domingo, 6 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Cadeira de Balanço na Torrente das Águas

As ruas da Vila Nova formavam torrentes de água enlameadas de chuva. Em 1962, tempos do Rei Pelé, nem a 5ª Avenida tinha asfalto. E olha que era a única linha de ônibus; jardineiras pequenas. As pessoas mais altas abaixavam a cabeça para passar pela porta. Ainda bem que naquela época a altura dos brasileiros era menor do que hoje em dia.
             
Plantada no centro da Vila Nova tinha uma praça redonda, bordejada por estreitas filas com flores e plantas ornamentais. Nas laterais, pequenas quaresmeiras faziam sombras nas manhãs de sol. Ao redor da praça, hoje chamada Tamanduá, uma série de casas simples pintadas com diversas cores; a azul celeste dominava.
             
Na esquina da Rua 214, o armazém do Seu Severino se distinguia do resto das casas simples do bairro. O prédio tinha marquise larga com a frente desenhada em cimento fino. Seu Severino era um nordestino calado e trabalhador.
              
Pois bem, no início de abril, pela manhã, uma chuva de granizo cobriu com um branco lençol o calçamento da praça. Eram seis horas da manhã, quando ia para o meu primeiro emprego no galope de uma bicicleta Phllips. Escondi-me debaixo da marquise. Esperei passar o temporal. Aos doze anos já trabalhava no Moninho Goiás, empacotando farinha de trigo.
             
As flores vermelhas, agitadas pelo vento gelado, batiam uma na outra, perturbavam o silêncio das ruas da Vila Nova na hora em que os galos, roucos, cantavam na chuva. Uma luz fraca, vinda do interior da venda, escapava por uma fresta da porta.
             
Pensava longe enquanto estava debaixo da marquise. Veio-me a figura inquieta do Botinha, meu chefe da sessão de empacotamento de farinha. Deveria estar nervoso pelo meu atraso. Resolvi enfrentar a revoada de pingos da chuva. Com as duas mãos no guidão, empurrei a bicicleta, pulei no selim com se fosse um cavalo, os pneus gemiam sobre as pedrinhas. Pedalei firme pelas ruas esburacadas da Vila Nova.
              
Meu salário, semanal, recebia em dinheiro. Sem desconto porque eu não tinha carteira assinada. Dava bem para o sorvete, o cinema e, na feira de domingo, a raspadinha; barra de gelo raspada com uma espécie de enxó, misturada com essência de groselha, abacaxi ou limão.
              
Trabalhava pensando no vai-vem da Pracinha, aos sábados e domingos. Era o dia de encontrar a filha do Seu Severino circulando a Praça com seu vestido rodado, de rendas. Quem sabe ela olhasse pra mim. Sonhando com isso fazia melhor o meu trabalho. Mas deu em nada esse amor platônico.
              
Hoje, em tempos de Neymar, a chuva, cansada de empurrar o lixo plástico pra dentro das bocas-de-lobo, desliza na terra careca, sem vegetação; desabriga e mata milhares de pessoas. O sonho de toda chuva é ir devagar, sem pressa, entre a grama enraizada na terra; depois cair, mansamente, no rio doce.
              
Deus põe sal na minha moleira para me dar mais juízo. Um chapéu na cabeça me convém para me guardar do sereno. Ou, talvez, uma cadeira de balanço para sossegar os meus pensamentos que se afogam nas torrentes de águas.
           
Ando devagar. Penso em caminhar por outros cantos das cidades.
                
Doracino Naves. Jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (http://www.raizestv.net/)

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