domingo, 20 de fevereiro de 2011 | By: Doracino Naves

Setembro Amarelo

Nas madrugadas calorentas de setembro o mundo é o culpado pelas tristezas do Bairro Popular. Com o tempo amarelo-seco tudo parece perdido. O vento quente entra sorrateiro através do lençol. Meus sonhos e medos se escondem debaixo da cama. Com as surras do mundo nas costas me aprumo na cama. Espreguiço para expulsar a moleza que ronda meu corpo cansado de esperar pela chuva.  Quero soltar pipas na clareira do Estádio Olímpico, sob o céu azul dessa primavera que chega marcada com o atraso das chuvas deste ano.

Sentado na cama ouço as tarefas diárias dançando em cima do meu telhado. Sou rei na minha cama. Em prece, estendo as mãos para o alto. Elas puxam meus braços em direção ao sol que se esconde dos meus dedos. Nestes instantes de sonho imagino que posso alcançar o céu com as mãos. Por que os vaga-lumes fugiram deixando somente nuvens escuras sobre a terra?  Cansados da pequenez do homem os vaga-lumes fugidios se fizeram estrelas. Ou talvez, em bandos retirantes, foram se juntar ao sol para iluminar o mal da terra. A noite chega calorenta e abafada com a falta de vento.

A lua clareia as rachaduras do muro cinza com nascentes cachos de uvas verdes sendo preparadas para o Natal. Minha casa balança com os meus sonhos. Oh, Quintana!  Neste muro tem “Uma única porta. No único muro de uma casa em ruínas. Cuidado... Quem atravessar essa porta, à noite, pode ficar para sempre no Outro Mundo!”.

Expulso a dual mistura de preto e branco que pinta de cinza o meu dia neófito. Ponho o verde no amarelo para criar o azul, lembrando acidentalmente o Césio 137 que afligiu o Bairro Popular em 1987. Agora, quando estamos prestes a completar 23 anos da tragédia do Césio me lembro de todos os relatos dramáticos. Alguns dolorosos, de gente que fugiu daqui com medo. Lembro-me bem da história de uma mulher casada com um vendedor-viajante que, no estourar da bomba de césio, se encontrava em Miracema, Tocantins.

O marido, por telefone, pediu à mulher que não saísse de casa até passar o perigo de contaminação. Que esperasse pela sua volta dali a uma semana. A mulher, com dois filhos pequenos, se aninhou no pequeno quarto de um barracão nos fundos da Rua 57. Presos numa parede branca os cachos de melzinho de são-caetano se abriam em flores amarelas; com sementes vermelho-brilhante para atrair beija-flor.

Chegou o fim de uma semana e o marido não voltou. Preocupada, já não dormia de ansiedade. Lá fora, o roncar das máquinas e dos caminhões mostrava a pressa em levar o lixo radiativo para longe. O vozerio de repórteres e chefes de operários dava a impressão de um campo de guerra; um território minado por bombas radiativas. Passou outros dias e outras noites e ele não voltou. No cochilo das noites mal dormidas ela sonhava com os passos e a voz do amado chegando para salvá-la da prisão.

Cansada de esperar, juntou os filhos e fugiu para a casa dos pais, em Cromínia. Deixou para trás o sonho de Goiânia e “aquele” que nunca mais voltou.                                              Decerto, encantado por um rabo-de-saia qualquer. Mas, ela estava livre dos males da radiação e da espera inútil.

Atrás do muro cinza o tempo se esforça para brotar as uvas nos galhos sobre o muro que insiste em continuar cinza. O mundo é inocente pelos lados no Bairro Popular.
 
Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)

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