segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Sofá Amarelo

Numa manhã de inverno o amigo Agostinho chega a minha casa, na 4ª Avenida, Vila Nova. 

- Dei o seu nome para ser padre.

- Padre? Eu? Ficou louco, Agostinho? Eu quero é ser oficial da Aeronáutica.

- Pois é, Doracino. Mas, o seu nome já foi para o seminário de padres, lá no interior de São Paulo.

Quem gostou de ouvir essa notícia foi a minha mãe; católica  fervorosa. Até acho que foi ela quem armou isso. Afinal, aos 12 anos, eu a acompanhava às novenas em louvor a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na Igreja Matriz, em Campinas. Decerto ela pensava que eu gostaria de dirigir missa.

Pensei, humildemente: não sou tão bom assim para ser padre. Ainda ontem pequei. Na brincadeira de “passar anel” segurei as mãos de Diná  mais do que devia. Ela gostou e respondeu  com um sorriso brejeiro. Sorrindo piscou maliciosamente e deixou o anel comigo; meus pensamentos profanos foram longe. Dormi sonhando com as mãos macias de Diná se mexendo entre as minhas.

Imaginei-me impuro por pensar assim. Por isso não quis ser padre. Meus sonhos, literalmente, voavam pelo espaço: entrar na Aeronáutica, vestir a farda azul, pilotar um avião de caça. Quem sabe eu seria o herói de alguma mocinha sonhadora da Vila Nova. Diná, aquela de cabelos castanhos, olhos de amêndoas, que morava na Rua 210 era a desejada. Eu me via como Toni Curtis,  num filme americano onde era um piloto de guerra americano. Diná poderia ser a minha Janeth Leigh.

Queria encontrá-la no sábado de festa junina. O parquinho de diversões já estava instalado na Praça da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Vesti a minha melhor roupa de frio. No pátio da igreja tinha quermesse, barraquinha e correio elegante. Procurei Diná no parque. Não a vi. Numa barraca toda enfeitada de fitas e balões coloridos estava Diná com vestido simples de tafetá rosa. Na frente tinha florzinhas bordadas da cintura até o peito.

Fui com a intenção de enviar o correio elegante, um bilhetinho entregue a uma mensageira com palavras de amor. Diná tinha um irmão grande, maior e mais forte do que eu. E se ele abrisse o correio elegante?  Cocei a cabeça. E agora? Ah, já sei: “vou mandar um recado pela irmãzinha”. Novamente recuei com receio de que ela contasse á mãe. Deveria pensar noutra saída.

“Achei!”. O serviço de alto-falante tocava músicas com recados nos intervalos. Era a minha chance de me fazer ouvir. Mandei o meu nos decibéis possantes da Igreja; ecoou nos confins da Vila Nova.

“Alguém oferece a alguém como prova de amor e carinho. E esse alguém sabe quem”. Meu rosto corou ao ouvir a mensagem na voz estridente do locutor.

Corri de volta pra casa. Ainda hoje penso que nem Diná soube que fui o autor e ela o alvo da estranha e hermética declaração de amor. Escondido na sala ouvia vozes que falavam  do vexame aos meus ouvidos. Dava até para ouvir a respiração dos móveis na noite estrelada de junho. O sofá amarelo, amigo de sonhos, me abriu os braços. Apaguei a única luz da sala de um barracão de três cômodos em que morávamos. Havia paz, sossego e uma tênue esperança.


Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

0 comentários:

Postar um comentário