quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Canário vesgo

     Na minha frente tem um quadro com mãos agigantadas; uma luz  fantástica e sutil iluminam as mãos suspensas com fios de prata presas no céu.

        Oh,benditas mãos! Mãos da da parteira que me tiraram do ventre da minha mãe. Mãos que hão de jogar a última porção de terra sobre o meu corpo. As de Cristo me abençoam  purificando as intenções da minha alma.

       Interessante como alguns  pintores retratam a  harmonia entre o rosto e as mãos de Jesus. Os gestos das mãos ficam sincronizados com a expressão do rosto.

       Gumercindo Tavares, personagem do monólogo de Pedro Bloch, fala das Mãos de Eurídice: Mãos brancas, mãos doces, mãos delicadas, mão pedindo preces, mão pedindo harpas. As mãos de Eurídice riam, às vezes ficavam furiosas. Choravam. Juntavam-se em súplica. Projetavam-se em desespero. Pediam asas, ternura e amor.

       Assim são as mãos no meu imaginário: pura expressão de sentimentos. Muitas vezes, porém, desconectadas do verbo, da expressão do rosto; uma desarmonia inominável.  Podemos perceber que as mãos postas no colo da Monalisa são tão serenas e enigmáticas como o rosto de La Gioconda. Lembro-me, ao dedilhar essa crônica, de um retrato da minha avó esquecido na parede da sala de visitas da casa dos meus pais. Suas mãos enrugadas; parecem trêmulas. Mas eram macias ao acariciar o meu rosto; emocionadas, mexiam meus cabelos com a ternura de um anjo. Aconselhava com carinho.

        Falava que eu deveria ser forte para suportar a vida. Ser forte como a mangueira do quintal. O córrego Botafogo, em Goiânia, criou debaixo de si, um leito de concreto para amaciar os coices do percurso. Não sei se cumpro o desejo da minha avó; às vezes fraquejo no viver. Entretanto, os gestos das suas mãos ainda me mostram os caminhos aonde devo ir. Sigo lembrando-me dos seus olhos pequenos, das suas ternas mãos. Um dia  ela me mostrou um canário vesgo acostumado ao quintal da casa. Disse qualquer coisa sobre o estrabismo do canário, mas ponderou que ele tinha o canto mais afinado da terra.

           A impressão que ainda guardo na lembrança é a imagem dos gestos das mãos da minha avó abrindo uma clareira nos meus sentidos. Os olhinhos do canário seguiam atentos às suas mãos que irradiavam uma cândida luz.
          Piedade!

         É lua cheia. O bosque do Parque Areião cresce debaixo do céu cinzento das chuvas. As mãos do quadro à minha frente dizem coisas insólitas.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na PUC TV

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