância da terra às estrelas: inimaginável. Só os poetas, mesmo avessos à matemática, eram capazes de imaginar milhões de estrelas no céu.

Por falar em poetas me lembro de que o soneto, criado no século 13, que usa a matemática como fundamento para a composição de seus versos, é composto de quatro estrofes: as duas primeiras têm quatro versos; as outras duas são compostas por três. Por aí começam as fórmulas matemáticas da composição de um soneto, suficientes para amalucar qualquer iniciante em matemática. Júlio Verne usou essa ciência para escrever seus livros sobre ficção científica e, muitos, foram parar na Nasa, que montou  complicadas equações para levar o homem à lua. Bill Gattes, da Microsoft, e Steve Jobs, da Apple, utilizaram cálculos matemáticos em seus inventos.

Então, as grandes invenções, inclusive as construções das grandes catedrais na idade média, foram calculadas cuidadosamente usando arranjos matemáticos.  Percebo que, por mais que homem ouse em suas invenções, elas são ínfimas diante da abissal perfeição e  harmonia do universo. As invenções tecnológicas, por exemplo, não resolvem a solidão do homem que, a cada dia, se afasta do próximo. Em nossa pequenez humana só contamos até o número 1: Eu. O 2 - eu e o outro - é um arranjo mais complicado. Alguns usam os sofisticados meios de comunicação pensando que eles podem substituir o imprescindível amor entre as pessoas. Nas grandes cidades, por exemplo, a maioria nem se visita. As notícias pessoais são dados por meio do celular. Todas as invenções humanas carecem de serem melhoradas para atender às novas funções da modernidade.  A roda, considerada a maior das invenções, sofre a influência de novos cálculos para eliminar os atritos comuns da sua função de rodar.

Só a matemática de Deus, o criador dos mundos, é perfeita. O universo é belo e glorioso. E mais: toda a invenção da ciência e a evolução tecnológica, inclusive a criação artística e literária, é obra Dele. Deus cria todas as coisas e o homem se esforça para por no mundo o que ele - o homem - pensa que é a sua criação. Na memória dos céus, Ele guarda as fotos tridimensionais de nossos talentos e do futuro do homem na terra. 

Vejo o meu retrato: um menino pobre de Porto Barreiros que chegou a Goiânia num caminhão de mudanças. Penso que evoluí muito.

Hoje, viajo pelas ruas e becos de Goiânia num carro sem carburador. A injeção eletrônica dos carros conta as sujeiras do combustível.

Mas, a minha alma, filtrada pelas emoções, continua presa aos grilhões de um ser humano imperfeito. O meu espírito, no entanto, é perfeito; foi criado por Deus. Meus passos caminham rumo ao desconhecido.

Água na Ladeira

Se eu não fosse jornalista seria músico. Sou um tocador de cavaquinho frustrado que não aprendeu extrair dele uma nota sequer. Aliás, essa é a única frustração da minha infância que foi, como disse Millôr Fernandes "Dura! Dura! Linda! Linda!". O caso do cavaquinho foi assim: Meu pai, Zequinha Naves, antes de ser Coletor Estadual foi, junto com meu tio Dedé - Ezequiel Naves de Almeida - dono de cartório em Palmelo. Mas, era um cartório de uma cidade pobre do interior, pelos idos de 1955. Portanto, cartório dava pouco dinheiro e havia pouca grana para manter os filhos.Para melhorar a sua renda se preparou até ser Coletor Estadual. Tirou do seu primeiro salário uns trocados para comprar um cavaquinho. Este foi o primeiro presente que ganhei do meu pai. Pelo menos, da parte que me lembro, o presente ficou marcado pela minha falta de jeito com a música. Nunca aprendi a tocar nada em nenhum instrumento. Sou analfabeto musical; não tenho talento assim.

