segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Areia Nos Olhos de Vidro

Encontrei Edgar numa praia movimentada do Rio de Janeiro. A gente se conheceu em Palmelo. Quando viemos para a Goiânia, burilamos a amizade. Fomos vendedores na loja de tecidos 3-B. Depois ele sumiu misteriosamente. Seu primo Aquiles disse que fora assaltado e atirado fora do trem-de-ferro, em Silvânia. Seu corpo jamais foi encontrado. Outros, que fugira com o dinheiro de uma firma de Uberlândia em que começara a trabalhar. Nunca acreditei nesta história. Sua família, simples, é honesta.

              Anos se passaram até esse reencontro no Rio de Janeiro, onde eu estava para ver a Bienal do Livro. Vi um homem de aparência conhecida parado numa barraca que vendia água de côco; bermudão, camiseta do Flamengo. Lá estava Edgar. Mais de mil e trezentos quilômetros; uma multidão superior a seis milhões de pessoas e quase meio século nos separavam. Eu nem viajo muito ao Rio. Nada disso impediu que o destino armasse a sua rede. Fomos pegos por essas surpresas do acaso. A alegria rolou solta. Entre perguntas e respostas sobre as coisas da vida procuramos no outro os sinais jogados na loteria do tempo. O olhar cruel vê cabelos brancos, rugas e a barriga saliente; sinais e dobras feitos pelos anos que passam inexoráveis.

           Edgar, hoje, é um carioca da gema; eu, cronista do cotidiano, levo na cacunda as marcas da goianidade do pé rachado. Faço brincadeiras do jeito goiano e ele solta uma gargalhada de sotaque chiado. Caçoamos um com o outro. Falamos dos  filmes antigos no Cine Goiás e Santa Maria. Das matinês aos domingos, das músicas tocadas numa velha vitrola de 78 rotações na casa do Aparecido, na Vila Nova. E, por que não? das namoradinhas daquela época. Essa lembrança me leva a pensar sobre a linguagem que o homem usa em diferentes circunstâncias. Rever Edgar poderia ficar somente na memória. Mas, por certo, seria esquecido. Por isso o registro nessa crônica. Então, a escrita é a cristalização da linguagem.  

            Ilíada revela o canto de um mundo arcaico preservado pela narrativa de Homero durante a Guerra de Troia. Sem a escrita, a linguagem desse poema épico teria se perdido.

           Este breve hiato talvez sirva para refletir sobre o modo repentino como nos separamos dos amigos. Nesse tempo um fica louco, outro adoece; um fica rico, o outro se perde nas lutas entre o amor e as paixões. Ainda tem aqueles amigos que a gente só encontra nos velórios. Outros somem dos nossos olhos. Nascem os filhos, os netos; a velhice chega sem a desejarmos.
         Despedi-me emocionado do amigo Edgar; talvez para sempre. Penso nos livros da Bienal do Rio de Janeiro. Atravessei as brumas do passado. O sal e a areia jogados no ar embaçam meus óculos.
       Com a camiseta limpo as lentes dos meus olhos de vidro; sai a poeira da alma.

        Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raizesjornalismocultural.net, PUC TV, sábado, 12h30. Escreve aos sábados no DMRevista.                          

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