domingo, 6 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Tempo de Jogar Finca

Hoje é dia de jogar finca. Essa imagem me veio num lampejo da memória dos tempos de criança. A lembrança do jogo de finca chegou no lombo do clarão depois da  chuva, numa tarde no Parque Areião; terra molhada, nuvens ralas, céu claro sem sol.

Fulgente na memória, dois triângulos desenhados na terra firme do largo da Escola Municipal de Palmelo. As figuras geométricas aparecem distantes cerca de  três metros uma da outra.  A finca é um objeto de ponta afiada; pode ser uma lima de amolar enxada, uma faca, um prego grande, um estilete, ou uma chave de fenda surrupiados de casa.

Pode também ser um pedaço de madeira pontuda, que  era mais fácil de ser encontrada. Finca é jogo de pontarias, facas atiradas na terra.

O chão dever ser macio para ser riscado e deixar marcas. Os jogadores, dois, ficam eretos com a finca entre o dedo indicador e o polegar. Não é permitido curvar o corpo para se aproximar do alvo. O objetivo do jogo,  em traços sucessivos, é dar a volta no triângulo do outro e voltar ao seu triângulo. Vence quem chega primeiro. Para começar faz-se um risco  na terra.  Quem acerta o fio do traço inicia a partida.
Perde a vez de jogar quando a finca cai ou acerta o risco do companheiro. Não pode cruzar a linha do outro, mas pode cravar a finca inclinada num lado do risco contrário sem levantar o torrão, numa espécie de túnel subtraço. Do outro lado do túnel recomeça o jogo. 

Existe uma carga simbólica nas brincadeiras de crianças. São ciganos caçando aventuras, compartilhando descobertas. Nas brincadeiras se expressam a função poética que extrapola a função prática de buscar tesouros.  O jogo de finca é lúdico e temporal; só é possível em época de chuvas. Hoje, com a perturbação das águas e a diminuição dos espaços de terra pisada a brincadeira desapareceu do imaginário infantil.
Em Palmelo disputei meu último campeonato de finca. A partida final foi entre a Rua do Sapo e a Rua da Coruja, onde eu morava. O amigo Agostinho, ás no jogo de finca, estava do outro lado. Jogava com estilo e precisão no arremesso do estilete.   

Foi demarcada a área exclusiva dos jogadores por um círculo sulcado na terra batida do largo. Do lado de fora ficou a torcida. Combinamos que o risco deveria ter até 20 centímetros de comprimento. A torcida, inquieta, punha o pé na marca do círculo à espera do início do jogo.

Domingão, negro forte que trabalhava na cerâmica do Dedé, fez-se líder da torcida do Agostinho.  Agostinho, canhoto, acertou o risco bem no meio.  Eu joguei minha finca perto da linha. Perdi a jogada inicial. Domingão comemorou como se fosse um gol do seu Vasco da Gama.

Pensei:

“Estou frito, o Agostinho jamais erra o alvo. Sua mão, obediente aos olhos, seria capaz de fincar em cima de um ponto de agulha”.

Fiquei, perto do meu triângulo, segurando a finca de lima; ponta fina e metal pesado. A plateia aumentava rápido; os retardatários espichavam o pescoço por cima do ombro dos primeiros da fila. Sinval, o baixinho, subiu numa cadeira. O jogo de finca seguia com o Agostinho acertando todas,  desenhando riscos pequenos, de, no máximo, dez centímetros. Esnobava categoria no jogo. Domingão sorria mostrando o seu dente de ouro cravado no meio da boca.

O sol beliscou seu dente com brilho rápido. O que eu não esperava aconteceu: Agostinho errou o arremesso quando já estava perto da minha casinha de triângulo.

Comecei a jogar. Com a destra cravei minha finca no solo macio e firme. Avancei sobre a outra casa cruzando à frente dos traços contrários.  Para dificultar sua progressão fechei o seu caminho com desenho de obstáculos. Voltava pra minha casa em jogadas calculadas.   Nisso Isabel passou serelepe em frente à venda do Massaqui. Meus olhos se voltaram para a curvas da rua.

Errei a jogada. A finca bateu de barriga no chão. Agostinho retomou o jogo. Domingão riu sob o seu dente de ouro. Os gritos do torcedor eufórico incomodaram o jogador que pediu silêncio.  Do meu lado, percebi que Agostinho estava impaciente.

Armou a finca para reiniciar o jogo. Nisso Domingão pôs o pé dentro do círculo. Agostinho errou a pontaria. A finca  furou o pé do Domingão. Dessa vez ele urrou, mas foi de dor.  Numa perna só, tal qual Saci saltou rumo à farmácia do Sátiro, com o ferrão cravado no peito do pezão. Acabou o jogo. A roda se desfez.

O clarão do final de tarde no Parque Areião fecha as cortinas das minhas lembranças. Meus olhos se voltaram para a pista de concreto com folhas molhadas. O céu tem nuvens finas com canteiros de alfenim numa curva.

Doracino Naves - Jornalista, cronista do Diário da Manhã - Goiânia, diretor e apresentador do Programa Raízes - Jornalismo Cultural na Fonte TV - Canal 05

1 comentários:

Nicanor Freitas disse...

Caro Doracino, revivi meus momentos de 65 anos atrás. Eu era bom na finca. Tinha um Padrinho que fazia todas as peças de brincar para mim, na oficina mecânico-elétrica dele. Minhas fincas eram feitas no esmeril, com estiletes de ferro de construção, de 1/8" e media sempre 20 cm. que era exatamente para medir a distância de cada fincada. Viajei no tempo, com sua crônica. Parabéns! Estou lendo as outras com calma...

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