Palmelo naqueles tempos era praticamente rural. Acho que até hoje ainda é assim. Aprendi a nadar no Córrego Caiapó, cheio de cintilantes peixinhos miúdos no córrego raso com pequenas pedras coloridas no leito de águas claras da primavera. Atirei pedras com estilingue nas mangueiras do vizinho. Joguei futebol num campo de terra batida onde ralava meus joelhos no chão duro. Amei, no fundo do quintal, as meninas vestidas com panos de  chita. Essa fase de moleza durou até aos dez anos. Aí, num dia qualquer de 1959, a família se mudou, de mala e cuia, para Goiânia. Tempos depois, após 25 anos num escritório de contabilidade, entrei na Universidade Católica para cursar jornalismo. Isso foi em 2004. Por essa causa digo que sou um jornalista tardio. Mas, sou um animado aprendiz de jornalismo. Tento me renovar sempre no gosto pelas formas e ter nova visão dos fatos novos

O jornalismo opinativo tem o seu valor pela experiência de quem escreve. Mas, nada melhor do que uma boa reportagem. Daquelas em que o repórter sofre para apurar os fatos e, depois, satisfeito com a reportagem, dá a notícia como se houvera fisgado um peixe grande. A realização do jornalista pode vir num texto romanceado, na voz alegre de quem anuncia o fim de uma Guerra Mundial ou na expressão serena de um repórter diante das câmeras anunciando o fim de um sequestro. Acho que essa minha paixão pelo jornalismo vem da época do Repórter Esso. Pôxa, ao me lembrar dessas coisas antigas me vem a sensação de que já descambo pelo outro lado do morro.                           

E a alma da gente vai ficando por aí, perdida nas metades do outro. A gente deve ser assim, rasa e intensa como o leito de um riacho descendo a ladeira. Pois é. turvar a água do córrego não significa que elas fiquem profundas.

Alma Agradecida

Recebi com alegria o artigo de José Elias, publicado no DM de quarta-feira passada, sobre a Fonte TV e o programa Raízes Jornalismo Cultural. Agradeço-o pelas palavras amáveis. Amanhã, domingo, às 11 horas, vai ao ar o programa número 227 da série que começou em 2007. Mais de 99% dos programas são de personalidades da cultura goiana que foram entrevistadas formando uma valiosa coleção de depoimentos. Sublimados pela emoção do artista ou do escritor entrevistados. Claro, a gente também se emociona junto com o nosso convidado.

Alguns dos entrevistados chegaram às lágrimas ao relembrar alguns momentos da sua carreira. Uma marca comum em cada um destes ícones da cultura é saber contar histórias. É bom ouvir uma boa história. A arte é uma narração feita com um jeito pessoal. Seja na literatura, no jornalismo, nas artes cênicas, no cinema, na cultura popular, na música, nas artes plásticas ou na lente de um fotógrafo atento. A alma fala e se expressa melhor por meio das emoções artísticas.

Pois é. Com a alma agradecida chegamos a mais de quatro anos de programa, sempre na Fonte TV. Pensar, sonhar, escrever, falar e saber que o gênero de entrevistas é, antes de tudo, como diz Teresa Montero “uma disputa amigável feita de muitas arremetidas e outros tantos recuos” para não pressionar o entrevistado.

As conversas no programa Raízes Jornalismo Cultural aconteceram num clima alegre e de magia; com a sorte de ter o poeta Chico Perna nos primeiros programas e o Edival Lourenço, um intelectual simples e correto, como companheiros de bancada. Dois bons poetas que sabem lidar com a palavra escrita e revelam seus talentos também nas entrevistas.  Aprendi mais uma lição com o poeta Carlos Drummond de Andrade: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave?”.

Então, cada entrevista com um artista ou intelectual é uma peça artística que fala. Descobri com Clarice Lipector, escritora e entrevistadora, que a arte é uma busca. Mas apoderar-se da chave não é simples. Cada tem o seu próprio código de vida, afinal, artista ou não, somos indivíduos. Alguns nem precisam de uma chave; a porta está destrancada.

Lembro aqui de uma entrevista com o cineasta Cláudio Assis, diretor do filme Amarelo Manga. Assis é um pernambucano grandalhão com fama de falar palavrões em público quando se irrita. Algumas entrevistas dele nem chegaram ao fim por causa da sua boca suja. O programa seria gravado no antigo estúdio da Fonte TV, que, no começo, funcionou no subsolo da Igreja Fonte da Vida, no Setor Marista. Nesse dia cheguei mais cedo do que o costume.

De repente alguém da produção me avisa:

-Doracino, seu convidado chegou.

Recebi Cláudio Assis apreensivo com o rumo da entrevista. Aí me ele perguntou:

- Onde é o banheiro?

