segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

O Relógio da Estação do Bairro Popular

O Bairro Popular é vigiado pela torre do relógio da Estação Ferroviária; coluna de olho insone rondando a vida dos moradores do bairro. No alto, o gigante de cimento esquadrinha limites. Ao leste, o Bosque do Mutirama refrigera o quadrante  da antiga Escola Técnica Federal do professor Hélio Naves e Niso Prego. A oeste, o ginásio Rio Vermelho como cabeça de lesma da Avenida Oeste que escorre até o Setor Norte Ferroviário. Ao sul, a brancura da feira coberta da Avenida Paranaíba. Do lado norte, a Avenida Independência, esticada como corda de 67 elos. No centro está a Estação Ferroviária que se ergue como vigia do tempo.

Neste retângulo sobrevive a alma de um bairro de alma avessa, boêmia; tem a cara da Lapa, no Rio de Janeiro. Mas, também lembra o Bairro do Bixiga, em São Paulo, pelo fato de  existir só na memória dos mais antigos; um plano diretor aventureiro riscou o Bairro Popular do mapa de Goiânia.

Só o Bairro Popular é capaz de reter em suas entranhas as contradições duais da vida. Siron Franco viveu aqui de onde retirou parte da sua arte universal. Gabriel Nascente engambelou mocinhas sonhadoras com sua poesia envolvente. O bar Kanekinho sobreviveu por décadas embalando os sonhos seresteiros da boemia desvairada. Em frente, na Rua 55, o tradicional Pão de Queijo J. Pereira com chocolate quente nas madrugadas frias de junho. Perto dali, no Bar do Narciso, na Rua 68, a dupla de compositores Sá e Guarabyra, em visita à Goiânia, compôs Dona, gravada também pelo grupo Roupa Nova.

Por aqui ainda se vê, nas noites de lua cheia, folgados moradores com suas cadeiras nas calçadas. Estes becos e ruas já presenciaram tragédias históricas: a chacina da família Mateucci,  tema de Veias e Vinhos, de Miguel Jorge. Outra tragédia aconteceu no final dos anos 80: a do Césio 137, o maior acidente radioativo do mundo. Nessa época Goiânia foi a cidade mais discriminada do Brasil. A cápsula de césio espalhou a morte azul, em alusão à cor do pó radioativo, e a Rua 57 tornou-se símbolo de morte. O anjo Leide das Neves foi mártir inocente de uma tragédia vigiada por um olho grande, onividente, assustador e indiscreto.

A utopia, indefectível companheira do homem, continua na alma dessa porção goianiense. E sobre o Bairro Popular, uma estranha dualidade: o amor e a morte observados pelo relógio da Estação.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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