quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Pulgas bêbadas

No começo do dia eu descia pela Avenida T-1, depois de andar pelas ruas atochadas de carros levando gente apressada. Uns avançam o sinal vermelho, outras passam uma roda sobre o meio-fio para furar a fila de carros que escorre lerda pelo asfalto cansado do acelera-e-para. À frente, numa esquina de pista dupla, o trânsito para. As luzes do carro da polícia piscam alucinadas no cruzamento; uma ambulância de sirene ligada procura uma brecha apara passar.

Um camburão do IML indica que algo de mais grave aconteceu. A fila dupla, até tripla, me faz andar sem querer. Nem soube o que aconteceu ali. Alheia, a mulher fuma um cigarro acenando nervosa com o homem  no banco de passageiro. O som bate-estaca da caminhonete ao lado fez vibrar tudo a sua volta. Uma mocinha, distraída, passa batom vermelho nos lábios. Os carros de luxo mantêm os vidros escuros fechados.

O careca com ar de quem discute por qualquer erro no trânsito tira cera do nariz. O mundo, irônico, parece inocente nessa manhã de engarrafamento na Avenida T-1. Nem as setas, abolidas do uso pelos motoristas de Goiânia, dão sinal de vida. Triste sina dos cronistas das grandes cidades. Não há nenhum exemplo ou uma lição que mereça uma boa crônica. Mais sorte tem os poetas ao dar voz à indignação da alma.

Vagueio com suave emoção na pressa metálica que campeia nas ruas de Goiânia. A gente, enfim, acaba se conformando com a rotina  nervosa do trânsito. Inevitável comparação com o trânsito de Goiânia de outros tempos.

Lembro-me de Goiânia com poucos carros. Bem diferente do alvoroço nas ruas e avenidas de hoje. Puxo mais longe nas lembranças. Não me recordo de ficar estressado naqueles tempos. Havia, creio, mais camaradagem com menos disputa pelos pelo espaço nosso de cada dia. Até os ônibus circulavam com poucos passageiros. Em troca do sossego eram cheios de pulgas. Elas saltavam bêbadas pelas residências, cinemas, teatro; nas salas de aula, hospitais; em todos os lugares onde tinha gente.

Por falar em espaços públicos onde andam as pulgas da Avenida Bahia e da P-16?  Sumiram para sempre.  É, os tempos de hoje são outros. Para alguns, melhores. Para outros, piores. Na verdade, são tempos diferentes. Mas, as pessoas, no geral, têm os mesmos sonhos. Por que sonhamos com essa Goiânia do  passado?

Talvez seja porque foi o tempo de descoberta da beleza das coisas, o ar puro dos Bosque dos Buritis, as ruas sem asfalto da Vila Nova, o Cine Campinas, o Setor Oeste sem casas, a fazenda onde hoje é o Jardim América. Ou o gosto do melado vendido no Mercado Central. A moça branca. Que delícia de doce!


No final da vida as lembranças voltam das catacumbas dos sonhos. Paro na esquina da T-9. O começo do meu dia foi invadido por uma multidão de carros que entope os meus olhos míopes.

Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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