Meio encabulado expliquei a ele como chegar lá. O banheiro ficava um andar acima, do outro lado do prédio. Com um detalhe: ele teria que atravessar a Igreja na hora do culto. Pensei resignado: “Seja o que Deus quiser”. Depois de algum tempo ele chegou calmo e tranquilo. Olhou-me de frente:

- Não me disseram que para ser entrevistado teria que me converter.

Não sei se isso aconteceu. Mas o programa foi ao ar sem nenhuma declaração polêmica do diretor. Ao contrário, é um dos melhores programas do nosso acervo.
sábado, 8 de outubro de 2011 | By: Doracino Naves

Cordas do coração

O artista já nasce artista. É uma afirmação, mas bem que poderia ser uma interrogação. O talento é espontâneo ou podemos despertá-lo do seu sono letárgico ao longo da existência? A dúvida vem da percepção de que, mesmo com muito esforço, raros se destacam no fazer artístico.

Nessa viagem pelos labirintos da criação artística e literária é absolutamente impossível racionalizar a abissal diferença entre a obra de Machado de Assis e a da maioria dos escritores brasileiros; Mozart e a sua genial ópera A Flauta Mágica; Shakespeare e sua obra eterna. A impressão é que Deus põe a mão na cabeça do escolhido e o autoriza a viajar pelo universo da criação artística.

Eterna é a pintura de Leonardo da Vinci; arrebatadora a escultura de Michelangelo. Há centena de outros grandes artistas que se fazem portadores da cultura do seu povo.  O Livro dos Salmos, onde a metade é atribuída a Davi, revela o primor da poesia hebraica sem rima; mas pela repetição paralela clareia o pensamento do autor. O Livro de Ezequiel, autor que é considerado por alguns críticos como esquizofrênico, é um clássico, com figuras alegóricas impressionantes.
Será que o conhecimento intelectual é suficiente para atingir as cordas mais profundas do coração? Aí a gente já pode começar ver o caminho que separa a arte do conhecimento intelectual. Um artigo científico não impacta a alma da mesma forma que uma crônica de Rubem Braga. Leda Selma, doce cronista do DM, faz a gente parecer maior e mais importante do que somos. Há nestes exemplos uma sutil diferença entre a inspiração e a transpiração.

Num sentido mais literal podemos ver o efeito da arte sobre as emoções até no futebol. A correria dos jogadores em mais de 90 minutos do último jogo Santos e Flamengo foi apagada por lances de pura arte dos artistas Ronaldinho Gaúcho e Neymar. Este toque mágico da inspiração faz a diferença entre a arte e o suor. Então, arte é só a que toca as nossas emoções? Nem sempre. Nossas emoções são tão volúveis!

Mas elas descobrem canais que ligam o nosso espírito ao alto. Isso também depende dos nossos valores estéticos. Seja qual for o processo da criação artística, uma certeza: os artistas são seres especiais enviados para iluminar a existência terrena. Lembro-me do palhaço Carequinha quando esteve em Goiânia, no começo dos anos 60, numa única apresentação no antigo Cine-Teatro Goiânia. Eu era engraxate na Avenida Goiás, mas conhecia suas músicas e os seus filmes.

Nesta época Carequinha era o palhaço mais famoso do Brasil, animando programas na TV, no Rádio e em filmes que rodavam o Brasil. Um palhaço muito bacana. Uma de suas músicas diz assim: “O bom menino não faz pipi na cama/O bom menino respeita os mais velhos...” E por aí vai. Fui ao Teatro Goiânia pensando só em vê-lo chegar pela entrada lateral. Nem pensei em assistir o seu show.

Ele chegou com a sua turma pouco antes da apresentação; inclusive o palhaço Meio-Quilo um anão que participava das suas palhaçadas. O teatro estava lotado de crianças e os seus pais.  Como não podia pagar a entrada fiquei por ali, junto com os outros engraxates, na porta do Teatro pensando num jeito de entrar. Porém, antes de começar o show, Carequinha autorizou a nossa entrada sem pagar o ingresso. Nem acreditei que veria, ao vivo, o palhaço Carequinha.

Foi a primeira vez que entrei no Cine-Teatro Goiânia. Vi o show, com mais de outros dez engraxates, sentados na caixa de engraxar e num lugar privilegiado: na primeira fila entre o palco e as primeiras cadeiras. Carequinha já foi embora deste mundo, mas continua palhaço no imaginário de milhões de brasileiros.