segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Apito dos boiotas

Araguari, minha terra cravada no triângulo das Minas Gerais. Nasci numa casa de pau-a-pique no Porto dos Barreiros, uma vila de pescadores às margens do Rio Paranaíba. Augusta de Faro Fleury Curado, em seu livro Do Rio de Janeiro a Goiás assim descreve Porto dos Barreiros em 1889: "árvores de uma altura descomunal, à beira dos riachos, mil florinhas de cores vivas, o leito dos córregos cheios de pedrinhas alvas e tantas borboletas de lindas cores a esvoaçarem como ramalhetes alados". Pois é, do lado de Minas a gente via na outra margem do rio - lembrando Guimarães Rosa - o sertão, ou, mais fácil para nós, o cerrado goiano.

Minha família veio para Goiás em 1954. Eu tinha cinco anos de idade. A viagem de trem durou cerca de oito horas aos solavancos e ranger de trilhos. Descemos na estação de Pires do Rio e rumamos pra Palmelo na jardineira do seu Joviano Damásio. As duas cidades são vizinhas, pouco mais de uma légua de distância. Sou, desde então, goiano do pé rachado, mas, com espírito mineiro e esse jeitão da roça que me acompanha até hoje.

Seu Joviano era dono da única linha de ônibus Palmelo-Pires do Rio; também era o motorista e o cobrador. Quer dizer, a empresa de ônibus era só ele e a velha jardineira. Todos os dias ele fazia essa viagem. Saía cedo e voltava à noitinha, depois do último trem, inclusive aos domingos. Em Palmelo fiquei amigo do filho dele, Nelson, e, juntos, a gente pegava carona para passear em Pires do Rio. Enquanto a jardineira esperava íamos ao cinema. No Cine Eleusis foi onde vi meus primeiros filmes e conheci um pouco da cultura de outros países, para nós, da roça, só possível nos bons filmes.

Meu mundo de fantasia foi habitado por gente do cinema como John Wayne, Errol Flyn, Burt Lancaster, Charlston Heston, Yul Brynner, Alan Ladd e, principalmente, as festejadas estrelas do cinema:  Marilyn Monroe, Sofia Loren, Gina Lollobrígida, Ava Gardner e Elizabeth Taylor.

Os efeitos visuais, raros no início do cinema, já impressionavam pela realidade de algumas cenas. Num desses filmes americanos apareceu na tela um trem cuspindo fumaça pelas ventas. Começo pequeno e foi crescendo na tela. A câmera colocada debaixo do trem mostrava-o inteiro vindo na direção do público. Para mim parecia um rinoceronte furioso dos filmes de Tarzan. Aquilo me deixou assustado. Eu e o poeta Eurípedes Leôncio, hoje morando em Brasília, estávamos na primeira fila do cinema. Eu, apavorado com a aproximação do trem, falei baixo com ele:

-Esse trem vai passar em cima da gente. 

Olhei paro o Leôncio, na cadeira do lado. Seus olhos, vidrados na tela, pareciam bem maiores do que são. Quando o trem chegou perto mergulhamos imediatamente pra baixo das cadeiras.

O trem apressado passou com o som do apito nas alturas. E os dois boiotas escondidos debaixo das cadeiras. A câmera, parada, acompanhou a passagem do trem até ele sumir na tela. Ficamos ali, quietos, com cara de tacho. Eu, ingenuamente, perguntei:

- É só um filme, né?

- É...

Disse o Leôncio, refeito do susto.

Levantamos depressa e, desconfiados, nos sentamos novamente com receio da gozação. Saímos de fininho antes de terminar o filme. Alguém, esparramado na sua cadeira riu com sarcasmo  da nossa caipirice. Envergonhados, voltamos correndo para a jardineira e  ali ficamos até a volta pra Palmelo. Observei os passageiros do trem que vinha de Araguari entrando no ônibus. Voltou o filme do tempo. Aquela casinha de pau-a-pique de Porto dos Barreiros ficou perdida nos longos caminhos da lembrança.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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